30.6.08


Estranha noite



Estranha noite velada,
Sem estrelas e sem lua.
Em cuja bruma recua
Fantasma de si mesma cada imagem

Jaz em ruínas a paisagem,
A dissolução habita cada linha.
Enorme, lenta e vaga
A noite ferozmente apaga
Tudo quanto eu era e quanto eu tinha

E mais silenciosa do que um lago,
Sobre a agonia desse mundo vago,
A morte dança
E em seu redor tudo recua
Sem força e sem esperança.

Tudo o que era certo se dissolve;
O mar e praia tudo se resolve
Na mesma solidão eterna e nua.


Sophia de Mello Breyner Andresen



Nome de pão


ouso nosso pão e posso

ouso nosso pão e posso
ainda molecular a ideia
para dedos de haver esperança

ouso pensar
coragem e amar
e tanta coisa que é pão.

Oswaldo Osório (poeta caboverdiano)




Porto Grande



Porto Grande
baía largada no meio do mar...

(Tem lotação para cem vapores!)

O perfil montanhoso de Stº. Antão
é um tapume dos ventos do noroeste.
Monte-Cara e Monte-Verde aguentam firme
toda a maresia do Atlântico.
Se o mar em crista entra por João Ribeiro e S. Pedro
logo vai morrer manso no afago irresistível to teu porto.

O ilhéu ficou indeciso
a meio caminho do canal
como que a querer ser o ponto de ligação
entre duas ilhas irmãs.

(Sonho de uma ponte majestosa passando ali...)

Vapores do norte
Vapores do sul
Vêm e vão...

(Haverá ainda o sino da Companhia?
Uma badalada: Vapor de norte
Duas badaladas: Vapor do sul.)

As luzes de navegação
as lâmpadas a néon dos grandes paquetes
e as lanternas a petróleo dos veleiros
são uma sinfonia de cor...
Pirilampos nas noites da baía!
Vozes
ecoando no meio do mar
saindo do fundo das embarcações...
Um apito um assobio
tomam sonoridades estranhas
evocam histórias antigas...
De longe em longe um cão ladra
e o cholop cholop dos barcos ancorados
enche com a sua melodia os espaços vazios.
Quando chega a madrugada
e os contornos do dia se vão definindo
imprecisamente
no meio da baía um galo canta a sua canção de aurora.


Terêncio Anahory (poeta caboverdiano)





Conquista



Trás!...
Explodiu a Verdade,

Agora sou capaz
De tudo
Indiferente e quedo e mudo
Deixarei escangalhar o brinquedo
Que temi na Infância,
Rasgou-se o céu em mil fatias lindas,

Ricos
Fanicos
Que recolhi na mão.
Desilusão! Cristal, cristal, cristal!
E eu a namorar o mal...


Pedro Corsino de Azevedo (poeta caboverdiano)



A Lagartixa Frustrada


Um dia
a lagartixa
quis ser dinossauro

Convencida
saltou pra rua
montada em blindados
pra disfarçar a sua insignificância

Tentou mobilizar as formigas
que seguiam
atarefadas
pro trabalho

"Ó pobre e reles lagartixa
condenada
à fria solidão
das paredes enormes e nuas
tu não sabes que os dinossauros
são fósseis
pré-históricos


João Melo (poeta angolano)



Canção de Ndon Kishote



Fruste silhueta
gáudio da canalha
provocando o riso,o choro e a troça
o soldado veterano trazido pela guerra
é fardo de palha
que a brisa desconjunta
regressando a casa no fundo da carroça.

velho monumento que nada mais encerra,
como aquela puta que já não presta,
que foi marabunta,
que foi cagalhoça.
fruste silhueta
gáudio da canalha.
o que te resta ainda
da tua gesta?

memória d'arquivo
que nem sequer comporta
o eco evasivo que sonoriza a glória!
silêncio na memória.
silêncio imperativo.

mito que se conta em língua morta,
feito que desfeito perde a história.

memória duma insólita fescura
nos nossos afagos e carícias
que ondularam a superfície dos lagos
e agitaram as folhas das welwitchias.

memória d'aventura que desperta
abrindo a porta dos sonhos fugazes,
nas vozes agudas,
nas palavras estranhas
nos gestos largos e sagazes
retumbando na crista das montanhas
avante! avante! que a vitória é certa!
que davam coragem aos nossos rapazes
atrapalhando os budas!...
mas deixando sempre a portra aberta...

memória duma fruste silhueta
a cavalo numa nuvem tenporária
à procura da meta
pelo tempo fora, pela extensa área
do sonho rubro da nossa vida,
claudicando no campo de batalha
na sua montada feita de esperança,
um poema na boca, na mão a longa lança,
e em toda ela um suspiro de ternura.

não é o cavaleiro da triste figura
duma velha história, que não tem saída,

a fruste sailhueta, gáudio da canalha,
é o herdeiro duma sagrada-esperança
noutra aventura
mal digerida...


Henrique Abranches
Angola

Lembranças propositadas


Sinto ainda o cheiro do
sândalo e lembro o aroma vértil no reinício da
vida e a expectativa de
colheitas abundantes.
Lembro também coisas belas
no seio das famílias
humildes plantadas no solo
timorense.
Lembro o Natal herdado,
o café sempre presente,
o arroz, o milho, o búfalo...
Tudo numa harmonia que
escapava à percepção
porque a ecologia é útil,
não é poesia. É sobretudo expressão de viver!
Lembro ainda o Natal sem prendas,
sem fartura...
Lembro um Natal herdado,
certo, um Natal só com um presépio,
a partilha de uma noite ou um dia,
um Menino e doces,
canções pedindo a companhia dos anjos ou
que se repetisse a magia
de Belém.
É que encanto pode vir
tão só de uma noite de
pobreza cantada que de um
minuto preso à esperança
de dias belos!

Crisódio Marcos (poeta timorense)





De monte a monta...


De monte a monta, o meu grito
soa, soa, como voz
de um eco do infinito
ecoando em todos nós.

Timor cresce como um grito
ecoando em todos nós.


Ruy Cinatti (poeta timorense)



Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)



29.6.08


Fuga


Aos ventos espalhei a cinza dos meus gestos.
Num desprezo de mim, fiz-me poeta,
traí os meus sonhos, enchendo vãos papéis
de traços sem sentido e talvez falsos.
Fui poeta como alguns se suicidam,
como outros partem sem destino certo.
Sonhei-me longe de tudo o que possuo
- longe de mim, longe de quem?-
afastado, sem contas a prestar...
Foi longo o meu engano. Agora vejo
que nunca de mim eu me afastei...


Adolfo Casais Monteiro

O Beijo


Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!

De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill
Sugestão
Rose Bouquet Close Up I Photographic Print by Nicole Katano

As companheiras que não tive,
Sinto-as chorar por mim, veladas,
Ao pôr do sol, pelos jardins...
Na sua mágoa azul revive
A minha dôr de mãos finadas
Sobre setins...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'




Crepúsculo


É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.


David Mourão Ferreira

As nossas madrugadas



Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É raiva
então ciume
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales


Maria Teresa Horta



T. S. Eliot The Shadows Of Rainbow

(Ao Ricardo Rangel e ao Kok Nam)


1. The formal word exact without vulgarity
A história agora é o Iraque, já que nós, bronzeos,
e a história somos o molde. Na voz do sangue,
há sempre um negro ou cigano de violão azul.

Há um tempo para as estrelas dormirem
e outro para fazerem amor; quer dizer,
copular de olhos acesos ou já mortiços.

E inútil esbracejar ante os verdugos.
Diriam: espera assim, vergastado, pois virá
a escuridão. Teremos luz, o vinho, a dança, a orgia,
porque, sabes, os cavalos também se abatem. E as flores!
(Não é cada poema o caixão, o epitáfio, o ilegível mármore?)

2. Temos, há muito, sibilas, na boca e na garganta índicas.
Angoche ou Zavala são só luzes fixas pela "Nikon"?!
Temos a perturbação no vórtice das aves, na plena
rotação de iluminações luarentas; e há veios raivosos
de conversas cerca das gazelas e da pose eterna das garças.
Há rostos no oculto e este cheira a crime, a incursão
de uma balada de tiros, com odor perfeito, único,
do espumoso aberto às nossas 24 horas. Mas é do lar
da amizade ou da submissão? As praias e as reservas
devoram turistas e seus iates, aviões a jacto (ou, poeta,
da jactância?), pela agitação de tanto cascalho marinho.

And do not think of the fruit of action

3. É inútil esbracejar, se hispar a artéria do jazz
de um encenado morremorrer na Julius Nyerere
ou nos pês-agás da Coop. Ei-lo, o grito de Átila!
E ele tem alvos; não cessa o que, ímpio, enlameia
esta tecla (secas, fome; dilúvios, miséria!) de Dali,
de três metros suficientes para um poeta dizê-lo:
"Temos a cama franca, a mulher, útil paixão!"

Into another intensity; o fim é sempre evolução.


Heliodoro Baptista

Tortura

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!

Florbela Espanca






Esperança

Por entre as margens da esperança e da morte
meteste a tua mão
e
eu vi alongados nas águas
os dedos que me agarram

em lagoa de um sonho
corpo de jacaré
é soturna jangada de palavras secas
por entre as margens da esperança e da morte
Mão

Arlindo Barbeitos (poeta angolano)



A chamada inspiração


Gotas quase poeira de cacimba
caindo sobre as palmas das mãos
como em floresta desvirginada
e exposta nua de memórias
ao sol da primeira lavra.

Não queima nem lacera nem alivia.

Percute a descoberta palavra
para ser primitivo rastilho
do poema vivo candente.
E cresce na voz que temos
nas veias desde sempre.


Orlando Mendes




Já não vivo, só penso



Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.

Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.

Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,

ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.

Fernanda de Castro

Nocturno


Dentro dos finos dedos das árvores quietas
a noite dorme um longo sono transparente

junto das tépidas aves de olhos ausentes
da clara madrugada que ainda não surgiu.

O esparso e denso azul silêncio ressente-se
e simula agitar-se a uma brisa ténue que não existe,

(e contornaria os muros pálidos e inertes
sem tocar o secreto e desconhecido íntimo das pedras).

Tudo se contém no contorno fixo do seu limite.

Só o mar se desdobra e reflecte inquietamente
a vigília inútil e cansada das estrelas.

Glória de Sant'Anna


3 dimensões

(para a Carol e o Nuno)

Na cabina
o deus da máquina
de boné e ganga
tem na mão o segredo das bielas.

Na carruagem
o deus da primeira classe
arquitecta projectos no ar condicionado.

E no ramal
- pés espalmados no aço dos carris -
rebenta pulmões o deus
negro da zorra.

José Craveirinha


Onde quer que o encontres


Onde quer que o encontres
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo – é teu,

para sempre, o meu nome.


Maria do Rosário Pedreira


28.6.08

Amor de fixação



Há um caminho marítimo no meu gostar de ti.
Há um porto por achar no verbo amar
há um demandar um longe que é aqui.
E o meu gostar de ti é este mar.

Há um Duarte Pacheco em eu gostar
de ti. Há um saber pela experiência
o que em muitos é só um efabular.
Que de naugrágios é feita esta ciência

que é eu gostar de ti como um buscar
as índias que afinal eram aqui.
Ai terras de Aquém-Mar (a-quem-amar)

naus a voltar no meu gostar de ti:
levai-me ao velho pinho do meu lar
eu o vi longe e nele me perdi.





Dum grande poeta


Dum grande poeta deu-se o nome
a uma rua suburbana

nem tanto quis em vida

das «solidões lacustres»
que seu facho ainda alumia
dos nítidos e urbanos
dias ermos
escreveu e morreu

um dia
trocou o amor já anunciado das mulheres
e o tráfico das emoções nos espectáculos
pela paz indissolúvel

os demais resistiram
estão em bronze nas sessões camarárias
nos jardins de infância
nos largos das cidades marítimas

a ele deu-se uma rua suburbana

sua lisa fronte maldita
não se cobre da pátina das inscrições no mármore

de regresso a casa
com a lua mortiça ponderável nas nucas
fulge limpidamente
nas memórias mais graves
dos melhores de nós.


Sebastião Alba

Desencontro



Não ter morada
Habitar
Como um beijo
Entre os lábios
Fingir-se ausente
E suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces


Mia Couto
Moçambique

Para rir com olhos tristes


Estão sentados
com olhos claros
e frente a frente
mostrando através dos lábios
e de súbito
agudas pontas de alfinetes

Tombam as palavras
em branda frase
fluentes
e entre cada
tão súbtil ao pensamento
gumes de espada

E mãos paradas
ou antes
pegando gráceis
no cristal frágil tonalizado
pelo vinho puro
ainda marcado do sol nas
folhas da ingénua vide

E olhando em volta
(perfis e faces e frontes altas
sorrisos ágeis, pupilas frias)
não volto as costas
à hora exígua

só me pergunto que faço aqui


Glória de Sant'Anna

O ponto



Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto.


Reinaldo Ferreira


A descoberta da rosa


Dez anos de poesia, fora a gaveta
e descubro que, a não ser ocasionalmente
e em ar de troça, jamais me debrucei
deveras sobre o tema da rosa. De resto
eram para mim, creio, marginais as flores.
Vícios de formação e juventude,
uma tão intensa preocupação do humano
que olvidei a discreta angústia da rosa.
Outros, não o ignoro, nela tiveram seu princípio
para a deixarem depois esquecida entre as páginas
de um qualquer velho livro, tão cheios eles,
de ternura e simpatia fraternas, coisas
que já eludem este coração envilecido.
Salvo o devido respeito por tudo quanto é útil
e estimável na terra, faltam-me o tempo
e o ânimo para as empreitadas mais ingentes.
E o pouco que me sobra tenciono aplicá-lo
em tarefas humildes como o cultivo
destes versos, algum súbito amor inadíavel
e a lenta e minuciosa descoberta da rosa.


Rui Knopfli



Olhos Enxutos


Olhos enxutos
na dor de luto
é suplício exclusivo
de quem mais sofre
quanto menos chora.

José Craveirinha

27.6.08


Azul



Adivinhei-te
através da verdura azul,
colhendo as flores
que iam abrir na próxima primavera.

Eu era o andarilho sem cansaço,
os bolsos cheios de tesoiros desprezados:
os seixos
que as águas modelaram durante milhões de anos,
as asas
que as borboletas entregaram aos ventos,
as sementes
que entram pelas janelas dos comboios e querem
dialogar connosco…


(Um raio de sol
acariciava a tua face
através da verdura azul!...)


Saúl Dias





Na ilha por vezes habitada do que somos,
há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente
e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável:
o contorno, a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres,
com a paz e o sorriso de quem se reconhece
e viajou à roda do mundo infatigável,
porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.


José Saramago


Monotonia


Começar, recomeçar, interminantemente repetir um
monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in-
sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver...
Andar como os dementes pelos cantos a repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã-
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.

Monotonia. Arte, vida...
Não serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar.
Que te manejarei hábil e serena.
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.


Irene Lisboa



Versos desencontrados


Em nada ou em ninguém
Eu deveria acreditar!
Nem no amor, nem na vida. - As ilusões,
Mesmo até quando vêm disfarçadas
E já conhecem o cliente, hesitam,
E chegam a partir envergonhadas...
As ilusões -
Também têm os seus mais preferidos;
E àqueles que ficaram na ruína
Do pensamento, e são - por graça de conquista
Os pálidos mortais desiludidos,
A esses já não correm muito afoitas
Na mentira das grandes fantasias!
- É por isso que eu hoje ainda vivo
À margem das ridículas tragédias
Que lemos nos jornais todos os dias.
Atulham-se os presídios; no degredo,
Atados à saudade, vão ficando,
- Como lesmas ao luar, esses que matam,
E pelo amor tombaram na desgraça:
- Um sonho, um beijo, uma mulher que passa!
Só a guitarra os lembra ao triste fado
Nos ecos diluídos e chorosos
E fundos do lusíada, coitado!
Eu olho para tudo que enxameia
Nesta viela escura da existência
Como quem se debruça num abismo
E fica revolvendo a consciência
Na tristeza infinita de um olhar!...
- A humanidade é vil e o seu egoísmo
Tem base na vileza de vexar.
Sim;
Por qualquer coisa os homens tudo vendem:
Palavra, dignidade, a própria vida,
Só porque desconhecem a doutrina
Bendita de Jesus; - esse tesoiro,
Essa fonte de luz onde aprendi
A ser leal e amigo e a respeitar
Aquela que nos risos do meu lar
Desembaraça os fios de uma queixa
No mistério que cinge o verbo amar.
Mas quando um ano acaba e outro vem,
Embora a minha fronte e os meus cabelos
Envelheçam na marcha para o fim
E um sabor de renúncia e de cansaço
Vibre, cantando, aqui, dentro de mim,
Rebenta-me no peito uma esperança
Tão lúcida, tão viva, e tão ungida
Na fé que ponho erguendo a minha prece -
Que peço a Deus do fundo da minha alma
Que a todos os que sofrem neste mundo
Dê o conforto de uma vida calma.


António Botto


Sonho Desfeito


Quando o Sonho, batendo as asas doidamente,
Voa como falena errante, no infinito,
Cuido que ao pé de mim, voluptuosamente,
Cravas no meu olhar o teu olhar bendito.

E no delírio em que eu nervosamente fito
A curva do teu seio elástico e tremente,
Atrevo-me a poisar, nostálgico proscrito,
Meus lábios sem pudor sobre o teu colo ardente.

Mas como o vento espalha as húmidas neblinas,
Diluídas no vapor das névoas matutinas
A quimera, a ilusão de estranho visionário,

Vejo que o teu sorriso, ó casta Margarida!
Apenas me envolveu, luar da minha vida,
No tépido clarão dum beijo imaginário! …


António Feijó


Embuça-se o divino no profano


Tomai-me as ancas fartas dão para égua
e as açucenas que ainda são mamudas.
Dos olhos tomai pranto, é boa rega,
já que a chorar por vós vos dei fartura.

Dos ouvidos, silvos que os ocuparam
tomai que até farelo pus em música.
Calo a farinha. Anjos a trituraram.
De agro celeste, o grão não mói a Musa.

De árduos sentidos que chamais pecados
tomai só os mortais. Dão uma récua.
Dos imortais nem um que são velados
por vapores de alvorada paraclética.

Tomai riso também se quereis folia:
mete rabeca e balho o Sprito Santo.
Nos fúlgidos milagres da pombinha
embuça-se o divino no profano.

Tomai polme a ferver de ilhoa irada,
mesmo o coice que dá depois de morta.
Eu deito fogo para não ser queimada.
Mas serva e cerva sou por trás da porta.

Tomai gestos que são dos sete palmos
e para vermes eu não ponho a rubrica.
De publicar-me em pó estais perdoados.
Devo-me eterna vendida em hasta pública.

Traficantes de peles, à puridade
vos digo: só mentira arrecadais.
Porque tal como o lótus, a verdade
vos dou na comunhão que não tomais.


Natália Correia



Luar numa Rua


A rua: sem vozes, lisa e brilhando
Sob a luz fria da Lua.
Nada quebra a maravilha
Duma paisagem assim,
Imperturbável,
Estranha...

Os candeeiros esguios
Acentuam a beleza
Já de si tão de outro mundo
Desta rua à luz da Lua
Onde lucilam miragens
A esta hora tamanha.

Há coisas que se pressentem,
Mistérios, enormidades,
Espreitando das esquinas,
Escondidos nos recantos,
Coisas em que pensar
Quando se anda sòzinho,
Sozinho de madrugada...

O luar quebra-se em linhas
Que desconjuntam as casas
De dia tão bem seguras,
E sobem de lá do fundo
Das gavetas do passado
A esta hora de espantos
Murmúrios quase gelados...

Velha luz das madrugadas
Nas ruas tão conhecidas!
Luz sincera, companheira
Do passear, horas mortas,
Levando de braço dado
A legião das imagens
De toda a vida vivida,
O calor bom companheiro
Da vida que foi, um dia...


Adolfo Casais Monteiro


24.6.08


Encostei-me a ti...


Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)


Explicação


O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.

Deus não fala comigo - e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce...
- espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória
sem margens.

Alguém conta a minha história
e alguém mata os personagens.)


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

23.6.08


Fins de Junho


hostingpics.net

Sinto-me olhada a furto.
Olham-me,
espiam-me
com modo céptico
e meio terno.
Entra em mim,
torna-me inteira
um estranho retraimento,
desdém,
ou indiferença.
A minha vontade é de fugir,
de me libertar,
de me recuperar...

Depois, fora,
oprimida
e entristecida,
desejo reconstituir,
sem saber bem como,
o fio trémulo da vida...
Desejo sentir-me apreciada,
enobrecida!

Irene Lisboa

Guerra



Aos que ficam
resta o recurso
de se vestirem de luto
.......................................
Ah, cidades!
Favos de pedra
macias amortecedores de bombas.

José Craveirinha



22.6.08


Pregão de Revolta


Escravos!
chegou o tempo de acabar
as canções de declínio!
Que se apaguem
os ecos das sujeições e dos receios
pois já os braços se erguem
sem medo das queimaduras!
Dor, aniquilamento, vozes de desânimo,
tudo isso,
mas nunca orar de mãos postas
ante as imagens grosseiras
da nossa própria cobardia!


Adolfo Casais Monteiro


Da cumplicidade memorial ou o receio de plagiar


quando aconteço me dando em poemas
julgo-me adúltero já doutros poetas

as mesmas palavras com que me venço
são aquelas que a qualquer se rendem

e o ritmo em que me sego e me colho
vem já do berço da comum sementeira

sei lá quantos outros em mim respiram
quantos eus por aí germinam

e já nem sequer me intimidam
nos versos antes de mim mesmo devassados
outras cancelas já velhas de inspiração

quero-me até cada vez mais comungado
na subtil reconquista de nós próprios

só me repugna e me atormenta
a íntima heresia involuntária

de me ver traído crucificado
num milímetro que seja
de cumplicidade memorial

e desde já perante vós me penitencio
oh poetas e amantes
que meus versos decantarão
para que saibam agora todos
nos limites deste poema ainda
que nada falece da minha lavra
que minhas ideias e meus escritos
mais vos pertencem que a mim próprio

e ainda vos digo ora também
que lúcido e pleno me devolvo
nesta humilde entrega total

para que libertem os meus poemas
em milhões de outros poetas


Rui Nogar
Moçambique

Viesses tu, Poesia



Viesses tu, Poesia
e o mais estava certo.
Viesses no deserto,
viesses na tristeza,
viesses com a Morte...

Que alegria mereço, ou que pomar,
se os não justificar,
Poesia,
a tua vara mágica?

Bem sei: antes de ti foi a Mulher,
foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água...
Mas tu é que disseste e os apontaste:
- Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.
E logo froam graça, aparição, presença,
sinal...

(Sem ti, sem ti que fora
das rosas?
Mortas, mortas pra sempre na primeira,
mortas à primeira hora.)

Ó Poesia!, viesses
na hora desolada
e regressara tudo
à graça do princípio...


Sebastião da Gama