31.10.09

Velando

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Junto dela, velando… E sonho e afago
imagens, sonhos, versos comovido…
Vejo-a dormir… O meu olhar é um lago
em que um lírio alvorece reflectido…

Vejo-a dormir e sonho… Só de vê-la
meu olhar se perfuma e, em minha vista,
há um céu de Amor a estremecê-la
e a devoção ansiosa dum Artista…

Nuvem poisada, alvente, sobre a neve
das montanhas do céu - ó sono leve,
hálito de jasmim, lírio, luar…

Respiração de flor, doçura, prece…
- Ó rouxinóis, calai! Fonte, adormece,
senão o meu Amor pode acordar!


Augusto Casimiro dos Santos

Zálima Gabon



Falo destes mortos como da casa, o pôr-do-sol, o curso d’água.
São tangíveis com suas pupilas de cadáveres sem cova
a patética sombra, seus ossos sem rumo e sem abrigo
e uma longa, centenária, resignada fúria.

Por isso não os confundo com outros mortos.

Porque eles vêm e vão mas não partem
Eles vêm e vão mas não morrem.

Permanecem e passeiam com passos tristes
que assombram a lama dos quintais
e arrastam a indignidade da sua vida e sua morte
pelo ermo dos caminhos com um peso de grilhões.

Às vezes, sentados sob as árvores, vergam a cabeça e choram.

Erguem-se depois e marcham com passos de guerrilha
Não abafem o choro das crianças, não fujam
Não incensem as casas, não ocultem a face
Urgente é o apelo que arde por onde passam
Seus corações deambulam à sombra nas plantações.

Por isso não os confundo com outros mortos
apaparicados com missas, nozadu, padres-nossos.

Por remorso, temor, agreste memória
Por expiação de culpa, ambígua caridade
aos mortos-vivos ofertamos a mesa do candjumbi
feijão-preto, mussambê, puíta, ndjambi.

Para aplacar sua sede de terra e de morada
Para acalmar a revolta, a espera demorada.

Eles porém marcharão sempre, não dormirão
recusarão a tardia paz da sepultura, o olvido
acesa sua cólera antiga, seu grito fundo
ardente a aflição do silêncio, a infâmia crua.

Eis por que vigiam estes mortos a nossa praça
seu é o aviso que ressoa no umbral da porta
na folhagem percutem audíveis clamores
a atormentada ternura do sangue insepulto.

Conceição Lima (poetisa sãotomense)


30.10.09

Por Decoro



Quando me esperas, palpitando amores,
e os lábios grossos e húmidos me estendes,
e do teu corpo cálido desprendes
desconhecido olor de estranhas flores;

quando, toda suspiros e fervores,
nesta prisão de músculos te prendes,
e aos meus beijos de sátiro te rendes,
furtando às rosas as purpúreas cores;

os olhos teus, inexpressivamente,
entrefechados, lânguidos, tranquilos,
olham, meu doce amor, de tal maneira,

que, se olhassem assim, publicamente,
deveria, perdoa-me, cobri-los
uma discreta folha de parreira.


Artur Azevedo
Brasil

Nova Lira – Canção



Quem embarcou no porão
Fechado a sete chaves,
Apertado entre traves,
Sem ver sol sem ver a lua?
Foi o preto!

Quem deixou a terra,
-filho ingrato que fugiu
ao pai e à mãe que não mais viu,
p’ra ir acabar como um cão?
Foi o preto!

Quem a mata derrubou,
E cavou e semeou
E co’a sua mão de bruto
Cuidou, recolheu o fruto?
Foi o preto!

Quem fez o ‘senhor ’– o patrão;
Lhe tirou da vida aflita
Lhe deu senhora bonita
E importância e situação?
Foi o preto!

Marcelo Veiga (poeta sãotomense)

Poemas da chuva



I

Os meus horizontes são fugazes
porque do arco-íris construídos
do escarlate e do azul
lilases se extinguindo
sob os céus da Cidade Velha

Também o vulto de Cristo
crucificado
entre a nudez da palavra
e a inanição da ribeira

II

a palavra.
a morte à cabeceira do sonho:
santiago ou nho nacho

oh! o insondável martírio
do verbo
entre as ervas das ribeiras


III

A bruma
húmida e só
cobre o dia

Um relâmpago
risca rápido
o meu coração

Uma ribeira
corre em catarata
na minha alma

A chuva cai
desvairada
sobre a apodrecida espiga
da minha boca

IV

A hidropisia da cidade
cobriu-se de fuligem

É agora a idade
dos grilos e de outros insectos
hílares como cítaras na noite

V

São deveras memoráveis
estes tempos setembrinos

A chuva
promíscua
dorme
com os políticos
um sono sem pesadelos

VI

Os vegetais
como as éguas
esganiçam
com as primeiras águas

VII

Recolhem-se as baga-bagas
às luzes da noite

Encolhemo-nos nós
mais os gafanhotos
na sombra dos dias


José Luís Hopffer Almada
Cabo Verde

29.10.09

Poema número onze


(Às valentes mulheres-carregadeiras do Mindelo - 1950

Chamo-te Guida,
podias ser Chica,
Tánha, Bia ou Silvina,
valentes mulheres
Vejo-vos a todas
de ancas bamboleantes,
canhoto na boca,
saias p'la cintura,
por cordas presas,
no velho cais de madeira
à espera de fretes,
sentadas
milho branco de Angola,
bananas de S.Antão,
ou S. Nicolau!
esperando.
Tánha e Bia juntas,
Rua Lisboa acima
sobem,
sacas de milho
dente de cavalo,
às costas
transportando...
Suor nos rostos
escorrendo,
pés
no negro basalto,
figuras desenhando.
Mulheres de aço,
rijas como
negras rochas
de Cabo Verde,
do vulcão paridas
Tánha e Bia,
sorridentes,
Rua Lisboa acima
vão indo, andando,
com saca
de milho dente de cavalo,
às costas
transportando.
Suores e sorrisos
nos rostos sofridos...
Dura vida,
vida dura
da mulher-carregadeira,
de um S. Vicente
de outrora, (1950)
só no pensamento
dos mais velhos, como eu,
infelizmente ainda presente...


Adriano Gominho
Cabo Verde

A Timor

Díli, noite de Lua Cheia - 1963


"Beiros", luzes no mar de coral
Rubras acácias pingando pétalas
Vento quente vindo do litoral
Recurvadas palmeiras no "mangal".

Abeiro-me do Farol ainda quente
No cimento do banco estalado
O calor do dia ainda se sente
A Lua no Ataúro, mesmo ao lado!

Miro o horizonte distante,
Um rapaz do Verde Cabo ido
Lembro-me da Escola, diante
D'um Timor ao Minho entendido...

Balançam as palmeiras no espaço,
Sinto a brisa na face de rapaz
Vejo timorense de filho no regaço
Colhendo pétalas d'Amor e Paz.


notas:
"beiros" - barco típico de Timor,
"mangal" - vegetação costeira


Adriano Gominho
Cabo Verde

O novo canto da mãe




Mãe:
Nós somos os teus filhos
Que sem vergonha
Quebraram as fronteiras do silêncio.
Os filhos sem manhãs
Que rasgaram as noites que cobriam
As carnes das tuas carnes.

Nós somos, Mãezinha,
Os teus filhos,
Os pés descalços,
Esfomeados,
Os meninos das roças,
Do cais,
Os capitães d’areia,
Os meninos negros à margem da vida,
Que despedaçaram o destino do teu ventre,
Que endireitaram os instantes
Que marcaram socalcos na terra firme,
Na profundidade das trevas da tua vida.

Nós somos, Mãezinha, os teus filhos,
Sexos que germinaram vida,
Forças que desfloraram a virgindade dos dogmas,
Fecundaram minérios de esperança,
Olhos, dinamite de amor,
Mãos que esfacelaram a espessura dos obós,

E em cujo silêncio verde
Germina a CERTEZA.

Mãezinha,
Nós somos os teus filhos.


Tomás Medeiros(Poeta sãotomense)

Memorial



As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo duma cidade inteira
o teu nome que os teus irmãos gastaram
dia a dia e que por fim morreu
atravessado na tua própria garganta
as tuas pernas os teus cabelos percorridos
rato após rato tantos anos
durante tanta alegria que não era tua
os teus olhos mortos eles também
na primeira ocasião do teu amante
assim como as palavras ainda fumegando docemente
sob as pedras de silêncio que lhes atiraram para cima
o teu sexo os teus ombros
tudo finalmente soterrado
para descanso de todos
- mesmo dos que estavam ausentes


António José Forte

Chuva


ergue-te ó chuva
nos olhos das manhãs
inquietantes de deus

reflexo indecifrável
esculpido no tempo
estala entre
o imenso consolo
das nossas poderosas emoções
e o pavor que trazemos
aos gritos no crepúsculo
de ti debruçada
sobre os campos
sobre a fome

ergue-te
acende no olhar
a carícia das flores
encantada janela de deuses
voltada às estrelas
de onde caem nenúfares
camélias flores de papel...

sentes-te só
miraculosamente viva
corajosa recordas em silêncio
a piedade que resta
aos espíritos da água
misteriosos como pingos
preciosos cintilantes
na angústia humilde
da transformação

deixai falar a alma
transfigurada adormece a chuva
nos olhos inquietantes de deus

vulto cinzento de sombras
a tua valiosa máscara
esconde no nevoeiro pálido
o martírio a graça o corpo
de quem se despe de vida

ergue-te ó chuva
em gemidos
escavas e beijas as fontes
buscas os olhos de deus
indo sozinho anseia
em teus braços molhados adormecer...

redimido em
cristalinas lágrimas
onde navegaram
ensombrados os meus sonhos
de rir de cruzes de batalhas

és a sombra desenhada
pelas águas tuas
num jardim desfeito
de tanta ilusão incompleto
ergue-te ó chuva!


Henrique Levy

Silêncio Cabo-Verdianos!



Silêncio Cabo-Verdianos!
choram irmãos nossos
nas roças de São Tomé

E há perigos e ameaças
na noite
grávida de punhais

Prepara o braço
serviçal!

Dos olhos do poeta
rolam lágrimas
cor de sangue.


Ovídio Martins
Cabo Verde

Canção segunda



Do rio de lisboa
da luz a humidade
o pó a turva e lava
no rio vai de inverno
lisboa o pó lavando

Em rio vai de pó inverno achando
com que mudar as ruas de lisboa
vai passando lisboa na luz turva
de inverno de humidade já lavada
de novo a luz do rio a vai turvando
de novo acha o inverno a humidade
e novamente o pó com que lavá-Ia

Vai mudando o inverno o pó das ruas
de turva areia ardente em puro pranto
o rio de lisboa do inverno
da amargura o rouco pó lavando

De areia de tristeza a humidade
erva das praias rio
vai mudado o inverno
vai do rio
correndo de lisboa turva ainda
acaso a água dos clarões do pó
clarões canção
do pó
que a luz arrasta


Gastão Cruz

O que fez sentido


Reformulamos o amor porém se fórmula
não existia como repeti-la?

É preciso criar um eco ambíguo
que deixe de ser eco e tome a forma

do que viver possa ter sido:
encontraremos restos do sentido

que num instante incerto alguma coisa fez
e nunca poderá ser repetido


Gastão Cruz

28.10.09

Grito



Não posso já com ervas nem com árvores:
Prefiro os lisos, frios mármores
Onde nada está escrito.

Meu gosto da paisagem fez-se escuro;
Nenhures é o lugar que mais procuro
Como homem proscrito.

Eu bem sei: A verdura! A flor! Os frutos!
Mas não posso passar de olhos enxutos,
Meu campo verde aflito.

Porventura cegaram os meus olhos
Porque há nos silveirais flores aos molhos
- Tanta flor me tem dito.

Mas eu bem sei que movediços lodos
Que são o chão, as lágrimas de todos,
Meu coração contrito.

Eu não sei se amanhã será meu dia;
Recolho-me furtivo na poesia,
Incerto o chão que habito.

Ai de mim! Ai de mim, nuvem medonha!
Os homens conheci, bebi peçonha,
E é por isso que grito.


Afonso Duarte

Al Berto


Trémulas ao horizonte as mãos procuram-te
em surdina ausculto o ritmo da morte
no musgo dos corpos
o silenciar do crepúsculo

são rosas o que agora sustenho nas mãos
uma infância de espinhos e um jardim de dor
Sílaba a sílaba procuro
no exíguo ardor das palavras
o amor

morto na vigília dos dias percorro o silêncio da
memória
e por todo lado diluem-se sombras
homens em pedaços na ferrugem calcinados

alumiam fervorosamente
o imenso barco da vontade


Francisco Muñoz
Moçambique

O deserto inominável



O deserto é um silêncio depois do mar,
É o êxtase da luz sobre o coração da areia.
Vai-se e volta-se e nada se esquece.
Tudo se oculta para depois se dar a ver
No ponto em que os ventos se cruzam
E as almas gritam no fundo dos poços.
Os cestos sobem e descem prometendo água,
Uma frescura que derrete a febre.
Não são as tâmaras que adoçam a boca,
É a beleza das mulheres dissimulando
O desejo como um pecado sob a escuridão dos véus.
As serpentes assobiam ou cantam
Conforme o veneno que lhes molda o sangue.
Enroscam-se sobre as pedras
como fragmentos de lua à espera da manhã.
E a sombra alonga-se nas dunas
Ondulando rente às palmeiras
Como a última cobra do medo das crianças.
Não há ruído maior que este silêncio
Que se serve com tâmaras e com chá
Na mesa rasteira, sobre a terra molhada.
É no que não se nomeia que está o infinito.


José Jorge Letria

27.10.09

Beijos-de-mulata


(Para a ZEZA)


Os beijos-de-mulata
não têm perfume
Apenas
a limpidez do seu desejo
branco

Ou
uma concêntrica fúria
acesa de tacula-roxo-carmesim
além de ser
a melhor droga contra o câncer.

Pra que perfume...?
Onde elas crescem
morrem as outras plantas...


Arnaldo Santos (poeta angolano)

Meu canto Europa



Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
as linhas dos telefones sintonizadas,
os espaços dos morses ensurdecidos,
os mares dos barcos violados,
os lábios dos risos esfrangalhados,
os filhos incógnitos germinados,
os frutos do solo encarcerados,
os músculos definhados
e o símbolo da escravidão determinado.

Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
com a coreografia do meu sangue coagulada,
o ritmo do meu tambor silenciado,
os fios do meu cabelo embranquecidos,
meu coito denunciado e o esperma esterilizado,
meus filhos de fome engravidados,
minha ânsia e meu querer amordaçados,
minhas estátuas de heróis dinamitadas,
meu grito de paz com os chicotes abafado,
meus passos guiados como passos de besta,
e o raciocínio embotado e manietado,

Agora,
agora que me estampaste no rosto
os primores da tua civilização,
eu te pergunto, Europa,
eu te pergunto: AGORA?

Tomás Medeiros (poeta sãotomense)

Neste norte gelado e branco



Neste norte gelado e branco
o horizonte torna-se um corpo velho
deitado sobre a terra adormecida.

Os pássaros escrevem a negro
o voo calado da fome
e os céus enchem-se de uma
linguagem tracejada e agressiva.

(…)

Sim, porque aqui o amor não
se enraiza com profundidade.
E encostado a superfície
de modo osmotico
repetindo-se com a insolência
tatuada no rosto da vaidade.

E e nestas terras brancas sem açúcar
onde os Deuses foram substituídos
pela intoxicação loura do malte,
que o meu tempo se vai desdobrando
sobre um mar molhado de silencio
e eu me vou tornando memoria antiga
sobre a paisagem cerzida
pela dor vitrea e brilhante
das lantejoulas do frio.

(inverno escandinavo II)


Andrea Paes
Moçambique

Senhor! De que Valeu o Sacrifício?...



Quantos desejam, Senhor,
na calma de uns seios brandos
ter sonhos e ter amor...

Os que mendigam na vida
anseiam por ser meninos
e aninhar-se
— depois da faina de um dia, cansados já de ser homens —
junto dos seios de alguém.

Senhor! De que valeu o sacrifício,
se os seios não se abriram
nem se deram a ninguém!

Álvaro Feijó

O que não sabes


a Rosema

Ninguém te disse
da meia-noite longa destilando-me nos meus olhos
nem da nostalgia apertando-me a alma
enquanto na lonjura tua imagem recheia
o silêncio que envolve esta doce ilusão
de ouvir a tua voz na franja do tempo

Ninguém te contou
das horas ébrias de ternura que ficaram na intimidade
em noites ardentes do meu querer simplesmente
junto a ti estar como outrora
com o teu frágil sorriso desfeito em perfume
quando os nossos olhares se cruzaram ao acaso do destino

Tacalhe (Cabo Verde)
Estar Assim, Assente na Saudade
Bamboo Division Art Print by Don Li-Leger

Estar assim, assente na saudade,
com todo o peso repousando em si,
a prende à luz da sua antiguidade
parando na de aqui.

Concentra-se na sua densidade.
A tarde, à volta, ilustra no perfil
uma penumbra de profundidade
de onde o azul aviva a luz de Abril.

E a juventude adensa-se na tarde.
Agrava, ao lume duma paz antiga,
o modelado meditar. O ar de

estar ao centro de um amor que diga
quanto está perto da sua eternidade
este toque de luz na rapariga.

Fernando Echevarría (poeta timorense)

26.10.09

Cantiga do Ódio



O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?

Carlos de Oliveira

É Outono



Faço um barco de papel e embarco, rumo às cenas
baralhadas de um sonho qualquer.
É outono e não sei dizer quem sou ou o que quero ser.
Os meus olhos são rios de palavras afogadas,
onde só posso ver a minha imagem disfarçada de mim.
Percorro então, uma a uma, as horas por viver
e descubro um arco-íris na minha boca
a gritar uma insónia íntima.

Dentro do meu sono ainda me perturba
a tua imagem, miragem do meu deserto
vencido, demora da minha espera.
Era feito de mármore o silêncio
dos teus olhos e por ele escorriam
as palavras que eu dizia, como se fossem água.
Esse silêncio doeu na minha voz,
quando as minhas mãos violaram os gestos
e, entre nós, ficou intacto o diálogo.
Sei agora a cor exacta do vinho
com que brindei à primavera em nome
da presença que tu eras e hoje, ao recordar-te,
sublinhei o sentido dos sonhos e do vento.
Foi o tempo em que a neve presente no teu rosto
gelou os meus lábios até à transparência.


Graça Pires

25.10.09

O Limpa-Palavras

Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
A palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
Enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
Quase todas as palavras
Precisam de ser limpas e acariciadas:
A palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
É preciso raspar-lhe a sujidade dos dias
E do mau uso.
Muitas chegam doentes,
Outras simplesmente gastas, estafadas,
Dobradas pelo peso das coisas
Que trazem às costas.
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar
E é preciso fechá-la na arrecadação.
No fim de tudo, voltam os olhos para a luz
E vão para longe,
Leves palavras voadoras
Sem nada que as prenda à terra,
Outra vez nascidas pela minha mão:
A palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.
A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
E lavadas como seixos do rio:
A palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
Vão à procura de quem as queira dizer,
De mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes um braço para apanhares
A palavra barco ou a palavra amor.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.

Álvaro de Magalhães



24.10.09

Poema de quem ficou





Eu não te quero mal
por esse orgulho que tu trazes;
por esse teu ar de triunfo iluminado
com que voltas…

… O mundo não é maior
que a pupila dos teus olhos:
tem a grandeza
da tua inquietação e das tuas revoltas.

… Que teu irmão que ficou
sonhou coisas maiores ainda,
mais belas que aquelas que conheceste…
Crispou as mãos à beira do mar
e teve saudades estranhas, de terras estranhas,
com bosques, com rios, com outras montanhas
– bosques de névoa, rios de prata, montanhas de oiro–

que nunca viram teus olhos
no mundo que percorreste…


Manuel Lopes (Poeta Cabo-Verdiano)

Descoberta





Após o ardor da reconquista
não caíram manás sobre os nossos campos.
E na dura travessia do deserto
Aprendemos que a terra prometida
era aqui.
Ainda aqui e sempre aqui.
Duas ilhas indómitas a desbravar.
O padrão a ser erguido
pela nudez insepulta dos nossos punhos.

Conceição Lima (poetisa sãotomense)

Para que se possa salvar a Literatura



Gosto das personagens que morrem
antes do fim das histórias. É a vida.
As que sobrevivem estão condenadas
a um purgatório do qual
nenhuma ficção as resgatará.
As personagens devem ser como os remédios:
devem ter um prazo de validade.
Não gosto que se pergunte:
o que terá acontecido a Bernardo
e a Luísa depois daquele drama?
Há questões que a literatura não pode
nem deve deixar em suspenso. É fatal.

Hoje escreve-se já para a segunda edição,
para a cinta que proclama o êxito,
para a entrevista na revista do semanário,
para o império da banalidade.
A sofreguidão do novo leva o mercado
a chamar escritores a alguns transeuntes
que acidentalmente decidiram
fazer da literatura um rendimento fixo,
uma escada em espiral para a glória
dos consultórios de dentista.

Nestes casos particulares deviam ser as personagens
a exterminar os autores. Para quê?
Para que se possa ainda salvar a literatura.


José Jorge Letria

Quem me fez sem fé



Se Deus existe, fez-me sem fé,
Inapto para a crença e para a bondade da prece.
Infelicidade a minha. Miséria a de quem
nasceu assim, vazio de quase tudo
o que mereça um olhar apontado às estrelas,
uma devoção murmurada sob a forma de queixa.
Como posso eu implorar perdão
se não sei onde, como e por quem pequei?
Como posso eu pedir a dádiva da salvação
se nem sequer tenho a certeza de querer ser salvo?
Deve ser bom ter a quem rezar,
nem que seja às divindades múltiplas
e impalpáveis das águas, dos ventos e das luzes.
Eu nasci sem fé. Ponto final.
Talvez Deus se tenha esquecido de mim
na hora de distribuir pelos humanos
a oferenda imperecível da submissão e da crença.
Talvez eu estivesse a dormir ou, quem sabe,
não tivesse ainda saído do ventre materno.
Tudo é possível. Mas atrevo-me a perguntar:
e se Deus, simulando este imperdoável esquecimento,
me tivesse dado o verso para eu falar com ele
imaginando que é comigo que falo?
Só no fim de toda a escrita
poderei ter certezas a este respeito. Quem
estará lá à minha espera
quando já não houver mais palavras para dizer?


José Jorge Letria

Poema distante



Ó praia de luz morena
De recorte sensual,
Eu vou soprar a minha avena
De inspiração tropical.

Em toda a areia eu descubro,
Nas águas e nos Palmares,
vestígios do sol ao rubro
Disseminados nos ares.

E a minha mágoa, esta pena
Que chora,
Tornou-se então mais morena
Que outrora!
Onda atlântica da praia,
A minha flauta modula
A tua voz desmaia
Como o capim quando ondula...

E eu não sei se a claridade
Que muito ao longe se esgarça,
é nuvem na imensidade
Ou asa de qualquer garça...

E a minha pena, esta mágoa
Flutua
Como flutua na água
A lua.


Lília da Fonseca
Angola

23.10.09

Flores da Lua


Brancuras imortais da Lua Nova,
frios de nostalgia e sonolência…
Sonhos brancos da Lua e viva essência
dos fantasmas noctívagos da Cova.

Da noite a tarda e taciturna trova
soluça, numa trémula dormência…
No mais branda, mais leve florescência
tudo em Visões e Imagens se renova.

Mistérios virginais dormem no Espaço,
dormem o sono das profundas seivas,
monótono, infinito, estranho e lasso…

E das Origens na luxúria forte
abrem nos astros, nas sidéreas seivas
flores amargas do palor da Morte.


Cruz e Sousa
Brasil

1619



Da terra negra à terra vermelha
por noites e dias fundos e escuros,
como os teus olhos de dor embaciados,
atravessaste esse manto de água verde
- estrada de escravatura
comércio de holandeses

Por noites e dias para ti tão longos
e tantos como as estrelas no ceú,
tombava o teu corpo ao peso de grilhetas e chicote
e só ritmo de chape-chape da água
acordava no teu coração a saudade
da última réstia de areia quente
e da última palhota que ficou para trás.

E já os teus olhos estavam cegos de negrume
já os teus braços arroxeavam de prisão
já não havia deuses nem batuques
para alegrarem a cadência do sangue nas tuas veias
quando ela, a terra vermelha e longínqua
se abriu para ti
- e foste 40'L esterlinas
em qualquer estado do SUL -

Francisco José Tenreiro (poeta sãotomense)


Lembrete



Se procurar bem,
você acaba encontrando
não a explicação(duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida

Carlos Drumond de Andrade
Brasil

21.10.09

Fado Nocturno



Cala-te porque não sabes
dos comboios que passaram
nos carris do mar sem naves
onde os sonhos se mataram.

Cala-te porque insone
nas noites adormecidas
tecelã teci teu nome
de estrelas destecidas.

Sobre o mar morto contemplo
minha vida em agonia
minha saudade é um templo
onde rezo cada dia.


Maria de Lourdes Hortas

20.10.09

Lamento do Poeta Objectivo


Anda-me o amor tomando a própria vida,
como se, amando, eu existisse mais.
E leva-me o Destino em voz traída,
como se houvera encontros desiguais.

A multidão me cerca, e, renascida,
já dela terei fome de sinais.
E, mal a noite se demora ardida,
o medo e a solidão me esfriam tais

as cinzas desse amor que sacrifico.
Não é futura a só miséria. A queixa
também não é: e apenas acontece

no vácuo imenso que este amor me deixa,
quando maior, quando de si mais rico,
se dá de mundo em mundo, e lá me esquece.

Jorge de Sena

Canto



I

Cantar
é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras
fique embora mais breve a nossa vida

II

Tu, coração, não cantes menos
que a harmonia da terra,
nem chores mais
que as lágrimas dos rios.

Carlos de Oliveira

19.10.09

Arremessos


A despeito de questiúnculas, e a despropósito das overdoses do
born in, sempre e sempre o futuro, nossa fúria cosmopolita
mas agora falemos de ortodoxias.
De facto, mais do que a vermelha e a clássica
são estes bolsares viscerais, mangungu d'ontem maningue chatos.
Para os ruminantes, barrete e folhoso são o vai-vem obvio-
implícito, basta o ruminar e bolsar sobre.
Exaustos de exaurir cifrões, estão os dias
que nos transportam es-cru-GULOSA-mente (m) (por via erudita).
No ponto a mesma música: os fúnebres encontros
para chorarmos um entre comuns: os irmãos foram-se de largada.
É verdade que o que somos tem sempre segmentos do que fomos..
Será verdade, também, que o xibalo e a palhota sirvam
para nos nacionalizarem, só porque se u$a?
Ou seremos nós, há caso, mero cidadãos do ocaso?
Mas por criar, sobram-nos os mesmos filhos
que vamos sendo dos nossos pais.
É verdade irrefutável que, se a historia está a ser mal escrita,
a minha geração dar-se-á ao desplante de reescreve-la,
me ti cu lo sa mente(m)!

Manuel Meigos Filimone
Moçambique

18.10.09

Entre luz e sombra

(A Leopold Sédar Senghor)

A sombra desliza
por detrás dos vimes
celebra-se a hora
os mortos abandonam os vivos
para viver em paz
por entre as veias finas da terra.

Acendo com as mãos das mães
a candeia antiga de óleo de palma
A serpente do lugar dorme
sobre seus ovos de vida
Os guardiães das fontes
preparam a madrugada
enquanto as mulheres dos clãs
de cima
provam a comida da noite
e velam pelo fogo
das oferendas.

Uma antiga fúria oferece
a fórmula
limpa as palavras
de todas as sílabas mortas.

Regressa a velha canção serere
de seda e sombra
como o silêncio das mães.

O nó da voz atravessou a vida
sustenta a metade da terra
onde deslizam as sombras
por detrás dos vimes
Celebra-se então a hora
os mortos abandonam os vivos
entre sombra e luz
nas veias finas da terra.


Ana Paula Tavares
Angola

É Domingo no mundo




Não sinto nada ao domingo. Nada me comove.
Nada me demove de não sentir.
Resisto ao apelo dos grãos do café
entre magotes de pessoas,
ao passeio de carro, devagar, para gozar o panorama,
como devem ser os passeios ao domingo.
Não há um ritmo que me incendeie,
uma montra luminosa que me ilumine.
Fico por casa, na serenidade do jornal de domingo,
quieto quieto. Era capaz de passar o dia
abraçado a ele, página após página.
Nacional, local, mundo.
É domingo no mundo.
Em Paris sobe-se uma vez mais à torre Eiffel
de encontro ao céu de domingo,
que neste dia não haverá de ser diferente
do céu que cobre o jardim de terra
plantado junto ao museu do Louvre.
Nem uma praia das Caraíbas escapa ao domingo:
recebe os rapazes e raparigas lentos e torpes
mais tarde do que é habitual: é domingo,
e só muito tarde dão descanso à praia,
cheios de areia dominical nos pensamentos.
Abstenho-me de sentir ao domingo,
apesar de ser domingo no mundo.


João Alexandre Lopes

Ilhas de ronda



deixámos muhambas e sementes
deixámos jóias e macutas
nos olhos da ronda secretas sombras

atravessámos sem ferir a água
se ferimos
não pudémos tocar mais leve
o som de existir

engolimos tosses
domesticámos gritos
enfeitiçámos os cães
pra não ladrarem

toquem já xingufos
desde o talamungongo
até na honga

trazemos o sol
na ponta da coragem


Jorge Macedo
Angola

17.10.09

Berkeley Square



O alto adolescente. Caminha
em passo danção.
Camisola às riscas larga
vem dizer o
olhar tão alvejado.

O ar invulnerável é-lhe
dado pelo chapéu
de abas luminosas.
Ele e eu poucas palavras
perdidos para os lados
do mar.

O frio das ribanceiras
levou-nos às paredes,
eu pedi-lhe a mais breve
constelação, sal, areão
molhado, o rumor de outra coisa ainda.


Fernando Luís

Caminhos



Amanhã,
Quando as chuvas caírem,
As folhas gritarem d’esperança
Nos braços das árvores,
Os homens se esquecerem de seus passos incertos,
A força do Sol e da Lua vergastarem,
Implacavelmente,
O resto da terra,

Amanhã,
Quando a força dos rios
Derramar o seu sangue na lonjura dos campos,
O ventre faz flores amadurecerem de filhos,
As pedras do caminho se calarem de dor,
As faces dos homens sorrirem de novo,
As mãos dos homens se apertarem de novo,
Amanhã,
Irei de passadas longas
Pelos caminhos largos e certos,
Irei de passadas longas
Sem coração de conóbia
Ou cintas de panos com bênçãos de Deus,
Irei pelos tenebrosos caminhos da vida,
Irei,
De tam-tam
em
tam-tam,
Irei
Desafiar os mais trágicos destinos,
À campa de Nhana, ressuscitar o meu amor.
Irei.

Tomaz Medeiros (poeta sãotomense)

Poema para Aossê


Dá-me um copo de água,
a boca dess'ar fresco,
a neblina que cai no jarro d'ar.

falo para o espelho
e peço à minha imagem
o que não ousaria pedir,
nem a mim próprio.

Dá-me a paisagem onde a amante dorme.


Maria Gabriela Llansol

Adolescentes


Não podes negar que bebeste leite
Da teta negra da mamã Ama

Tu mesmo o dizes
Teus lábios vermelhos
Como o sangue puro da mamã Ama
São quentes com palavras brandas

São a saudade da mamã Ama
Das brincadeiras antigas
Gajajeira e quintal de ripado
Sol nas casas de barro vermelho
Nós dois unidos em luta
Disputando o colo da mamã Ama

Nossas cabecinhas batendo
Nas tetas grandes da mamã Ama

Ela foi envelhecendo
Seus cabelos viraram brancura
Nós fomos crescendo

Do teu peito nasceram fontes de vida
Teus lábios ficaram mais cálidos
Minha menina branca por nebulosidade
Meu amor sem pecado

Meu peito também cresceu
Meu coração também cresceu
Amar-te?

Nego-me!
Agora seria desgostar a nossa mamã Ama
Seria fazê-la chorar lá no céu
Meu amor é pecado
Eu não sei a quem amo

A mamã Ama recomendou cuidado
Disse-nos que éramos irmãos

Minha branca de uma avó negra
Negra Isabel que faleceu desgostosa
Pela filha que não casou
Branca de um pai que se negou

Para mim
És aquela sempre menina bantu
— Minha irmã da infância
De olhos verdes de ternura
Boiando candidamente
Num corpo de nebulosidade nórdica

És a saudade da mamã Ama
Num corpo que faz lembrar
Um jardim de rosas brancas
Com toda a pureza de expressão bantu
Da nossa mamã Ama.


Tomaz Jorge
Angola

16.10.09

Revérbero negro



Às vezes assusta-me este novo riso que tenho.
Não que antes não risse,
mas exactamente porque antes ria e este riso não ri.
Apenas revérbero negro do que seria um sorriso se alguma alegria o tomasse.
Só que não há alegria e o riso perpetua-se negro sob o céu pesado do olhar de outros
que se perguntam e com razão: estará a ficar louco?
Por mim nunca me coloquei a questão (é o olhar deles que me assusta).
Nos dias a questão foi sempre outra: como sobreviver a esta dor sem pausa?
Como atravessar este grito sem fim?
É para ela que o riso é solução.


Jorge Roque

Divagação



Quando morrer
quero correr o mundo. Nas primeiras horas
desse lusco-fusco, colocarei a última pedra
na estrada que minha mãe rasgou no mapa
acenado por meu pai em terra desbastada.
Depois começarei a viajar. Começarei por Paris.
Não perguntem porquê Paris. Quem sabe,
pela erudição dos mendigos
a celebrar os seus excessos

Quando morrer
quero conferenciar com Deus. Na primeira
aula de catequese instalou-se a ideia
que Deus era um relógio igual ao de Brooklyn
existente na casa dos meus avós.
Era perfeito, infalível o relógio
manufactured by the Ansonia Clock Company.
Não por ser americano ou pertencer à família,
mas porque mediava a história do mundo interior,
mais a crença naqueles que não se escondem
para morrer; e no exterior em mutação
padecendo de amnésia.
Um dia o relógio avariou, deixei de crer em Deus.

Quando morrer
quero dizer a Ele tudo isto, até O convidarei
a viajar comigo. Quem sabe, não iremos a Brooklyn
falar com os donos da Ansonia Clock Company
para um certo de contas
e clarificação de dúvidas.


Ivo Machado


15.10.09

Um dia


ao António Jacinto


Um dia eu vou fazer um romance
com as histórias da minha rua
antes de se chamar Silva Porto
e os pretos irem embora.
Vai entrar a lua e meninos sem cor
a Domingas quitata, o sô Floriano do talho
com muita mistura de amor
e muito suor de trabalho.
Vou meter as cabras e os cães vadios da velha Espanhola
os batuques da Cidrália e dos Invejados,
os batalhões do "Treze" e do "Setenta e Quatro",
o bêbado Rebocho, o velho Salambio',
a Joana Maluca da garotada,
cajueiros, cubatas, lixeiras,
capim e piteiras,
e mesmo no fim da história,
quando os homens estão desesperados
e as fardas passam em fila,
acendo um sol de Fevereiro,
semeio algumas esperanças
e parto com o meu veleiro
a dar uma volta ao Mundo!


António Cardoso (poeta angolano)

Deixa-me dormir


Deixa-me dormir
quando
morre a noite.
Assim o amor
será absoluto
sacrifício
impassível sangue
árido prazer.

Deixa-me dormir
quando
morre a noite.
Assim o amor
guardará
uma grega ilusão
de sonho
e embriaguez.

Deixa-me dormir
quando
morre a noite.
Assim o amor
terá merecido
a dor, veloz,
insustentável
e imoderada.

Deixa-me dormir
quando
morre a noite.
Assim o amor
dir-nos-á
sois abandonados
cristos
na boca de deus.


Ana Marques Gastão

O sacrifício

(De Safo)

Vem, Átis, coroar de infantes rosas
Essa frente engraçada, – o as tranças móveis
De teus áureos cabelos, deixa-as soltas
Pelo colo de neve.
Oh! que amável pudor te anima e cora!
Vem: colhe com teus dedos melindrosos
Frescas boninas, doces violetas
De suavíssimo aroma:
Que a vitima de flores coroada
Sempre é mais grata aos deuses.
Vem: teremos Estas selvas sisudas por altares,
Onde a minha ventura
Me há-de elevar aos numes soberanos,
Enlaça em torno a mim essas grinaldas
Reclina-te em meu seio, os olhes belos
Para os meus olhos volve...
Que linda coras! que formosos lábios!
Essa polida tez não cede às flores:
Não, que a viveza de sua cor brilhante
O esplendor não te ofusca.

Almeida Garrett