31.8.08

Guarda a manhã


Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão


Daniel Faria

Canção tão simples


Quem poderá domar os cavalos do vento
quem poderá domar este tropel
do pensamento
à flor da pele?

Quem poderá calar a voz do sino triste
que diz por dentro do que não se diz
a fúria em riste
do meu país?

Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passa?

Quem poderá prender os dedos farpas
que dentro da canção fazem das brisas
as armas harpas
que são precisas?


Manuel Alegre


Mistério d'amor


Um mistério que trago dentro em mim
Ajuda-me, minh'alma a descobrir...
É um mistério de sonho e de luar
Que ora me faz chorar, ora sorrir!

Viemos tanto tempo tão amigos!
E sem que o teu olhar puro toldasse
A pureza do meu. E sem que um beijo
As nossas bocas rubras desfolhasse!

Mas um dia, uma tarde... houve um fulgor,
Um olhar que brilhou... e mansamente...
Ai, dize ó meu encanto, meu amor:

Porque foi que somente nessa tarde
Nos olhamos assim tão docemente
Num grande olhar d'amor e de saudade?!


Florbela Espanca

30.8.08

Encontrei o segredo, a chave de vidro...



Encontrei o segredo, a chave de vidro
das palavras que escrevo; e tenho medo.
Talvez nos campos imensos, onde o lírio floresce,
na margem de rio que abriga, de manhã cedo,
os teus pés de ninfa, num engano de idade,
me tenhas visto à sombra de um rochedo;
e se os teus lábios, entreabertos num torpor
de romã, me tocaram num sonho bêbedo,
deles só lembro, imprecisos, fluxos
de incêndio numa hipótese de amor.

Nuno Júdice



Náufrago: em tua

Hebergeur d'images

Náufrago: em tua
vida oculta
se anuncia a luz.

Desenterrada
da sombra
uma nova alegria.

No silencioso ar
gritam os mortos
é aqui a terra.

Mas teu rosto
quebra o tédio imutável
o obscuro dialecto.

Despertas-me, escuto
o mar, o vento,
transparente como a noite.

Na semente dispersa
brota a memória
de uma dócil casa
conhecedora já
dos dramas do universo.

Ana Marques Gastão

28.8.08

O círculo...

Hebergeur d'images

O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.

Ana Hatherly
Como Ulisses te busco e desespero


Como Ulisses te busco e desespero
como Ulisses confio e desconfio
e como para o mar se vai um rio
para ti vou. Só não me canta Homero.

Mas como Ulisses passo mil perigos
escuto a sereia e a custo me sustenho
e embora tenha tudo nada tenho
que em te não tendo tudo são castigos.

Só não me canta Homero. Mas como U-
lisses vou com meu canto como um barco
ouvindo o teu chamar -- Pátria Sereia
Penélope que não te rendes -- tu

que esperas a tecer um tempo ideia
que de novo o teu povo empunhe o arco
como Ulisses por ti nesta Odisseia.


Manuel Alegre


Poema da Maternidade

Hebergeur d'images

Pode lá ser! Não quero, não consinto!
Tudo em mim se revolta: a carne, o instinto,
A minha mocidade, o meu amor,
A minha vida em flor!

É mentira! É mentira!
Se o meu filho respira,
Se o meu corpo consente,
Covardemente,
A minhalma não quer!
Eu não quero ser mãe! Basta-me ser mulher!
Basta-me ser feliz!
E o meu instinto diz:
— "Acabou-se! Acabou-se! Agora renuncia:
Começa a tua noite: acabou-se o teu dia!
Tens vinte anos? Embora! A tua mocidade
Perdeu chama e calor, perdeu a própria idade.
Resigna-te. És mulher! Foi Deus que assim o quis.
Já foste flor: agora é só raiz." —
Não pode ser! É injusta a minha sorte!
Não quero dar vida a quem me traz a morte!
O meu destino há de ter outro brilho!
Vida, quero viver! E morro, morro...

Filho!
Pode lá ser, Jesus! Eu não mereço tanto!
Filho da minha dor, eu já não choro — canto!
Filho que Deus me deu! Por quê, Senhor,
Há só uma palavra: Amor, Amor, Amor?!
"Dai-me outra voz que nunca tenha dito
Coisas más, coisas vis... e que saiba a infinito...
Dai-me outro coração, mais puro, mais profundo,

Que o meu já se quebrou de encontro ao mundo...
Dai-me outro olhar que nunca tenha olhado,
Que não tenha presente nem passado...
Dai-me outras mãos, que as minhas já tocaram
A vida e a morte... o bem e o mal... e já pecaram...

Filho, por que seria? Ao vires para mim
Mudaste num jardim
Os espinhos da minha carne triste...
E como conseguiste
Dar uma cor de sol às horas mais sombrias?

Meu menino, dorme, dorme,
E deixa-me cantar
Para afastar
A vida, um papão enorme...
Meu menino, dorme, dorme...

Vamos agora brincar...
Que brinquedo, meu menino?
O mar, o céu, esta rua?
já te dei o meu destino,
Posso bem dar-te a Lua.

Toma um navio, um cavalo,
Toma agora o mar sem fundo...
Ainda achas pouco? Deixá-lo!
Se quiseres dou-te o mundo!
Mas por que não vens brincar?
Por que preferes chorar?
Jesus! Que tem o meu filho?
Que vida estranha no brilho
Do seu olhar?

Uma vida inquieta e obscura
Anda a queimar-lhe a frescura ...

Ainda hoje, meu filho, não sorriste
E o teu olhar é triste...
Cheiras a noite, a luto, a azebre ...

Senhor! O meu filho tem febre!
O seu hálito queima, o seu olhar escalda...
Ele que tinha um olhar de estrela ou de esmeralda
E um perfume de flor,
Agora tem na boca um amargo sabor
E cheira a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
Tirai-me dos olhos toda a luz!
Livrai-me da blasfêmia... Deus! Jesus!
Pois se o meu filho morre, se agoniza,
Por que há flores no chão que ele não pisa?
Se num coval o hei de pôr, de rastros,
Por que estarão tão altos os astros?
Senhor, eu sou culpada. . . Eu sei o que é o pecado
Mas ele, meu Jesus, ainda não tem passado...
Para mim, não há mal que não aceite,
Mas ele, ainda tão perto do teu céu!
A sua vida era beber-me leite...
No olhar com que me olhava tinha um véu
De neblinas, de névoas de outras vidas...
As vezes, tinha as pálpebras descidas
E punha-se a chorar no meu regaço
Com saudades, talvez, do céu, do espaço...
O meu filho tem febre!
Por que andam a cantar pelos caminhos?
Por que há berços e ninhos?
Vida! O meu filho era belo,
O meu filho era forte!
Vida, que mãe és tu? Defende-me da morte!
Vida! Vida! Vida!

Louvado seja Deus! A morte foi-se embora!
Jà não tens febre agora!
Louvado seja Deus! O meu menino vive,
Este menino, o meu, que só eu tive!
E pude blasfemar!
E o meu menino chora, e eu posso já cantar!
E o meu menino canta e eu posso já chorar!
O meu menino vive e toda a vida canta,
Toda a terra é uma fresca e sonora garganta!
Que toda a gente o saiba e toda a terra o veja!
Louvado seja Deus!
Louvado seja!

Fernanda de Castro

26.8.08

Noite única noite singular impressa


Noite única noite singular impressa
consagração das chuvas e das flores violadas

dos pássaros algemados em voo
dos silêncios por amor à voz
das alquimias pobres alquimias de oiro
das turbinas de aço onde as espadas escorrem

crescem árvores mais definitivas
pálpebras trémulas da noite

é o muro que eu recrio a cal sem vazios diários
todos de verdade nós todos férteis salvos

todos veias claras nós sementes
nós o susto fecundo de vivermos
nós os números e as letras e os desenhos

ah matem-me de noite punhais híbridos
sentinela das fronteiras extintas
sentinela última da noite


Luiza Neto Jorge

A você, com amor


O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia…
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar…

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda…

E a música inaudível…

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar…

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.


Vinicius de Moraes (poeta brasileiro)


Meia-noite na Quitanda





- Cem réis de jindungo
Sá Domingas

O sol
entrega Sá Domingas à lua
nas quitandas dos musseques

E a quitandeira esperando

- Cinqüenta réis de tomate
três tostões de castanhas de caju
um doce de coco
Sá Domingas

Ela vende na quitanda à meia-noite
que o filho
está na estrada
precisa de cem mil réis
para pagar o imposto

o sol deixa Sá Domingas
na quitanda
e ela deixa o luar

Um tostão
dois tostões
três tostões
que o coração de Sá Domingas
sofre mais do que o corpo na quitanda.



Agostinho Neto (poeta angolano)

Aos olhos d'ele



Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.

Fiquei então sem fé; e a toda a gente
Eu digo sempre. embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!

Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:

Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que m'encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!

Florbela Espanca

25.8.08

Paisagem

Postal II

Cercada de mar profundo.
Montanhas, uma baía
Que a muitos se parece
Na idade, que não esquece
A poeira que há nas almas,
Nem as areias que as invadem.
Passaram dias sem que a vida ousasse
Sujar-me de atritos
E a vida foi um gesto de água
Intenso de tráfego
Na ilha. Finalmente, os dias...


Ruy Cinatti (poeta timorense)
Organização administrativa da maçã



À sombra desta árvore recente-
mente nascida só de imaginá-la
outra vez volto incorrigivelmente
e em antigas águas molho a fala

Saúdo as novas folhas como quem
nas folhas tem a vida permitida
Meta mente física consagrem
os poetas a termos vozes de partida

Loucura podre perto de Setembro
marmóreo mar em que a vista é adunca
países confundidos não me lembro

da pátria que pariu cada lembrança
e cresce organizada na criança
madura mate mais maçã que nunca


Ruy Belo

24.8.08

Sobre um mote de Camões


Se me desta terra for
eu vos levarei amor.
Nem amor deixo na terra
que deixando levarei.

Deixo a dor de te deixar
na terra onde amor não vive
na que levar levarei
amor onde só dor tive.

Nem amor pode ser livre
se não há na terra amor.
Deixo a dor de não levar
a dor de onde amor não vive.

E levo a terra que deixo
onde deixo a dor que tive.
Na que levar levarei
este amor que é livre livre.

Manuel Alegre

Já tão cansada desta vida




Já tão cansada desta vida pergunto-me como será a outra?
mais tranquila, mais segura?
dormente a minha parece estar,
olho a volta onde estou?
que mundo será este?
se não tivesse vivido o que vivi e o que sofri,
quem seria eu?
onde iria buscar toda esta vontade de correr,
os meus dedos que querem escrever, e tanto,
sou louca ou infantil?
ou por momentos deixo correr o meu pensamento,
e mostro ao mundo, o que me consome aos poucos,
a muitos aflige aos que dizem ser eu criança, insegura, imatura!
o que tanto escrevo?
deprimo-me,
deixem-me ...
deixem-me viver no meu mundo,
tornar falas todas as palavras ,
deixem-me no meu mundo doce e infantil, mas meu.


Sónia Sultuane
Moçambique

Segundo poema da alienação


Dai-me o que de mim resta
para que, incompleto,
me perca na contemplação
do tempo por encontrar
da viagem por percorrer
Dai-me a estrela ardente
a picada sem destino
a luz mortiça
desvendando o alfabeto
convoquem todas as crianças
e encham-se de rostos
as janelas das escolas
Devolvam-me ao corpo ferido
de onde se escoou o sangue
de um companheiro fardado
Em redor da sombra
ergam-se paredes de claridade
estilhace-se em mil pedaços
o meu nome, minha palavra
para que na transpiração dos corpos
o poema produza
e se reconstrua
como veia que reencontra o corpo.


Mia Couto
Moçambique

23.8.08


Aos Poetas



poeta
a vida
é o melhor
poema

faz do verso
a charrua
de mil braços

queremos ver a terra fecundada

Vasco Cabral (poeta guineense)

22.8.08

Província



Se eu tivesse nascido
No seio da província, era fatal
Que o meu sonho maior, o mais sentido
Seria triunfar na capital.
E depois de tê-lo conseguido,
Voltar à terra natal
ser pelos conterrâneos recebido
Com palmas e foguetes,
Fanfarras, vivas e banquetes
Na Câmara Municipal.

Carlos Queirós

21.8.08

Ah! Como te invejo

Hummingbirds with Lilies Art Print by T. C. Chiu

Ah! Como te invejo,
pássaro que cantas
o silêncio das plantas
- alheio à tempestade.

Vives sem chão
ao sol a cantar
a grande ilusão
da liberdade...

(...com algemas de ar.)

José Gomes Ferreira

Alma serena

hostingpics.net

Alma serena, a consciência pura,
assim eu quero a vida que me resta.
Saudade não é dor nem amargura,
dilui-se ao longe a derradeira festa.

Não me tentam as rotas da aventura,
agora sei que a minha estrada é esta:
difícil de subir, áspera e dura,
mas branca a urze, de oiro puro a giesta.

Assim meu canto fácil de entender,
como chuva a cair, planta a nascer,
como raiz na terra, água corrente.

Tão fácil o difícil verso obscuro!
Eu não canto, porém, atrás dum muro,
eu canto ao sol e para toda a gente.

Fernanda de Castro


20.8.08

A Divisibilidade: a Invisibilidade a Dois


A mulher divide-se em gestos particulares
o homem divide-se também. Se o átomo é
divisível só poeta o diz.

a mulher divide-se em gestos
extremos coloridos arenosos destilados.

dois homens são duas divisões de uma
casa que já foi um animal de costas
para o seu pólo mágico.

A divisibilidade da luz aclara os mistérios.
A mulher tem filhos. Descobrem-se
partículas soltas um dedo mínimo
o peso menos pesado da balança
um cabelo eloquente em desagregação

Gestos estrídulos dividem a mulher
o homem divide-a ainda.

Luiza Neto Jorge

Velho Colono


Sentado no banco cinzento
entre as alamedas sombreadas do parque.
Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
ele e o tempo. O passado certamente,
que o futuro causa arrepios de inquietação.
Pois se tem o ar de ser já tão curto,
o futuro. Sós, ele e o passado,
os dois ali sentados no banco de cimento.

Há pássaros chilreando no arvoredo,
certamente. E, nas sombras mais densas
e frescas, namorados que se beijam
e se acariciam febrilmente. E crianças
rolando na relva e rindo tontamente.

Em redor há todo o mundo e a vida.
Ali está ele, ele e o passado,
sentados os dois no banco de frio cimento.
Ele a sombra e a névoa do olhar.
Ele, a bronquite e o latejar cansado
das artérias. Em volta os beijos húmidos,
as frescas gargalhadas, tintas de Outono
próximo na folhagem e o tempo.

O tempo que cada qual, a seu modo,
vai aproveitando.


Rui Knopfli

19.8.08

Coração em África


Caminhos trilhados na Europa
de coração em África
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos de trigo sem bocas
das ruas sem alegrias com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não.
Ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho:
Oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de África) -Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama policroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) -três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillen
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am America
de coração em África com as árvores renascidas em todas estações nos belos
poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu e no mistério do
Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em
África,
de coração em África ao meio dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delicias do zénite
reduzindo a pontos as sombras dos Negros
amodorrando no próprio calor da reverberação os mosquitos da nocturna
picadela.
De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que tem a beleza das rodas de crianças com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas
de olhos rubros como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop nos lábios
enquanto que à minha volta se sussurra olha o preto (que bom) olha
um negro (óptimo), olha um mulato (tanto faz)
olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes e areias distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho a brisa da tarde.
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata perdida na carapinha
alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou as riscas
e o coração entristece a beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens negros escravos dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os ainos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh orgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos alíseos;
na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência.
Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.


Francisco José Tenreiro (poeta santomense)


Venceremos



A última coisa que vi foi nada.
Logo a seguir às labaredas foi nada o que vi então
Com um grande silêncio espantíssimo por cima de nada
E um cheiro queimado de carne
Que vinha de dentro do peito para a boca.

Agora estou só nos ouvidos e na língua vagarosa
Eu que só pensava dentro dos olhos penso mal na língua
E o mundo inteiro é muito pouco agora
E tudo quanto está chegando aos meus ouvidos é pouco.

Não poderei fazer mais a mesma tarefa
Mas a Luta continua pois é independente de um homem só
E haverá outra tarefa para dois ouvidos e uma língua.
Venceremos.


Mutimati Barnabé João
Moçambique

18.8.08

Este poema é absolutamente desnecessário


Este poema é absolutamente desnecessário
pela simples razão de que poderia nunca ser escrito
e ninguém sentiria a sua falta
Esta é a sua liberdade negativa a sua vacuidade dinâmica
e o movimento da sua abolição
a partir do seu vazio inicial
Mas qual é a sua matéria qual o seu horizonte?
Traçará ele uma linha em torno da sua nulidade
e fechar-se-á como uma concha de cabelos ou como um útero do nada?
Ou será a possibilidade extrema de uma presença inesperada
que surgiria quando chegasse a essa fronteira branca
que já não separaria o ser do nada e no seu esplendor absoluto
revelaria a integridade do ser antes de todas as imagens
a sua violência inaugural a sua volúvel gestação?

António Ramos Rosa


Como se estivesse em Agosto



Estou todo no mês de agosto
Estou escarranchado no lombo nutrido de agosto
sentado à mesa de um café envolto no manto de múltiplas vozes
olhando pela janela uma toalha de mar e a terra ao fundo
debaixo do céu azul e branco do sol e do vento
café e vozes céu terra e mar tudo coisas talvez de agosto
objectos que o deus deste mês se porventura dada a fartura houver também um deus para os meses
utiliza para que assim toda a gente possa falar univocamente de agosto
e agosto não seja o nome frio dos números
mas seja um tempo e a orla da água que banha os pés desse tempo
e as coisas que existem na mão aberta desse tempo
Agosto não é o oitavo mês do ano
as ferias há muito previstas e marcadas o sitio
de certos rostos por um instante resplandecentes mas cedo bebidos pelo esquecimento
talvez para o ano vindos na vaga de um novo mês de agosto
Agosto são muitos jornais vagarosamente lidos
de páginas uma a uma passadas como os trinta e um dias deste mês
agosto é o espaço do pensamento da boca boquiaberta
do sol outra vez usado como o único relógio de pulso
Agosto é o regresso dos emigrantes o mês da morte na estrada dos emigrantes
de uns homens que antes eram portugueses e hoje são emigrantes
e voltam a estas paragens como as aves às terras serenas e avaras do norte
Agosto é a estrada estreita que o mar enfia nos campos
como faca que fura sebes de canas campos de couves
e ensombra ainda um pouco mais a sombra de certas árvores
Agosto é eu estar aqui a trazer as mangas arregaçadas
é envelhecer ao sol na dispersão distraída de determinados gestos
é saber que estou de momento separado de secretárias com muitos problemas em suspenso
que me sento numa pedra e oiço uma música e reconheço a minha forma mais frequente de me sentir vivo
embora depois complique o que sinto e diga talvez que me sinto feliz
Por vezes agosto é o nevoeiro essa espessura de certa maneira branca
que me faz pensar que penso e achar que há uma certa profundidade no que por vezes penso
nevoeiro que mora um tempo na minha cabeça e depois
desce até às páginas do livro que leio de maneira diferente
dos livros que leio nos outros meses do ano
Agosto não é a pura palavra não é determinada designação para um tempo
onde cada uma dessas coisas anualmente se encontra comigo
Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde procuro pôr os meus passos
onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que no frágil edifício dos dias
Não escrevo neste domingo de agosto onde já houve sinos
e há gestos diferentes dos mesmos gestos que fazemos nos outros dias
Estou um pouco nestas palavras na própria
palavra agosto que ponho sobre o papel
e que embora aponte para agosto não é esse mês de agosto
Estou em agosto estou um pouco em agosto

Ruy Belo

17.8.08

Explicação Do Poeta


Explicação Do Poeta
Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço


Daniel Faria

Abaixo el-rei Sebastião


É preciso enterrar el-rei Sebastião
é preciso dizer a toda a gente
que o Desejado já não pode vir.
É preciso quebrar na ideia e na canção
a guitarra fantástica e doente
que alguém trouxe de Alcácer Quibir.

Eu digo que está morto.
Deixai em paz el-rei Sebastião
deixai-o no desastre e na loucura.
Sem precisarmos de sair o porto
temos aqui à mão
a terra da aventura.

Vós que trazeis por dentro
de cada gesto
uma cansada humilhação
deixai falar na vossa voz a voz do vento
cantai em tom de grito e de protesto
matai dentro de vós el-rei Sebastião.

Quem vai tocar a rebate
os sinos de Portugal?
Poeta: é tempo de um punhal
por dentro da canção.
Que é preciso bater em quem nos bate
é preciso enterrar el-rei Sebastião.

Manuel Alegre



O Amor Tudo Mata quando Morre

Delicate Blossom II Photographic Print by Nicole Katano

Eu morro dia a dia, sabendo-o, sentindo-o,
com a morte do amor em mim.
Esvaiu-se, ensandeceu, partiu,
espécie de sol sepultado por mãos ímpias,
numa cratera de lua, algures,
ou na tristeza de um retrato emudecido
pela ausência de vozes em redor.
Sem ele, a casa ficou deserta
de risos, acenos e afectos, de tudo,
as mãos ficaram ásperas, secas,
a pele do rosto gretada, fria,
e o sangue tornou-se lento e espesso,
incapaz de dar vida às pequenas folhas
orvalhadas da imaginação das noites.
A erva cresce em redor de mim,
os limões ficaram ressequidos sobre
a toalha bordada, num canto da mesa.
O amor tudo mata quando morre,
detendo no seu movimento elementar,
a máquina que ilumina o coração do dia.

José Jorge Letria

Tenho as entranhas em dor





Tenho as entranhas em dor,
a alma oprimida, dilacerada,
o pensamento em quase tudo perdido,
como estou?
será que estou?
estranho!
As entranhas convulsam,
na dor que tenho, essa onde será mesmo que está?
onde será mesmo que dói?
o pensamento longe, o coração a simular-se, desligado de mim,
a alma quer partir,
quer alcançar algo,
só ela é que sabe bem o quê e o porquê,
chamo-a mas ela é mais forte, quer partir,
ao encontro de algo perdido,
páro o pensamento, mas já o tenho bem longe,
estranho...
será que volta?


Sónia Sultuane
Moçambique
Porto à noite

Porto à noite

A noite desce... Com que lentidão
Comigo ela se deita!
E luminosos os anúncios vão
Tornar a vida em nós menos estreita,

Em cada rosto esfolha-se uma rosa
E cada ruga já desaparece!
E a carne, a minha carne voluptuosa
Sôfrega vai de encontro a qualquer prece

Voltam as ruas a imitar os rios
(Há quem deslize, às vezes, como um barco...)
Voltam a encher-se os corações vazios
Nesta cidade embandeirada em arco.

Sapek-Adubos; Tagus ou Bonança?
Jardim suspenso cujo aroma diz
Que os homens crescem quando a noite avança
A desprendê-los, quase, da raiz.

Cidade rubra ao longe e, ao perto escura
Gula insaciável de vilanovenses!
De que poetas andas à procura
Se aos meus poemas ávidos pertences?


Pedro Homem de Mello

Hebergeur d'images


Entre a sombra e a noite há um submisso instante
de preparação.
Aberto espaço onde aves não cantam,
imaculado, instantâneo refúgio.
Entre a sombra e a noite, único passo!

— E é serena e frágil a presença
dos nossos vultos passageiros
isolados na própria condição.

Onde nada se move, uma estrela suspensa.

E tão inutilmente despedaço o encanto,
e tão súbita me vem uma tristeza antiga,
que entre a sombra e a noite encontro o meu refúgio
— o intocável, único espaço.


Maria Alberta Menéres

Flowers and Butterflies Art Print by Florian Kleinefenn

borboletas filiformes sobrevoam estes regatos tardios
escondem-se nos torrões da terra lavrada e desovam
plátanos espalham folhas semelhantes a complicados mapas topográficos

mais além
um acampamento cigano

caminho para a noite mas não tenho frio
é só o início dum provável outono
o acampamento recorta-se em contraluz
quando agressivos insectos trabalham recantos nómadas da memória

os ciganos possuem a sabedoria dos fogos acesos ao entardecer
quem poderá afirmar que um deles
o mais jovem
não aprende o mistério das cartas?
ou a mágica vida das linhas da mão?
a essa hora transmite-se de pai para filho
a arte dos insuspeitos ofícios do coração

as casas surgem de repente iluminadas por dentro
a paisagem envolveu-se de solidão
pressinto a força perfumada da terra subindo
ao medo da recente noite.


Al Berto

16.8.08

Resposta


«Eu vinha para a vida, e deram-me dias»
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.

E hoje é este olhar profundo,
deriva das imagens pelo mundo.

Fiama Hassa Pais Brandão


pela névoa de pesadelo




pela névoa de pesadelo
a dor passa
clandestina
a fronteira dos instantes
e implacável
monta guarda
ao porão dos dias
ao contorno dos gestos
ao ruído das coisas
e
ao sentido das palavras
embaciadas
pela névoa do pesadelo


Arlindo Barbeitos (poeta angolano)
Verdes Anos



Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

Pedro Tamen

14.8.08

Angulo

Musee d'Orsay and Pont des Arts, Paris, France Photographic Print by David Barnes

Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar ôco de certezas mortas? -
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construido...

- Barcaças dos meus impetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segrêdo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?...

- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...

Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa - e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar à sua beira...

- Por sôbre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um outro que eu não posso acorrentar...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'

Sexo


Ilha - Gentes e costumes XXXXIX

Da tarde que se apressa
emerge o sexo
cantando exótico ao luar sincero
um apelo irresistível apregoa
molhes de juventude
aonde qualquer idade desembarca
com palavras curvas
com esmero


Júlio Carrilho
Moçambique


Álbum de família



O avô tinha sido um ancião convencional,
que se enterrou de sobrecasaca, e polainas;
e a avó — uma menina pálida que morreu ao pari-la;
o pai fez algumas baladas;
contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Daí — a mão dobra a página do livro,
e a história da tetraneta finda com uma estocada no
[ ventre:
há destinos travados, lenços quentes de lágrimas,
algum incesto, uma violação sobre um sofá antigo.—
Quando a mão dobra a página, há rastros de sangue
[ no soalho.
Esta é a mais nova das cinco.
Veja que os seios são como neve que nós nunca
[ vimos
e ninguém nunca viu o pai que lhe fez um filho;
e o filho desta menina é este moço de luto.
Agora vire a página e olhe o anjo que ele possuiu,
veja esta mantilha sobre este ombro puro,
e estes olhos que parecem contemplar as nuvens
através da luneta avoenga. Veja que sem o fotógrafo
[ querer
as cortinas dão a impressão de caras
[ impressionantes
por detrás da gravura: um estudante de cavanhaque
[ e outro de capa.
Repare bem o braço que ninguém sabe de onde
circunda o busto da moça e a quer levar para um
[ lugar esconso.
Fixe bem o olhar com o ouvido à escuta para
[ perceber a respiração grossa,
os gritos, os juramentos... A saia negra parece
[ um sino de luto,
e o decote é a nau que a levou para sempre. E este
[ fundo de água
pode ser o mar muito bem; mas pode ser as
[ lágrimas do fotógrafo

Jorge de Lima (poeta brasileiro)
Que de nós dois


Que de nós dois
O mais sensato sou eu,
- É uma forma delicada
De dizeres que sou mais velho.
Ora é verdade
Ser eu quem tem mais idade.
Mas daí a ter juízo
Vai um abismo tão grande
Que é preciso,
Com certeza,
Que o digas com ironia
E nenhuma simpatia
Pelo engano em que vivo.
O engano de ter rugas
E nunca fitar um espelho...
Vê lá tu que eu não sabia
Que sou dos dois o mais velho.


Reinaldo Ferreira


13.8.08


Sempre um de nós

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Sempre um de nós
foge. Sombria água
trépida e contínua
água em céu diverso
como diversa eu sou
chão sem flor.

Vã palavra, múltipla
palavra, longínqua
semente entre o arco
e a corda. Nada sara
em meu cego corpo
eu que imagem sou,
não alegoria.

Tremor antigo, árvore
sem fruto, nada resiste
nesta cidade sem casa
- só a garça chega em seu
liso voo porque o tempo
nunca é longo.

Ana Marques Gastão
Os signos da caça

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«Fraqueza da humana sorte:

Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!»
CAMÕES



Em Portugal nascido católico me quiseram, ad
Vitam aeternam, com duas gotas de sal e algumas
Moedas. Português porém não sou nem pátria nem
Deuses além do corpo e da língua onde agora me
Concentro tenho. Antes de mim outros o disseram.

Embora português me descrevam papéis oficiais
Como se rugas severas e velhas cicatrizes de família
Me tivessem transformado em surdas informações
Estatísticas. Português & católico (em minha semi-
Obscuridade) não fui nem sou. Nem essas nem outras

Mutilações incrustadas no tempo que faz de mim
Um cadáver mas onde uma fenda subitamente se
Abre! Húmida fissura entre o meu corpo
E o vosso de cidades desmoronadas. Resposta porém
Não sei para nada. Os mitos da pátria

Renego. E deuses. E amigos e tábuas de lei
Se com pátrias e deuses me limitam ou com outras
Filomitias me limitam o corpo, incêndio reconstruído
À sombra dos ossos. Pátria (se pátria ouso
A meus sinais de som chamar) é este canto devastado,

Esta carnívora linguagem por acaso portuguesa
Em que me lavro e gasto e mato – são estes
Pobres e poucos movimentos derramados
Na pedra do sangue; a memória dos mortos, grandes
E pequenos; a febre e o chão macerado

Do meu país de míldio e alcatruzes; e mais a indústria
Do ódio e do ócio – mas também a filha em seu sono
Deitada; e águas distantes, cerimónias de Eros,
Onde me distendo e uma certa vertigem luminosa
Invento. Como se à morte a vida eu pudesse vender

Tropeço em palavras alucinadas, ar espesso através
Da noite mais canina. Neste pulsar de ruínas
Acumulam-se as cinzas do meu retrato: sangue transfigurado
E sem ogiva! Ávidos dedos, ávida vida que não sabe
De símbolos definitivos, obras de magia

Onde se inscreva o tempo, a morte administrada
Por máquinas incompreensíveis, surdas, subcutâneas
Como ter nascido aqui, praias de Portugal, e não
Onde canto a cal dos ventos, o vazio e o mais seco
Sal. Que dizer porém da luz cicatrizada

Em árvores de cimento? As origens da morte lusitana
Canto: as origens do corpo em seu exercício de salto
Para um sol mais alto. Esse é o lavrar tão débil
Que te mata! Com palavras entaladas na garganta
Canto a morte que me lavra, e nem morte se chama.

Casimiro de Brito



12.8.08

Quebrou-se a cadeia do sangue

Quebrou-se a cadeia do sangue
o filho que nos habitou
já se despediu


Luiza Neto Jorge
Segredo


Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.

Fernando Pinto do Amaral

11.8.08


Metamorfoses



Faça-se luz
neste mundo profano
que é o meu gabinete
de trabalho:
uma despensa.

As outras dividiam-se
por sótãos,
eu movo-me em despensa
com presunto e arroz,
livros e detergentes.

Que a luz penetre
no meu sótão
mental
do espaço curto

E as folhas de papel
que embalo docemente
transformem o presunto
em carruagem!

Ana Luísa Amaral

Povo no mato


Entre Kaúle e Mapapaia vi um elefante abrindo o trilho
Mais depressa que a máquina de destronca
Este elefante estava no trilho da sua conveniência
Mas não estava na linha correcta da Frente de Libertação.

Quando o Povo mandar na sua terra
Vai haver Instrução Política para elefante abrir trilhos correctos
O Povo vai ensinar o elefante a utilizar esta força toda
O Povo vai aprender que o elefante não é só marfim e carne
E digo o elefante, a goma, o búfalo, a zebra, o leão mesmo
E digo o bicho pequeno, porco-espinho e rato e gafanhoto.
O Povo vai utilizar com a cabeça o animal bravo
De muitas maneiras diferentes e todas boas
E nenhuma para estragar mais, todas para pôr melhor.

Vai usar a boa armadilha antiga que não espanta a caça
Vai respeitar a cria e a fêmea cheia
Vai dizer ao animal bravo grande e pequeno:
Xô bicho camarada, vai para a fila da Produção com cabeça.

Há unia Verdade Simples aqui:
O animal bravo nasceu e vive nesta terra dele e nossa
O Homem do Campo não é bicho do mato. E Rural.
O Animal Bravo é Moçambicano. Respeito. Este é o Povo do Mato.


Mutimati Barnabé João
Moçambique

Os meus versos



Leste os meus versos? Leste? E adivinhaste
O encanto supremo que os ditou?
Acaso, quando os leste, imaginaste
Que era o teu esse olhar que os inspirou?

Adivinhaste? Eu não posso acreditar
Que adivinhasses, vês? E até, sorrindo.
Tu disseste para ti: "Por um olhar
Somente, embora fosse assim tão lindo,

Ficar amando um homem!... Que loucura!"
- Pois foi o teu olhar; a noite escura,
- (Eu só a ti digo, e muito a medo...)

Que inspirou esses versos! Teu olhar
Que eu trago dentro d'alma a soluçar!
.....................................
Aí não descubras nunca o meu segredo!


Florbela Espanca


10.8.08

Letra para um hino


É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.


Manuel Alegre


A fome que te tenho, descontrolada,



A fome que te tenho, descontrolada,
de te ter, o de te possuir,
o meu corpo, fogo... ardendo, queimando,
torna-se num imenso doloroso, num profundo,
os meus olhos vagueiam, olho-te,
o meu pensamento voa,
os lábios incham, a face dói,
a língua esculpida na tua, toca-te, engole-te,
o meu corpo procura-te para o arrepiar,
do sangue fervendo,
esta fome insaciável,
o leve,
o leve deste papel onde agora te sinto
sem o peso que é isso.

Sangue meu, meu sangue, ferve, ebule,
o meu corpo arrepiado, o meu ventre contorna-se,
o suor corre suavemente,
a minha boca seca,
as palavras, essas, perdem-se pelo espaço,
esse torna-se tão pequeno,
não consigo respirar,
o corpo esta pregado,
não sei saber qual o passo a seguir,
não posso mais,
o pensamento pasmo e susto,
o desejo grande, profundo,
a vontade de chorar, a vontade de fugir,
de não repartir o mesmo espaço,
essa química de todos os sentidos,
fundidas em desespero completo,
perdi-me...


Sónia Sultuane
Moçambique