31.1.10

Teu corpo


Teu corpo
é como um
rio sem margens!
Por isso
o percorrerei
sem tréguas
infinitamente!
E então,
seremos um!


Delmar Maia Gonçalves

no cu dos tiranos enfatados



uns coleccionam
dívidas mágoas ressacas
pernas estropiadas jardins
de osso nas frontes
dores de cotovelo às carradas
armários com dores implumes
toneladas de livros medíocres
ciúmes de uma vírgula ou até
a náusea do vómito

outros coleccionam
meia dúzia de garinas
crisântemos margaridas toupeiras
no ânus baboseiras merdas
medos porradas traições
agressões o sexo a despropósito álgida
a noite de um putedo sem chama

há os que coleccionam a madrugada
entre as pernas arqueadas abrigos
no chão da memória esconderijos
ao relento da alma a ausência
de um beijo melancolias estilhaços
e há também quem coleccione disfarces
no torpor da mentira

amada
quem colecciona o pudor do nu
no cu dos tiranos enfatados?

Mbate Pedro

Amor, meu canto


O amor que me enche a alma é meu Canto
e quero que meus versos sejam teus
pondo nesta aventura de actos meus
um fogo de paixão e de encanto.

Não sou perfeito e muito menos Santo
mas sou o mais feliz entre os Orfeus
que ao encontrar-te descobri os céus
nessa tua beleza que é meu espanto!

P´ra ti vai todo meu cantar de amor,
minha bela Euridice d´embalar,
e nem tolero haver por aí maior...

Tomara ser viável transformar
um mundo grande noutro bem menor
para em paz nos teus braços descansar!


Frassino Machado

Onde estou


Porquê
pois
procurar-me na Glória de Beethoven

se estou aqui

erguendo-me
nos milhões de ais
que se elevam dos porões
em todos os cais

se estou aqui
bem vivo
na vos de Robeson e Hughes
Cásaire e Guillén
Godido e Black Boy renascidos

nas entranhas da terra
transformando com meu corpo
os alicerces da vida

se estou aqui

soma consciente e firme
dos homens
que compuseram o poema

da vida contra a morte

do fim da noite
e do começo do dia.


Kalungano
Moçambique

30.1.10

A graça triste



Só me resta agora

Esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
Das raízes da noite,
Também o das formigas
Imensas, numerosas,
Que estão, todas, corroendo
As rosas e as espigas.

Sou um ramo seco
Onde duas palavras
Gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
Estas vãs palavras.
Um universo espesso
Dói em mim com raízes
De tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
Da noite e a do dia.

Não te dei o desgosto
De ter partido antes.
Não te gelei o lábio
Com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
Entre a dor de quem parte
E a maior — de quem fica —
Deu-me a que, por mais longa,
Eu não quisera dar-te.

Que me importa saber
Se por trás das estrelas
haverá outros mundos
Ou se cada uma delas
É uma luz ou um charco?
O universo, em arco,
Cintila, alto e complexo.
E em meio disso tudo
E de todos os sóis,
Diurnos, ou noturnos,
Só uma coisa existe.

É esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.

É uma lápide negra
Sobre a qual, dia e noite,
Brilha uma chama verde.

Cassiano Ricardo (Brasil)

Tabuada dos Dois

A Tabuada dos Dois.






- Dois vezes um dois.

Carrega-me com os bois.



Dois vezes dois quatro.

Engraxa-me os sapatos.



Dois vezes três seis.

Ganhas uns vinténs.



Dois vezes quatro oito.

Talvez sete ou oito.



Dois vezes cinco dez.

Escova os canapés.



Dois vezes seis doze.

Afinal dou-te onze.



Dois vezes sete catorze.

Nem onze nem doze.



Dois vezes oito dezasseis.

Só te dou é seis.



Dois vezes nove dezoito.

Faço-te num oito.



Dois vezes dez vinte.

Chega de preguiça.



Não sou tua criada.

Só te dou de meu

esta rima errada.



João Pedro Messeder





29.1.10

A sentinela vinha



A sentinela vinha. Cruzava os pés à porta
do meu jardim.

A sentinela da porta
das portas do meu jardim vinha
à hora primitiva.

Chegava. Cuspia na minha relva.
Como para render homenagem
ao meu sangue. É tão fácil
fazer a retrospectiva!

A sentinela vinha. Cruzava os pés à porta
do meu jardim. Cuspia na minha relva.
Enumerava as portas do jardim.
Perdido em declamações que acabavam
à porta das portas do jardim
não recordava os seu filhos. Suas trevas.
Seus caminhos.

Era o seu poema. A porta das portas do jardim.

João Maimona (poeta angolano)

28.1.10

Esperança



Por entre as margens da esperança
/e da morte
meteste a tua mão
e
eu vi alongados nas águas
os dedos que me agarram
em lagoa de um sonho
corpo de jacaré
é soturna jangada de palavras
/secas
por entre as margens da esperança
/e da morte

Arlindo Barbeitos
Angola

27.1.10

Anti-chuva



Os sonhos fedem à chuva
e os braços apodrecem
à beira dos súbitos charcos
e do frágil tornozelo dos subúrbios

Inexauríveis
os sonhos fedem
ante a nua ossatura
dos casebres
sitiando a cidade
e a sua enxuta
e antiquíssima idade

Os sonhos fedem
no aglomerado de pedras anónimas
acocoradas de desânimo
ante o jejum dos dias
e a fútil passagem dos meses

Os sonhos fedem à chuva
e eis-nos
de órbitas alagadas
sem saber o que fazer
da turva humidade
dos dias enclausurados
que com os sonhos
padecem fenecem…


José Luís Hopffer Almada
Cabo Verde

Coqueiral da Zambézia


Minha terra é riqueza
de um mar de palmar
e verde chá
reverberando lindos campos.
À noite navegamos na dança do nhambaro
até ao ébrio da nossa alegria.

Ao nascer do sol o nosso suor bago do milho maduro
e o poema cultiva horizontes de mãos futuras
e em uníssono pés descalços,
calcorreamos caminhos da infinitude
que nos propomos na meta.

De a nossa terra
revigorar na certeza de muitos amanhãs!


Manecas Cândido
Moçambique

Meu Sonho



Eu
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangüenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso…
E galopas do vale através…
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?…
Tu escutas… Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? – que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?
O Fantasma
Sou o sonho da tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!…

Álvares de Azevedo
Brasil

Acrónimo



Esperança acalentaste
Num futuro risonho
Terra Mãe – Filha de África
Em tuas entranhas
Ressuscitaste o sonho
Razão do teu viver
Armaste teus filhos
Rumo à liberdade
Acreditaste na vitória
Mas os ventos mudaram

Os homens também...

Sem escrúpulos nem pejo
O teu sonho derrubaram
Num cíclico jogo de armas
Honrado seja o teu nome
Oh! Pátria mil vezes violada

De onde vem tanto ódio
Entre teus filhos amados?

Corre o sangue derramado
Abrem feridas mal saradas
Bate em teu peito a chamada
Recobre as forças Terra – Mãe
Ainda é longa a caminhada
Levanta-te Guiné e desenterra o teu sonho!

Filomena Embaló
Guiné

26.1.10

O sol nasce a oriente


Povo, de ti canto o movimento
teu nome, canção feita de fronteiras
lua nova, javite ou lança
tua hora, quissange em trança

Do longo longe do tempo
arde minha flecha, meu lamento
minha bandeira de outro vento
aurora urdida nos lábios de Zumbi

De ti guardo o gesto
as conversas leves das árvores
a fala sabia das aves
o dialeto novo do silêncio
e as pedras, as palavras do medo
os olhos falantes da mata
quando a onça posta a sua arte
nos fita, guardada em sua mágoa.

De ti amo a denuncia felina
das tuas mãos quebradas ao presente
a dança prometida do sol
nascer um dia a Oriente

David Mestre
Angola

Desapalavrada



Inventei para ti uma palavra
com mil cheiros mil sabores
uma palavra onde coubesses inteiro
uma palavra pequena onde te escondesses
uma palavra extensiva
ao tamanho dos sonhos que em ti se incendeiam

inventei uma palavra
onde podes des-morar
uma palavra soalheira ou chuvosa
(se te apetecer)
isso uma palavra apetecível
uma palabra (em) que te deita(s)

inventei uma palavra interjeição
ah uh hi palavra (a)fonética
palavra misteriosa espiritual
uma palavra poema

inventei-te numa palavra
indizível e inefável


João Manuel de Oliveira Ribeiro

Batuque



A negra salta e não cansa.

Entre o denso mar pálido
e a clara poeira,
a corda balança.

A negra se ergue e sorri.

Entre o leve céu pálido
e as dolentes árvores
e o tambor que vibra.

A negra se ergue e é esguia.

Dentro do batuque
e da ritmada corda
e do morto dia.

Não há segredo na boca tranquila da negra,
nem antigas e vãs perguntas que se percam,
nem místicas dúvidas ou esquecidos gestos.

Ela se ergue como uma lança,
e entre o céu e a poeira
simplesmente
dança.


Glória de Sant`Anna

Eu sei, não te conheço mas existes.



Eu sei, não te conheço mas existes.
por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como mas ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te.
Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos
sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
Porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
Em todas as palavras do meu canto

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
tenho feito amor de muitas maneiras,
docemente,
lentamente
desesperadamente
à tua procura, sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim,
que em mim devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti,
a ti que eu amo..

Joaquim Pessoa

Lucidez


Em cada instante, a poesia
Morre em mim.
E a mão certeira que a escrevia
Escreve assim:

Qualquer poesia alheia
Não pode ser comparada
Com esta minha, tão cheia
De nada.

Quem a lê logo conhece
Que é
Aquela que não merece
Nem nota de rodapé.

E, se a estudou, sabe agora
Que perdeu a inspiração.
E cora
De lhe haver dado atenção.

Quem sou de mim foi-se embora:
Pára, de vez, coração!
(Mas dilacera-me a espora:
– Ainda não!)

António Manuel Couto Viana

25.1.10

Eu Tenho os Dias Claros




para o António

Eu tenho os dias claros
de sucessivas luas de Setembro
e a noite que me impõe sinalizar
as direcções cruzadas das mensagens verticais.

Eu estou parado no meio do terreiro
pastado dos meus passos e da minha gente,
ando a ganhar noções de translação
e a medir, pra meu governo, a cor do sol.

Eu entardeço, sobretudo, pouco atento ao vento
que não devo perturbar na sua rota alheia.
Permito, quando muito, que me sinta o cheiro
e deixo-o desfazer, furtivamente, molhos já secos de memória
fêmea.

Eu finjo que não sei de elásticas tensões da claridade
e a cada passo meu faço estalar
membranas frias que a tarde debruou em rente azul.

Entendes, companheiro,
eu estou aqui sentado e nu
a procurar não ir além da bárbara carícia
de um olhar sem tacto

e que nem uma lágrima machuque
a capa muito fina da lembrança
que tenho para dar-te.

Ruy Duarte de Carvalho
Angola

A parasceve



A parasceve
hei de chorar amargamente

É noite
em plena
tarde

e treme
toda
a terra

rasga-se

o véu do
Santo
re-
surgem
os mortos...

e tanto
não bastou

a tanta solidão...

oh mundo
fero

tão longe
do Senhor

e imerso
em Azrael...

jamais
houve
na Terra

maior
desamparo...

e
uma
tênue
esperança

repousa
além

do abismo
e por um fio
na palavra
da Palavra

Marco Lucchesi
Brasil

Ainda não fiz um poema de amor





Falta-me fazer o poema de amor
Consciente,
Sentindo os pés bem firmes na terra
E o sexo como a semente
Que promete em breve ser uma flor.

Falta-me fazê-lo
E mandá-lo à noite
Quando o corpo dela nu
Se mirar nos vidros da janela
Fugindo das roupas que o prendem.

Depois colher a flor
Como a ave que leva no bico
Uma palha para o ninho,
Ou como o viajante sequioso
Que bebe na fonte do caminho...


António Cardoso (poeta angolano)

queria que me acompanhasses



queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos

Ana Paula Inácio

23.1.10

22.1.10

Se este poema fosse



Se este poema fosse mais do que simples
Sonho de criança...
Se nada lhe faltasse para ser total realidade
Em vez de apenas esperança...
Se este poema fosse a imagem crua da verdade,
Eu nada mais pediria à vida
E passaria a cantar a beleza garrida
Das aves e das flores
E esqueceria os homens e as suas dores...
– se este poema fosse mais do que mero
sonho de criança.

Ai meu sonho...
Ai minha terra moçambicana erguida –
Com uma nova consciência, digna e amadurecida...
A minha terra cortada em sua extensão
Por todas essas realizações que a civilização
Inventa para tomar a vida humana mais feliz...
Luz e progresso para cada povoação perdida
No sertão imenso, escolas para crianças,
Para cada doente, e assistência da ciência consoladora,
Para cada braço de homem, uma lida
Honrada e compensadora,
Para cada dúvida uma explicação,
E para os homens, Paz e Fraternidade!

Ah, se este poema fosse realidade
E não apenas esperança!
Ah, se o fosse o destino da nova humanidade
A cantar então a beleza das flores,
Das aves, do céu, de tudo que é futilidade –
Porque a dor humana então não existiria,
Nem, a infelicidade, nem a insatisfação,
Na nova vida plena de harmonia!


L. Marques, 29/5/1949 (Vera Micaia)

Noémia de Sousa
Moçambique

Ardósia



A palma da tua mão é a ardósia
papel onde inscrevi
os versos do meu destino.


Maria de Lourdes Hortas

20.1.10

Acordo Ortográfico


Gosto do teu rosto exacto,
com o cê bem desenhado,
mesmo quando não se vê,
para te pôr, como laço
nos cabelos, o circunflexo
em que nenhum traço há-de
sair, mesmo que um pacto
roube o pê nessa pose
de pura concepção.

Nuno Júdice

19.1.10

A Casa



Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha tecto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
Número Zero

Vinicius de Moraes
Brasil

Fácil é dar um beijo.



Fácil é dar um beijo.
Difícil é entregar a alma,
sinceramente, por inteiro.

Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)

Em silêncio



Talvez assim eu possa finalmente
Segredar-te as palavras que não soube
Dizer-te no momento em que te vi
Pela primeira vez e, de repente
O mundo foi tão grande que não coube
Na minha voz e logo emudeci

Torquato da Luz

18.1.10

Ausência


Construímos a casa, alheios ao medo,
por entre a solidão e o arvoredo.
Uma varanda dava para o mar.

Depois chegou a noite e o enredo
do escuro se infiltrou como em segredo
por todos os recantos do lugar.

Foi quando tu partiste e muito cedo
dei por falta de ti e do luar.

Torquato da Luz

Sinfonia


A melodia crepitante das palmeiras
lambidas pelo furor duma queimada

Cor
estertor
angústia

E a música dos homens
lambidos pelo fogo das batalhas inglórias

Sorrisos
dor
angústia

E a luta gloriosa do povo

A música
que a minha alma sente

Agostinho Neto
Angola

Poema


fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

José Luís Peixoto

17.1.10

Igualdades



Irmã do meu coração,
Noite, meu sinistro encanto,
Tu tens estrelas, e eu pranto,
Tu tens sombras e eu paixão.

Dizem que a tua existência
Sugere à vingança o crime;
Pois também a minha essência
Me aponta um ódio sublime.

Sinto a luta, sinto o amor;
Tu -- a treva e o azul sem fim...
Se neste inglório jardim
Nasce o verme ao pé da flor!...

Ah, que bondoso quebranto!
Que aromas na escuridão!...
Noite, meu sinistro encanto,
Irmã do meu coração.

Lembras, se um lugar magoado
Te cinge, num tom violento,
Nos brilhos -- o meu passado;
Nas ruínas -- o meu tormento.

Contigo tudo adormece
Num sudário de neblina;
Eis porque também se inclina
Meu ser, se as mágoas esquece.

Cada Aurora que te esconda
Te arrasta um sonho desfeito;
Porém, a luz é uma onda
De escárnio sobre o meu peito.

Na sombra oculta a paixão;
Dá-me perfume e quebranto,
Noite, meu sinistro encanto,
Irmã do meu coração.


António Fogaça

Em Sintra



As águas maravilham-se entre os lábios
e a fala, rápidos
em Sintra espelhos surgem como pássaros,
a luz de que se erguem acontece às águas,
à flor da fala
divide os lábios e a ternura. Da linguagem
rebentam folhas duma cor incómoda, as de que
maravilhado de água surges entre
livros, algum crime, um
menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues
equívoca a luz depois. Rápidos
espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.

Luís Miguel Nava

16.1.10

O Poema da casa que não existe


Onde a cidade acaba em chácaras quietas
e a campina se alarga em sulcados caminhos
achei a solidão amiga dos poetas
numa casa que é ninho, entre todos os ninhos.

Térrea, branquinha, com portadas muito largas,
desse azul português das antiquadas vilas
e uma decoração de laranjas amargas
que perfumam da tarde as aragens tranqüilas.

Ergue-se no pendor suave da colina,
escondida por trás dos eucaliptos calmos;
tem jardim, tem pomar, tem horta pequenina,
solar de Liliput que a gente mede aos palmos ...

Neste ponto, a ilusão, a miragem, se some;
olho para você, eu triste, você triste.
Enganei uma boba! O bairro não tem nome,
a estrada não tem sombra, a casa não existe!

Afonso Schimdt
Brasil

O leito



O leito conserva
o sono e o sonho
da mulher amada.
A macia espádua,
o ventre de lava,
o braço e a espada,
a mão e a chave,
a areia do seio.

No corpo da mulher,
o leito feito pássaro adormece.

António Rebordão Navarro

15.1.10

A Nossa Casa




Ambição
minha e da Maria
foi termos uma casa nossa
onde nos contarmos os cabelos brancos.

Sonho realizado.
Casa definitiva já temos.
Lote 42.
Talhão 71883.
Fachada pintada a cal.
Classica arquitectura rectangular.
Uma via asfaltada com um único sentido.
Tudo sito no derradeiro bairrismo
que é morar no bairro de Lhanguene.

Pelo menos envelhecer já não é problema.
O resto na altura mais propícia
surgirá por si.

Parece que está por pouco.
Na lista onde eu consto
É injusto que tarde
estarmos juntos.

José Craveirinha
Moçambique

Ode Sputnika




Vulneráveis Satélites
Percorrem o Espaço
Onde quis haver Deuses!

E choro (Netuno e Vênus, Mercúrio e Marte).
— O meu mundo infantil
Acabou hoje.

Tremei! Desferirei dos céus ímpias setas,
Minha faixa de Arco-íris como um Rei
Que reine entre os Planetas.

Afonso Duarte


Motivo

Tudo o que vês
não é nada:
ou uma nuvem
ou uma palavra.

Tudo o que ouves
nada mais é:
o vento é lesto
e corre breve.

O que não vês
nem sabes mesmo
é que importava
se houvesse tempo.


Glória de Sant'Anna

Duplo Império



Atravesso as pontes mas
(o que é incompreensível)
não atravesso os rios,
preso como uma seta
nos efeitos precários da vontade.
Apenas tenho esta contemplação
das copas das árvores
e dos seus prenúncios celestes,
mas não chego a desfazer
as flores brancas e amarelas
que se desprendem.
As estações não se conhecem,
como lhes fora ordenado,
mas tecem o duplo império
do amor e da obscuridade.

Pedro Mexia

14.1.10

Terra-Mãe



Ai
mãe negra chorando

ai
doce terra gemendo

nas capulanas de areia fina
embrulhando teus filhos

há flores de sangue
girassóis de dor
e amor exangue
- Ó voz intranquila e singular

Meus filhos todos partiram

Um levado no fundo dos barcos
por outros oecanos
a mundos distantes

Outro
ficou sob o solo queimado
das terras estendidas
p'ra além do nosso sul

Um terceiro
aqui perdeu a chama viva
aberta em fruto
nos nossos olhos
.........................
- Ó terra dolorosa
que os filhos perdes

ó mãe imensa
que as lágrimas lavam
como os rios sempre loucos.


Kalungano
Moçambique

13.1.10

A mãe e a irmã



A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.


Ana Paula Tavares (poetisa angolana)
in Dizes-me coisas amargas como os frutos

Sereno refúgio


Sei que a brancura dos dias é aparente
E que a noite se há-de deitar devagar
Entre nós, o oceano, o meu país cansado
E o teu, que ainda escuta ardente
Os rumores que lhe chegam do mar.

Sei que o vento que hoje sopra violento
Amanhã será brisa ou quase nada
E que as nossas vozes, que hoje cantam
Melodias ridentes, inventando sinfonias,
Hão-de ser lágrimas, como o orvalho é geada.

Sei que não crês no que te digo triste,
E me devolves um sorriso que diz que existe
Mais do que este constante movimento
Descendente na minha razão tão escura.

Sorris. Ou ris-te de mim, ainda não sei.

Mas sei que a toda esta imparável mudança
Resiste firme a tua esperança, sólida
A tua mão na minha. E que a tua voz,
Essa, nunca vacila quando a noite vem
E me anuncia a ternura sempre renovada
De um outro dia que se aproxima.


Isabel Solano

Apropriação / Expropriação


Sei que são meus senhores. É quanto basta
para saber-me escravo e infeliz.
E ainda que os soubera forcejando
unicamente por interesse meu
e por meu bem, sem causas de malícia,
Eu lhes negara o gosto de o fazer
e o direito de impor-me o que men sei
se desejo. E ainda que inocentes
do propósito cru de magoar-me
Eu os negara porque são senhores.

Grabato Dias
Moçambique

12.1.10

Nocturno



O desenho redondo do teu seio
Tornava-te mais cálida, mais nua
Quando eu pensava nele…Imaginei-o,
À beira-mar, de noite, havendo lua…

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
Ornar-te o busto de uma renda leve
E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
Em ti, a branca irmã que nunca teve…

Pelo que no teu colo há de suspenso,
Te supunham as ondas uma delas…
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
Era um convite lúcido às estrelas….

Imaginei-te assim à beira-mar,
Só porque o nosso quarto era tão estreito…
- E, sonolento, deixo-me afogar
No desenho redondo do teu peito…

David Mourão-Ferreira

11.1.10

Aprender




Se me fosse permitido
atravessar directa e profunda
do amor-tudo ao amor-vida

Ainda assim
não saberia reconhecer
Te

Então vivo como a passagem
da culpa em Cristo
ao protesto do Eu

E não me lembro
o que vem a seguir
se o amor-mundo

se o amor-fim


Ana Francisco
(inédito) in «Os Dias do Amor»

Os pássaros de Londres

cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz rasante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos.

Mário Cesariny

A infância de Herberto Hélder



No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas

Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos

Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva

Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito

Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio

Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios

Isto foi antes
de aprender a álgebra

Herberto Helder

Elegia de Lisboa



«Nas nossas ruas, ao anoitecer»,
abre-se num olhar a pena errante
de quem se ilude em passos vagarosos,
em mais um jogo incerto de cem luzes
sob este céu tão baço. Como sempre
os mudos automóveis sobem, descem
ruas e ruas rumo a outras ruas
polvilhadas de gente que regressa
sem ter partido — insectos ondulando
ao som das lentas horas fatigadas,
rostos esfarrapados de trabalhos
inúteis como a tarde que se entrega
às doces mãos secretas do crepúsculo
vibrante no declive dos telhados
em degraus sobre o Tejo. Devagar
cola-se ao espírito a membrana escura
dos sonhos que perdi ou que pedi
há tantos anos à eternidade
e agora se dispersam na colmeia
das pequenas janelas reacesas,
no bafo das famílias indiferentes
no seu «tinir de loiças e talheres»,
suspensas de écranzinhos onde vêem
outras famílias e outras indiferenças
até ao infinito. As sombras crescem
quando a lua aparece e pouco a pouco
a solidão retoma os seus direitos,
devora o que ainda resta do azul
e eu vou descendo a pé, já transformado
num perverso turista acidental
e condenado a «combater em vão
o velho tédio» ocidental, em bares
onde reagem faces conhecidas
em acenos voláteis que se cruzam
com esse aroma surdo e espesso e dócil
das vozes que por vezes me esvaziam
qualquer recordação. Bairro nocturno,
confundo os teus caminhos-labirinto,
os nomes das vielas inconstantes
e ao percorrê-las «temo que me avives
uma paixão» recente, a esvoaçar
ainda não defunta, mas talvez
moribunda por entre a marabunta
que vai enchendo, enxameando as caves
onde se compra e vende cada rosto
e onde mergulho cego e surdo e fico
senhor da sua imagem, de repente
unida às gargalhadas tão ingénuas
das viciosas bocas florescendo
na treva, procurando novas bocas
algures. Cá fora, a verde camioneta
recolhe as sensações de mais um dia
exausto. Recomeço o meu circuito,
arranco e desço mais um pouco, até
à zona antigamente industrial,
aos pálidos felizes contentores
sob a penumbra imensa dos guindastes
quase irreais. Alguns amigos entram
em armazéns de espuma onde exercito
os fúteis bocejantes sentimentos,
a mais falsa alegria, a peregrina
febrícula do espírito embrulhado
em whisky ou nas falas transparentes
de alguém que por acaso eu poderia
talvez amar - «I'm so crazy for you!» -,
mas não há «nunca nada de ninguém»,
só esta bílis negra que me espera
à saída dos últimos lugares
acompanhando agora o rio que alastra
e se mistura à crónica euforia
de uns «tristes bebedores» que mal trauteiam
frágeis franjas de música boiando
no seu vazio que é também o meu
quando parto agarrado a um volante
e na aragem dos vidros entreabertos
saboreio um cigarro que se evola
só para ti, Lisboa. Sempre quis
pulsar ao mesmo ritmo que tu,
transpor este deserto e conseguir
em golfadas de versos libertar
o encarcerado sopro do teu peito —
— cidade atravessada de armadilhas
traindo e atraindo cada gesto
das poucas silhuetas ainda vivas
sob os pilares da ponte. Ó vã Lisboa,
cai sobre mim o peso dos teus sonhos,
«quimera azul» da minha dor sem pátria,
e entre dois semáforos suplico-te:
apaga do meu corpo o sobressalto
dos seres de carne e osso, dessa estranha
realidade apenas virtual
que me despe de todos os fantasmas
e fica projectada no silêncio
das cinco e meia, enquanto vou seguindo
a «correnteza augusta das fachadas»,
as pombalinas rectas, um cortejo
de iluminadas cinzas. Uma estrela
(ou talvez fosse um avião da América?)
parece ter sorrido para mim
como se finalmente esta cidade
me confiasse a rota imperceptível
das suas ondas a perder de vista -
- «marés de fel, como um sinistro mar»,
caudal por onde singro e me despeço
do sangue de quem solta, solitário,
algum suspiro em quarto derradeiro
até ser minha a cor da tua voz,
ó morte a que abandono luz e sombra,
o grito do meu nada ainda em fuga,
mas de súbito em paz entre os teus braços.

Fernando Pinto do Amaral

Quantas vezes



Quantas vezes te esperei neste lugar
quantas vezes pensei que não chegavas
quantas vezes senti a rebentar
o coração se ao longe te avistava.

Quantas vezes depois de teres chegado
nos colámos no beijo que tardava
quantas vezes trementes e calados
nos entregámos logo sem palavras.

Quantas vezes te quis e te inventei
quantas vezes morri e já não sei.

Torquato da Luz

O Mundo parou


(Fragmento)*

.............
.............
Agora parece que já tudo passou.
Mas imaginei-te de novo entre nós, Pai,
e a lágrimas tomam-me os olhos


Nota: A palavra «Fragmento» é da responsbilidade do poeta.


Vítor Evaristo
Moçambique

10.1.10

Sou voraz


Sou voraz
não me apego
ao abrigo da alma
Sou o corpo
o incêndio
só o fogo
me acalma

Maria Teresa Horta