Uma peça de roupa
havia caído da varanda
e balouçava agora, temerária,
sobre o abismo do rés-do-chão.
Só tu, vizinha,
poderias salvá-la,
estendendo o braço
a partir do andar de baixo,
tu a quem durante anos só escutara
os passos subindo as escadas,
os joelhos roçando o plástico das sacas
com medicamentos prescritos
para a solidão,
comida para o gato
e um pouco de pão,
tu a quem só vira os cabelos nevados
do alto da minha janela,
mas nunca o rosto esperando
os quintais de madrugada,
suspeitando que não passavas
de fantasma, ou fábula,
apesar das cartas caídas à entrada
e, de longe em longe,
o tinir do chaveiro
rente à porta.
Enquanto medias cada passo
no mosaico de tapetes roídos
e me deixavas, paralisado,
no decano tapete da entrada,
afundei-me no espesso quarto
que aos olhos deste vizinho
assim todo se entregava,
decorado com manchas de hunidade,
fissuras na parede
e estuque no soalho.
Numa cómoda velavam santas
com róseas crianças ao colo,
sobre todas reinando os mil rostos
de Nossa Senhora de Fátima
(em plástico, cera, alumínio,
estanho, bronze e porcelana):
suas mãos fosforescentes oravam,
verdes, na penumbra
de onde nasciam molduras
com netos a rir em férias,
jóias em caixas de veludo,
água de rosas, rebuçados da Régua,
molhos de cartas, lenços de cambraia
e até – inconfessado –
um vinil do António Variações.
Um elevador, senhorio,
um elevador fazia falta,
um que só parasse
no céu, e não fizesse o corpo
pagar o que não pode,
o corpo há muito falido,
nas escadas do prédio
desistente
e ferido.
Rui Lage