30.8.11

Das frutas noite e dia



(Reabre-se o pano: Eis que frutal e louco,
ele entra em cena para fazer o madrigal.
Imagina-se o diálogo das frutas entrelaçadas no cesto.
Mais arfantes do que plásticas, elas se permitem à fala)

Solfejo no gosto de pitanga o acordar contigo
O arfar fruído, quando não tão-só flutuante
- e há de o sol descrever seu arco no diurno -,
Em que as horas soluçantes se perdem…

Dou graças ao cajá e à fruta-do-conde, a terra,
O vento, a água, o ar e o arfante deste animal,
Medusa, como dizes, que petrificas de olhar,
Para além das cobras do teu “dread”…

Cai a noite e, de brumosa tocatina, dançam
Os pés que, embebidos no teu pântano, és tu
Virada pelo avesso, manga rosa e seu reverso…

E quando, em carnuda, me mordem os lábios,
desfeito em rosa manga, de laço e de caroço, eu
amanheço, resinado e pura fruta, nesse leito…


Filinto Elísio
Cabo Verde

São estas diferenças que partilho



São estas diferenças que partilho:
eclesiástica palavra tu és uma igreja

nutrida uma palavra
espiga outra palavra

levantas-me escolástica o nervo
com a tua dor;
aurora com o teu lume,

álgebra inquieta não somarias
o tempo que não partilho.


João Tala
Angola

29.8.11

Amor feinho


Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.

Adélia Prado
Brasil

24.8.11

Lembrança



passa um vento morno,
um vento morno
na trémula palmeira,
na neblina prateada.

envoltos na ténue distância
morros azuis de mata
já ao longe.
algures um sino suave tange.

no vento ondula como flâmula
uma saia berrante cor de sangue.

ávores de fruto pão
bailando, mãos abertas,
leques de bananeiras
oscilando lentamente.

visão fugidia, retratada
por inteiro
no livro silencioso da memória.

lembrança de s. Tomé,
sangue, trémula e prateada…

saudade de s. tomé


Neves e Sousa
Angola

Molembú



Molembu minha rocinha
meu perfume de untué
minha riqueza perdida
num grãozinho de café

meu cacaueiro d'esperança
minha jaca abençoada
minha mangueira, meu jamble
minha cola desejada

minha amiga mandioca
entre o sisal escondida
minha banana meu pão
sustento da nossa vida

minha palmeira materna
meu coqueiro secular
minha fruteira d'encanto
descanso do meu olhar

Molembu minha rocinha
meu capim, minha floresta
meus passarinhos cantando
numa grinalda de festa

meu unkuêtê, minha rosa
de madeira e porcelana
meu antúrio, minha avenca
minha doçura de cana

tudo tem minha rocinha
abundância e qualidade
no distrito de Mé Zochi
para os lados da Trindade.


Maria Olinda Beja
São Tomé e Príncipe

22.8.11

Em silêncio



em silêncio
contemplo teu corpo inerte
ao alcance das minhas mãos

nenhum som perdido
na madrugada

intrusa,
a lua espreita pelo vão da janela
o movimento dos meus dedos.


Ademir Antonio Bacca
Brasil

Localizaste o tempo e o espaço no discurso



Localizaste o tempo e o espaço no discurso
que não se gatografa impunemente.
É ilusório pensar que restam dúvidas
e repetir o pedido imediato.
O nome morto vira lápide,
falsa impressão de eternidade.
Nem mesmo o cio exterior escapa
à presa discursiva que não sabe.
Nem mesmo o gosto frio de cerveja no teu corpo
se localiza solto na grafia.
Por mais que se gastem sete vidas
a pressa do discurso recomeça a recontá-las
fixamente, sem denúncia
gatográfica que a salte e cale.


Ana Cristina César
Brasil

21.8.11

Fight


Ali na Machava
Ao óbolo de Hollywoodescas sandes ovacionando
A figurante reportagem flechando o fight
De inchados murros achinados
Foreman levou o chão
Com o raio de vietcongo K. O. de desforra!


Amin Nordine
Moçambique

19.8.11

Das aparências



(e um pouco mais além)

Lunalva

Se quiserem saber quem sou
- Não sei quem sou
Só sei que em mim
A sombra e a luz
São vultos
Que se buscam e se amam
Loucamente

Se quiserem saber do meu destino
- Não sei do meu destino
- Não sei do meu nome
Só sei daquela sede
Imensa sede
Que ainda não foi saciada

Se quiserem saber donde venho
- Não sei donde venho
Talvez venha do vento
Do deserto
Do mar
Ou do fundo das madrugadas

Não
Não me amem tão depressa
"Não me compreendam tão depressa"
Não me julguem tão fácil
Por favor
Não me julguem tão mesquinho
Tão quotidiano

O pão que trago comigo
- Não é pão
É fogo
O vinho que trago comigo
- Não é vinho
É sangue
E eu vos afirmo
- Todos hão de beber
Do Fogo e do Sangue


Carlos Nejar
Brasil

18.8.11

King, Martin Luther

(in memoriam)

tua voz desliza como um pássaro aberto na lâmina do dia
ilha que se levanta e voa a partir do sol
lamento gritado da floresta por sua gazela perdida
choro grande do vento nas montanhas
ao nascimento de um escravo mais na história do vale

tua voz vem de dentro da cidade
de todas as ruas de todos os bairros e leitos da cidade onde houver um calor de pernas
contar o silêncio das horas guardadas a soco no sarilho dos ventres
com um jazz-man a assobiar na escuridão dos pares
a memória ácida dos chicotes
nos porões do mundo


David Mestre
Angola

17.8.11

Se eu morrer de manhã


Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.

Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a morte é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.

Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
- o único que sei.

Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.

Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.

Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.


Rosa Lobato de Faria

Confiança



olha amor estas anharas
nelas renasce
o verde forte
do capim…

olha e escuta a vida
a borbulhar
sob a imensa sensação
de sermos nós

olha amor
e solta enfim
o brado da certeza
que não é crime
o grito à vida
e ao amor que se adivinha.

olha amor estas anharas
renasce verde
o capim da terra grávida
de bocas saciadas.

olha amor escuta
esta imensa sensação
de sermos Nós.


Costa Andrade
Angola

16.8.11

Fundo do mar



deitei-me ao teu olhar
e logo fui ao fundo…
é no fundo do mar
que o embalo é mais profundo…

andam gaivotas no ar,
tontas de luz e espaço,
e eu no fundo do mar
não sinto nem cansaço…

…nem quero salvação:
deixai-me naufragar
nessa doce prisão
do mar do teu olhar…


António Cardoso
Angola

15.8.11

Amor e alma



O amor também se faz com a alma,
almas encostadas uma à outra,
com os seus aneis erógenos,
a sua aflição,
o seu desassossego.

Casimiro de Brito

14.8.11

O verbo amar



Te amei: era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
que a alma da gente faz escrava.

Te amava: como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava.

Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!


JG de Araújo Jorge
Brasil

11.8.11

Jornal esgotado




Na ausência do jornal
lia os teus dedos.
Todos!
Um a um,
unha a unha,
soletrava-os
afincadamente.

Dedos como palavras,
mãos como frases.
Junto de ti
como de um livro
onde eu escrevesse
de passagem.


Alexandra Malheiro

A rua


Na rua larga passeiam mulheres que arrastam pelo chão
o último vison e a última visão

Casas fantasmas de tectos ideais emergem da noite em nevoeiro
vermelhas azuis verdes amarelas saídas de um tinteiro

Duas crianças brincam no passeio
duas crianças sós e sem asseio mas com passeio exclusivo
reservado para elas

Ratos e gatos jogam ao polícia e ladrão
e um cão de guarda fuma o cachimbo da paz qu segura na mão

Há sinfonias demasiado completas a dançar no ar
(nuar: verbo irregular; eu nuo, tu nuas, ele nua= nudismo geral)
e por toda a parte cavalgam os cavalos de Chagall
transpondo o arco-íris de todo o pensamento
que é realmente mento
porque só pensa é fácil
o difícil é o verdadeiro pensa-mento

No restaurante há omelettes em chamas
servidas por bombeiros voluntários
e as banheiras estão cheias de afogados mentais

A lápide de inscrição no cemitério diz apenas
a vida não deu pra mais.


Yvette K. Centeno

Poema


Chegas com gaivotas
veleiro contra o vento
e tudo o mais sobra.

Cerro os olhos:
dentro das pálpebras
o desenho do teu rosto.

Teu corpo,
um aceno às aves
que alto voam.

Sumptuosa coberta de seda
contra a minha pele, a tua.

Com a sombra das árvores
confunde-se a seiva
e a sede que nos uniu.

Ficaram por colher
em tuas mãos as cores
exultantes do Verão.

Lá fora a minha solidão
vagueia com a tua ausência.

Levo a mão ao rosto
para enxugar uma lágrima tua.

No teu rosto
leio com ternura a ruína
que ameaçou o meu


Flor Campino

8.8.11

O chamado da falésia



espera-se por tudo quando a falésia
nos chama por dentro do nevoeiro
cobrindo a ilha

nesse momento pensamos se todo o mundo
será assim vestido de bruma e limpamos
os olhos com as nuvens do horizonte

na verdade sabemos que não e o mar
é como uma estrada indicando um caminho
e o coração uma bússola para orientar a viagem

e ao chamado ecoando pelas serras verdes
e se detendo nas pedras cinzentas dos cumes
não sabemos que dizer como responder

algures apontamos um pedaço de terra
e um dia numa carta à mãe lá confessamos
estou aqui tão distante do lugar
onde num dia como nunca vi outro igual
decidi que hei-de morrer

hoje por lá mora um silêncio
sabendo a demora à saudade caiada de chuva
onde já deviam estar as paredes de cal branca
de uma casa

espere por mim


José António Gonçalves

7.8.11

A rosa - um suspiro



Se esta flor tão bela e pura,
Que apenas uma hora dura,
Tem pintado no matiz
O que o seu perfume diz,
Por certo na linda cor
Mostra um suspiro d’amor:
Dos que eu chego a conhecer
É este o maior prazer.
E a rosa como um suspiro
Há-de ser; bem se discorre:
Tem na vida o mesmo giro,
É um gosto que nasce e - morre.


Almeida Garrett

5.8.11

Fácil


É tão fácil acreditar e desacreditar.
É tão fácil aceitarmos a alegria e
tão difícil aceitarmos a perda,
seja ela qual for.

Sonhamos a liberdade,
até a de pensarmos que
temos liberdade de sonhar e sermos livres.
Mas seremos afinal livres?


Sonhar é fácil.
Como voar…

Voamos na aragem do tempo,
na utopia que tudo permite e
nos oferece o acontecer.

É livre o pensamento,
é livre o amor que povoa os corações,
é livre a música que compõe a melodia,
é livre o mar que de onda em onda nos vem banhar,
é livre o olhar que nas cores do mundo se quer encantar.

Sorrimos à liberdade da Vida.
Desejamos ser pássaro e voar
por entre as nuvens, alcançar o firmamento,
transformando-nos num ponto visível do cosmos,
onde tudo pode acontecer.
Há dois tempos de vida eternos.

Nascemos e morremos
sem querermos.
Esta é a verdadeira
Liberdade do Universo.


Tudo o resto é o que conquistamos
por acréscimo.


Otília Matel

3.8.11

O Fotógrafo


Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, nunguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difìcil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski - seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.


Manoel de Barros
Brasil

hoje, dia de todos os demónios



hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma poção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio


Mário Cesariny

À mulher



A mulher não é só casa
mulher-loiça, mulher-cama
ela é também mulher-asa,
mulher-força, mulher-chama

E é preciso dizer
dessa antiga condição
a mulher soube trazer
a cabeça e o coração

Trouxe a fábrica ao seu lar
e ordenado à cozinha
e impôs a trabalhar
a razão que sempre tinha

Trabalho não só de parto
mas também de construção
para um filho crescer farto
para um filho crescer são

A posse vai-se acabar
no tempo da liberdade
o que importa é saber estar
juntos em pé de igualdade

Desde que as coisas se tornem
naquilo que a gente quer
é igual dizer meu homem
ou dizer minha mulher


José Carlos Ary dos Santos