30.1.07

A esposa


Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.

E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha - e o seu olhar é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.

Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante...

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente...
Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.

Rio de Janeiro, 1933

Vinícius de Moraes (poeta brasileiro)


29.1.07

Naufrágio


Ai a tristeza do vento
chorando...
Ai as nuvens indo à solta
em louca corrida
medrosas, fugindo à mão estendida...
Ai a solidão dos montes
despidos,
à nossa volta
onde a vida aos poucos se consome
- seios nus ensanguentados
onde as raízes
morrem de fome...

... E nos rostos ensombrados
rondam saudades: - países
navegam velas: distâncias...
Gestos parados
caladas ânsias
gritos sem voz...

Dorme Nosso senhor Só
dentro de cada um de nós,
envolvido pelo pó
que o vento remexeu e levantou.

Ai este Atlântico triste
que nos deu a nostalgia
dum mundo que só existe
no sonho que ele povoou...


Jorge Barbosa (poeta caboverdiano)

Chorosos versos meus desentoados


IV

Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça tristeza envenenados;

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania.

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.

Bocage



É um sonho ou talvez só uma pausa

na penumbra. Esta massa obscura

que ela revolve nas águas são estrelas.

Entre aromas e cores, um barco de calcário

prossegue uma viagem imóvel num jardim.

Vejo a brancura entre os astros e os ramos.

Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra

e que tudo ascende sob um sopro silencioso.

Nenhum sentido mas os signos amam-se

e o brilho e o rumor formam um mundo.


António Ramos Rosa



Vigília


Altas horas da noite.
Acordado,
Rememoro o passado,
Analiso o presente
E adivinho o futuro.
Procuro,
Humanamente,
Dar sentido
Ao que fui,
Ao que sou
E ao que serei.
Mas a minha verdade
Não tem a claridade
Da razão.
É esta aflição
Continuada
Que no meu coração
Bate descompassada.

Miguel Torga

28.1.07


Para João XXIII


Porque não sei de Deus não trago preces.
Sou apenas um homem de boa vontade.
Creio nos homens que acreditam como tu nos homens
creio no teu sorriso fraternal
e no teu jeito de dizer
quase como quem semeia
as palavras que são
trigo da vida.
Creio na paz e na justiça
creio na liberdade
e creio nesse coração terreno e alto
com raízes no céu e em Sotto il Monte
De Deus não sei. Mas quase creio
que Deus poisou nas mãos cheias de terra
dum jovem camponês de Sotto il Monte.

Por isso mando à Praça de S. Pedro
não uma prece
mas a minha canção fraterna e livre
esta canção
que vai pedir-te a humana benção
João XXIII avô do século.


Manuel Alegre


Eu ouso a paixão


Eu ouso a paixão
não a recuso

Escuto os sentidos sem o medo por perto
troco a ternura da rosa
ponho a onda no deserto

A tudo o que é impossível
abro e rasgo o coração
Debaixo coloco a mão
para colher o incerto

Desembuço o amor
no calor da emboscada
infrinjo regras e impeço

Troco o sonho dos deuses
por um pequeno nada

Desobedeço ao preceito
e desarrumo a paixão
Teço e bordo o meu avesso
e desacerto a razão


Maria Teresa Horta


Neurastenia


Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Maria!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...


O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza...


Chuva... tenho tristeza! Mas porquê?!
Vento... tenho saudades! Mas de quê?!
Ó neve que destino triste o nosso!


Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!...


Florbela Espanca





Adeus!


Adeus, para sempre adeus!
Vai-te, oh! vai-te, que nesta hora
Sinto a justiça dos céus
Esmagar-me a alma que chora.
Choro porque não te amei,
Choro o amor que me tiveste;
O que eu perco, bem no sei,
Mas tu... tu nada perdeste;
Que este mau coração meu
Nos secretos escaninhos
Tem venenos tão daninhos
Que o seu poder só sei eu.

Oh! vai... para sempre adeus!
Vai, que há justiça nos céus.
Sinto gerar a peçonha
Do ulcerado coração
Essa víbora medonha
Que por seu fatal condão
Há-de rasgá-lo ao nascer:
Há-de sim, serás vingada,
E o meu castigo há-de ser
Ciúme de ver-te amada,
Remorso de te perder.

Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,
Que sou eu capaz agora
De te amar - Ai! se eu te amasse!
Vê se no árido pragal
Deste peito se ateasse
De amor o incêndio fatal! -
Mais negro e feio no inferno
Não chameja o fogo eterno.

Que sim? Que antes isso? - Ai, triste!
Não sabes o que pediste.
Não te bastou suportar
O cepo-rei; impaciente
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!

E cuidas amar-me ainda?
Enganas-te: é morta, é finda,
Dissipada é a ilusão.
Do meigo azul de teus olhos
Tanta lágrima verteste,
Tanto esse orvalho celeste
Derramado o viste em vão
Nesta seara de abrolhos,
Que a fonte secou. Agora
Amarás... sim, hás-de amar,
Amar deves... Muito embora...
Oh! mas noutro hás-de sonhar
Os sonhos de oiro encantados
Que o mundo chamou amores.

E eu réprobo... eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
Der a luz de teus ardores...
Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
Me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
Também eu sonhar... Perdida,
Perdida serás - perdida.

Oh! vai-te, vai, longe embora!
Que te lembre sempre e agora
Que não te amei nunca... ai! não;
E que pude a sangue frio,
Covarde, infame, vilão,
Gozar-te - mentir sem brio,
Sem alma, sem dó, sem pejo,
Cometendo em cada beijo
Um crime... Ai! triste, não chores,
Não chores, anjo do céu,
Que o desonrado sou eu.

Perdoar-me tu?... Não mereço.
A imundo cerdo voraz
Essas pérolas de preço
Não as deites: é capaz
De as desprezar na torpeza
De sua bruta natureza.
Irada te há-de admirar,
Despeitosa, respeitar,
Mas indulgente... Oh! o perdão
É perdido no vilão,
Que de ti há-de zombar.

Vai, vai... para sempre adeus!
Para sempre aos olhos meus
Sumido seja o clarão
De tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para entendê-la:
Alta está no firmamento
Demais, e demais é bela
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o encantamento
Com que a luz lhe fascinei.

Que volte a sua beleza
Do azul do céu à pureza,
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
Como é negro este aleijão
Donde me vem sangue às veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra - e não cabe
Nele uma ideia dos céus...
Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!

"Nem tágides nem musas:
só uma força que me vem de dentro,
de ponto de loucura, de poço
que me assusta,
seduzindo"

Almeida Garret


Silêncio amoroso I



Deixa que eu te ame em silêncio
Não pergunte, não se explique, deixe
que nossas línguas se toques, e as bocas
e a pele
falem seus líquidos desejos.

Deixa que eu te ame sem palavras
a não ser aquelas que na lembrança ficarão
pulsando para sempre
como se o amor e a vida
fosse um discurso
de impronunciáveis emoções.


Affonso Romano de Sant'Anna
(poeta brasileiro)

Acento


Vem dos montes friíssimos da Noruega
onde te sonhei para beberes estrelas
e caminhar a custo entre as cascatas
onde a ternura é um escadote
e o ar um caracol de planetas nas órbitas.


António Maria Lisboa

27.1.07

Fala do homem nascido

Chega à boca da cena, e diz:

Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.
Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se faz ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.

António Gedeão





Projecto de Prefácio


Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.


Mário Quintana (poeta brasileiro)


23.1.07

Mataram a Tuna


Nos Domingos antigos do bibe e pião
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.

Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve.
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.

Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor...
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar...)
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!

Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha
parecia até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.

Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!

Meus companheiros antigos do bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretarias do comércio.
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!

Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita
despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!


Manuel da Fonseca



A tua voz fala amorosa...


Qual é a tarde por achar
Em que teremos todos razão
E respiraremos o bom ar
Da alameda sendo verão,

Ou, sendo inverno, baste 'star

Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual é a tarde por voltar?
Essa tarde houve, e agora não.

Qual é a mão cariciosa

Que há de ser enfermeira minha —
Sem doenças minha vida ousa —
Oh, essa mão é morta e osso ...
Só a lembrança me acarinha
O coração com que não posso.

Fernando Pessoa

Desde sempre


Na minha frente, no cinema escuro e silencioso
Eu vejo as imagens musicalmente rítmicas
Narrando a beleza suave de um drama de amor.
Atrás de mim, no cinema escuro e silencioso
Ouço vozes surdas, viciadas
Vivendo a miséria de uma comédia de carne.
Cada beijo longo e casto do drama
Corresponde a cada beijo ruidoso e sensual da comédia
Minha alma recolhe a carícia de um
E a minha carne a brutalidade do outro.
Eu me angustio.
Desespera-me não me perder da comédia ridícula e falsa
Para me integrar definitivamente no drama.
Sinto a minha carne curiosa prendendo-me às palavras implorantes
Que ambos se trocam na agitação do sexo.
Tento fugir para a imagem pura e melodiosa
Mas ouço terrivelmente tudo
Sem poder tapar os ouvidos.
Num impulso fujo, vou para longe do casal impudico
Para somente poder ver a imagem.
Mas é tarde. Olho o drama sem mais penetrar-lhe a beleza
Minha imaginação cria o fim da comédia que é sempre o mesmo fim
E me penetra a alma uma tristeza infinita
Como se para mim tudo tivesse morrido.

Rio de Janeiro, 1933

Vinícius de Moraes (poeta brasileiro)


22.1.07


Estranha noite


Estranha noite velada,
Sem estrelas e sem lua.
Em cuja bruma recua
Fantasma de si mesma cada imagem
Jaz em ruínas a paisagem,
A dissolução habita cada linha.
Enorme, lenta e vaga
A noite ferozmente apaga
Tudo quanto eu era e quanto eu tinha
E mais silenciosa do que um lago,
Sobre a agonia desse mundo vago,

A morte dança
E em seu redor tudo recua
Sem força e sem esperança.
Tudo o que era certo se dissolve;
O mar e a praia tudo se resolve
Na mesma solidão eterna e nua.


Jorge Barbosa (poeta caboverdiano)

Incultas produções da mocidade


III

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores.

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.


Bocage



Aspiração

Meus dias vão correndo vagarosos,
Sem prazer e sem dor parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém, do pressentir dá-ma a certeza,
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!


Antero de Quental



Quem escreve quer morrer, quer renascer

num ébrio barco de calma confiança.

Quem escreve quer dormir em ombros matinais

e na boca das coisas ser lágrima animal

ou o sorriso da árvore. Quem escreve

quer ser terra sobre terra, solidão

adorada, resplandecente, odor de morte

e o rumor do sol, a sede da serpente,

o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,

o negro meio-dia sobre os olhos.


António Ramos Rosa



Prenda de Aniversário


É o que ficou.
A lembrança perene
Do que fomos, sentimos e pudemos
No tempo intemporal da juventude.
Ilusões de energia e de saúde
Em cada gesto que já não fazemos,
Mas apetecemos.
É o vazio de nós
Cheio de nós.
As indeléveis pegadas que deixamos
Nos líricos caminhos percorridos
Invisíveis à vista desarmada.
É o que ficou. O calor memorado
Da fogueira apagada.
Todos os Orientes da imaginação,
Visitados,
Presentes no arroz quotidiano
Comido destramente
Com triviais tridentes
Ocidentais.
É o que ficou e ficará, Mulher,
A cinza destes versos invernais
De amor e de tristeza,
E a íntima certeza
De que é tudo verdade
O que de nós disser
A mudez da saudade.


Miguel Torga

21.1.07


Livreiro da Esperança


Há homens que são capazes
duma flor onde
as flores não nascem.
Outros abrem velhas portas
em velhas casas fechadas há muito
Outros ainda despedaçam muros
acendem nas praças uma rosa de fogo.
Tu vendes livros quer dizer
entregas a cada homem
teu coração dentro de cada livro.


Manuel Alegre



As minhas ilusões


Hora sagrada dum entardecer
De Outono, à beira-mar, cor de safira,
Soa no ar uma invisível lira...
O sol é um doente a enlanguescer...


A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num último suspiro, a estremecer!


O sol morreu... e veste luto o mar...
E eu vejo a urna d’oiro, a baloiçar,
À flor das ondas, num lençol d’espuma!


As minhas Ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna d’oiro,
No mar da Vida, assim... uma por uma...


Florbela Espanca





Num álbum



O poeta é um ente sempre enfermo,
Nas algibeiras nunca tem dinheiro,
Sustenta-se do ar como o pinheiro,
E assim como o pinheiro habita o ermo.

João de Deus

Arte-final


Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.

O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.

Uma coisa é a letra,
e outra o acto, quem toma uma por outra
confunde e mente.


Affonso romano de Sant'Anna
(poeta brasileiro)

20.1.07


À Flor das Vagas


Vai a barca do mundo à flor das vagas
No seu mar de tormentas;

Gemem os remadores,

Mordidos pelo beijo de chicote;

E tu, poeta, como um sacerdote,

Da bonança,

A conjurar o mal,

A cantar,

Sem nenhum desespero,

Te desesperar!

Sabe cada ternura a pão azedo

Os acenos são olhos disfarçados;

E os teus versos,

Gratuitos, desfolhados,

Sobre as chagas da vida

Como pensos sagrados

De beleza calmante e condoída!


Que humanidade tens, irmão?

De onde te vem a força, a decisão

E esse gosto de nunca desertar?

És o Cristo, talvez...

Um Cristo sem altar

Que ficaste a lutar

Junto de nós,

Tão presente, real e natural,

Que podemos ouvir-lhe a própria voz.


Miguel Torga


Amor é síntese


Por favor, não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu.
Se ninguém resiste a uma análise profunda,
Quanto mais eu...
Ciumento, exigente, inseguro, carente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor.

Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr
Não me corte em fatias
Ninguém consegue abraçar um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei o perfeito amor.

Mário Quintana (poeta brasileiro)






Minha Mãe

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: - Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.


Vinicius de Moraes (poeta brasileiro)

18.1.07


Gosto do mar desesperado
A bramir e a lutar
E gosto de um barco ainda mais ousado
Sobre esta rebeldia a navegar


Miguel Torga

16.1.07

Non posso eu, meu amigo

- Non posso eu, meu amigo,

con vossa soidade
viver, ben vo-lo digo;
e por esto morade,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.

Non posso u vos non vejo
viver, ben o creede,
tan muito vos desejo;
e por esto vivede,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.

Nasci em forte ponto;
e, amigo, partide
o meu gran mal sen conto,
e por esto guaride,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.

- Guarrei, ben o creades,
senhor, u me mandades.

D. Dinis

O bom pastor

Amo andar pelas tardes sem som, brandas, maravilhosas
Com riscos de andorinhas pelo céu.
Amo ir solitário pelos caminhos
Olhando a tarde parada no tempo
Parada no céu como um pássaro em vôo
E que vem de asas largas se abatendo.
Amo desvendar a vaga penumbra que desce
Amo sentir o ar sem movimento, a luz sem vida
Tudo interiorizado, tudo paralisado na oração calma...

Amo andar nessas tardes...
Sinto-me penetrando o sereno vazio de tudo
Como um raio de luz.
Cresço, projeto-me ao infinito, agitando
Para consolar as árvores angustiadas
E acalmar os pinheiros moribundos.
Desço aos vales como uma sombra de montanha
Buscando poesia nos rios parados.
Sou como o bom-pastor da natureza
Que recolhe a alma do seu rebanho
No agasalho da sua alma...E amo voltar
Quando tudo não é mais que uma saudade
Do momento suspenso que foi...
Amo voltar quando a noite palpita
Nas primeiras estrelas claras...
Amo vir com a aragem que começa a descer das montanhas
Trazendo cheiros agrestes de selva...
E pelos caminhos já percorridos,voltando com a noite
Amo sonhar...

Rio de Janeiro, 1933


Vinícius de Moraes (poeta brasileiro)

15.1.07


Cinzeiro


À noute quando escrevo
tenho fantasias
que não chego a escrever
nem conto a ninguém

Esta, por exemplo,
de ver um paquete
no meu cinzeiro
de feitio oblongo!

Ponho nele, de pé,
as pontas dos cigarros.
São mastros
E chaminés fumegantes...

Os fósforos
são carregamento
e a cinza
são as cinzas das fornalhas...

Deito nele
pedacinhos de papel que eu rasgo,
- restos de algum poema...
São cartas para longe.

Voam à roda do meu cinzeiro
pequeninos insectos tropicais
companheiros nocturnos
dos poetas da minha terra

São os pássaros marinhos,
as gaivotas
que vêm espreitar
de perto o paquete

Empurro-o com a mão
e o paquete lá vai
com o rumo traçado
através do Atlântico

Lá vai!
E como é bom partir
mesmo dentro
da nossa fantasia
Lá vai!
Os passageiros da primeira
passeiam no deck
ou jogam o bridge...

E a rapariga loura
estira-se indolente
na cadeira de lona
a ler um romance...

No convés da terceira classe
um emigrante qualquer
debruçou-se na borda
olhando o horizonte...

Sou eu.

Jorge Barbosa (poeta caboverdiano)

Das faixas infantis despido apenas


II

Das faixas infantis despido apenas,
Sentia o sacro fogo arder na mente;
Meu tenro coração inda inocente,
Iam ganhando as plácidas Camenas.

Faces gentis, angélicas, serenas,
De olhos suaves o volver fulgente,
Da ideia me extraíam de repente
Mil simples, maviosas cantilenas.

O tempo me soprou fervor divino,
E as Musas me fizeram desgraçado,
Desgraçado me fez o deus-menino.

A Amor quis esquivar-me, e ao dom sagrado:
Mas vendo no meu génio o mau destino,
Que havia de fazer? Cedi ao fado.


Bocage


À João de Deus


Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida;
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degrêdo, o céu destino.


Antero de Quental


14.1.07


Ilha de Cós


Eu sabia que tinha de haver um sítio
Onde o humano e o divino se tocassem
Não propriamente a terra do sagrado
Mas uma terra para o homem e para os deuses
Feitos à sua imagem e semelhança
Um lugar de harmonia
Com sua tragédia é certo
Mas onde a luz incita à busca da verdade
E onde o homem não tem outros limites
Senão os da sua própria liberdade


Manuel Alegre


Tenho o nome duma flor
quando me chamas.
Quando me tocas,
nem eu sei
se sou água, rapariga,
ou algum pomar que atravessei.


Eugénio de Andrade