31.7.11

Atrás da sombra


Atrás da sombra na praia correremos
atrás da sombra
atrás do sol ardendo nos sentidos
do cheiro a sal e a areia atrás da espuma
atrás do tempo correremos
atrás do amor e do verão
atrás da sombra agora
atrás da sombra correremos


Manuel Alegre

30.7.11

Riso de Criança




De bicicleta pelo campo quando
a idade jovem se descobre, e espanta-se
e conversa secretamente com as searas ainda verdes,
as papoilas: do caminho de alcatrão
solitário, percorrendo debaixo das folhas
de árvore a sombra e a luz. Vem a imagem com
os passos no andar de cima, cair de água,
riso da criança. O verão aumenta,
a adolescente pela primeira vez
toca-se os seios,
a linha da pele na perna é densa, é clara.
cantam os sapos
de noite, o sentido da vocação não o desconhecem,
mastigam a escuridão e o silêncio.


João Camilo


29.7.11

Samba em prelúdio


Eu sem você
Não tenho porquê
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Luar sem amor
Amor sem se dar

Eu sem você
Sou só desamor
Um barco sem mar
Um campo sem flor
Tristeza que vai
Tristeza que vem
Sem você, meu amor eu não sou ninguém

Ai, que saudade
Que vontade de ver renascer nossa vida
Volta, querida
Os teus braços precisam dos meus
Meus braços precisam dos teus
Estou tão sozinho
Tenho os olhos cansados de olhar para além
Vem ver a vida
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém


Vinicius de Moraes
Brasil

Cantata em rodas plumas



O amor armou a clava
da tarde e seu alarme.
Quer, albatroz, levar-me
onde alcançam suas asas.

Vem, ditoso, acordar-me.
Quer nos levar nas rodas
das plumas e avalanches.
Nós chegaremos antes

com jubilosas almas,
que se absorvem, alvas
e salvas, nos redutos.
De céu a céu, conceitos

são cinzas e ferrugem.
E os que se amam, pungem
de amar, e mais amando
em gozo, em gozo, em bombo

ou nos vestígios, nuvens;
nos elos desta lava.
Em mais amor solvemos
o que se faz pequeno.

E humano: abismo, abismo.


Carlos Nejar
Brasil

Os rumores edificaram o medo


Os rumores edificaram o medo
cantamos a urgência dos lugares.
Encheram-nos as pupilas de palavras
amendrontadas;
Edificaram-nos também os passos
com as botas sobre a Aldeia.
Agora um país tem as têmporas a arder
de nossos medos
mas é apenas a memória dos tumultos.


João Tala
Angola

22.7.11

Vestígios



há demasiados vestígios teus
em mim

por isso a noite não passa.


Ademir Antonio Bacca
Brasil

19.7.11

Persistência



Lava, escorre, agita
a areia. E enfim, na bateia,
fica uma pepita.


Guilherme de Almeida
Brasil

Consciência



Neste exato momento, porém,
sei e sinto também,
que apesar de ter sido simples criatura,
das que cuidam bem da casa,
dos filhos, das amizades e do marido,
e de contar estórias para outros lerem,
nada fiz de especial,
assim, como, por exemplo,
um feito patriótico.

Isso, porém, no momento,
pouco importa.

O que está mesmo pra valer incomodando
é não saber eu, quando é que nossos políticos,
deputados, senadores e ministros
irão descobrir a maneira certa,
para libertarem a nossa gentil Pátria amada Brasil
do julgo norte-americano


Ada Ciocci
Brasil

16.7.11

O mar visto da cadeia



o mar é largo
e profundo.
tão largo e profundo,
que cabe todo inteiro
e amargo, no fundo
do simples olhar que lhe deito...

estendido e liso,
refeito como um ventre de mulher
apetecido sem aviso,
já teve sereias e monstros,
ossos a apodrecer,
para ser, agora,
de um qualquer...

desecanto a apodrecer-
-me o canto, nesta hora?
- só se for nas areias
onde morro monótono,
e nas marés-cheias
de tanto luar e espanto
na memória...

já o tive
insatisfeito,
na cova da mão,
no búzio dos ouvidos,
e no sonho que ainda vivo
de uma doce ilusão...

inventei-lhe
desaparecidos ecos,
talvez reinos perdidos,
tesouros, conchas,
algas e palácios
encantados de mouros...

depois ficou só o mar
vulgar, indigesto,
azul, verde, prateado,
"grande, grande...",
com o resto afogado
no coração...

chegou então a hora
do mar lúcido
sem papão,
apreendido,
económico,
assassino, embora,mas também elo de ligação...


António Cardoso
Angola

Retrato puído nas entranhas



Palmeiras inclinadas. Ao longe o casario.
É na água que o vejo, que sinto a cidade acordar.
Mais uma mulher que olha o rio. Tenho as mãos desatadas,
os pés a caminho. As margens alargam quando estou perto,
mas do outro lado as mulheres não reflectem
o rosto ou mesmo a sua ausência.
São matéria do verbo fazer e caminham junto ao chão,
na curva da noite para o marido. Gastos os sonhos por usar.
Descorado pano que ficou ao sol. Nelas a cidade não acorda,
não regressam os barcos à tardinha.
Vêm pela beira dos caminhos, a tristeza amável,
a raiva cega e às vezes um sorriso que sacode os ombros
porque até a tristeza tem um custo, uma esperança
na sola do sapato. Vejo-as todos os dias e é como se a vida
me atasse os pés, me anelasse os dedos. Como eu,
outras mulheres olhando o rio, desbordando o pano,
descozendo a sopa. Ama-se o homem que vira a esquina
connosco e sabe que não podemos fingir que a ferida
está fechada. As casas acendem.
É na água que vejo a sua luz descendo o rio.
As mulheres passam em silêncio para as casas,
atravessam a pele – deixam um retracto puído nas entranhas.
Olho o rio e não sei fingir que finjo tanto mar.


Rosa Alice Branco

14.7.11

Ginja, Goiaba e Groselha



Hoje vamos fazer compotas:
- Ginja! Goiaba! Groselha!
Saltem todas para o tacho
prà calda ficar vermelha!

A goiaba é do Brasil
faz um doce de encantar
parecido co'a marmelada
mas com outro paladar.

A groselha é europeia,
faz um doce requintado;
faz compota, faz geleia
dum vermelhinho rosado.

Mas a ginja essa pretinha,
tem um famoso sabor:
faz compota, faz ginjinha,
faz geleia e faz licor.


Rosa Lobato de Faria

Escrever



Escrever a dor
sem revolver o fogo,
a envelhecida cinza.

O que pode o amor
com os dons aprisionados?

Escrever
a ferocidade das coisas.


Carlos Nejar
Brasil

Missão



Meus versos terão cumprido a sua missão
se puderem ser pedra e areia
servirem de barricada.

Se puderem ser o hino, quando o desânimo
se levantar como a poeira dos escombros.

Se puderem permanecer no alto, como a bandeira
rasgada e irreconhecível, mas tremulando.

Terão cumprido a sua missão
se na hora em que precisarem deles
não negarem fogo como a boa arma,
se outros puderem ouvi-lo, como o esperanto,
depois da vitória do homem e da vitória do povo.


JG de Araujo Jorge
Brasil

13.7.11

Ziarat no Itifaque



Largas vestimentas de túnicas compridas
Chávena de leite de kir
Para adocicar o ambiente de ziarat no itifaque
Turíbulo de incenso atazanado satã
Ao coro de vozes no ritmo da récita corânica
Raça de crente de Ala
Na missa de livrar o morto da geena!


Amin Nordine
Moçambique

10.7.11

Os teus cabelos


Os teus cabelos escrevem-se com sorrisos de deusas
Tocam-se em laranjas e gomos de guitarras
Bebem-se nas águas das vogais do olhos
Que só tu e eu despimos em estrelas fulgentes
E tu amor, quando me estendes os teus braços
E eu corro como uma criança aturdida para o teu colo
Os teus cabelos voam-me, mas não se dizem com os lábios
Senão com corações que batem desenhados sobre nuvens
Sentem-se como húmidos bejos nas asas de pássaros
Amam-se com a terra e a chuva que sedentos se gretam
Cada fio é um pedaço de voz nas mãos quentes do sol
São uma pedra susurrada onde guardamos perfumes
Onde nascemos e morremos todos os dias como o tempo
Enquanto nossas bocas trémulas se põem na letra c
E todos os outros caracteres são os lençóis de nossa cama!


Manuel Feliciano

9.7.11

Este homem


Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

António Ramos Rosa

O Verão estala por todos os poros


O Verão estala por todos os poros
da casca das árvores,
da língua dos cães,
das asas das cigarras,
do bico do peito das mulheres
tão acerado
que rasga o céu de calor
com um golpe preciso
de lanceta.

João José Cochofel

O tempo



O tempo tem aspectos misteriosos:
Um ano passa a toda a velocidade,
E um minuto, se estamos ansiosos
Parece, às vezes, uma eternidade.

Um dia ou é veloz ou pachorrento
-depende do que está a contecer-
O tempo de estudar, pode ser lento.
O tempo de brincar, passa a correr.

E aquela terrível arrelia
Que até te fez chorar, por ser tão má,
deixa passar o tempo. Por magia,
Quando olhamos para trás, já lá não está.


Rosa Lobato Faria

Segredo



Os gestos que esconderam qualquer rosto.
E mais nada. O que sentes lembra agora
uma enseada ao longe. assim o modo
de surpreender mais cedo o que era a mesma

imagem que sujeita a própria ausência
ao que por ser assim contém a nova
vontade de encontrar uma mais íntima
direcção insuspeita que se alonga

noutro sentido até ficar oculta
só por instantes no que se aguardava
há muito: este segredo onde procuras

um rio ou uma ponte, os gestos leves
sobre o rosto voltado para nada
daquilo que foi nosso e assim se perde.


Fernando Guimarães

7.7.11

Sina



Por todas quantas estrelas
Tem o céu que possam mais,
Pelas flores virginais
De que se c’roam donzelas,
Pelas lágrimas singelas
Que o primeiro amor derrama,
Por aquela etérea chama
Que a mão de Deus acendeu
E que na Terra alumia
Quanto há na terra do Céu!

Por tudo quanto eu queria
Quando eu sabia querer,
E por tudo quanto eu cria
Quando me era dado crer!
Bem-fadada seja a vida

Que por estas folhas brancas
Sua história há-de escrever!
Que as dores lhe venham mancas
E com asas o prazer!

Esta sina que lhe dou,
Bruxa não na adivinhou,
Nem duende ma ensinou:
Li-a eu por meu condão
Em seus olhos inocentes,
Transparentes - transparentes
Até dentro ao coração.

Almeida Garrett

6.7.11

Horas abertas



Batem horas curvadas cheias de figos
É tempo de nascer numa boca seca
Comer sem fome caminhos tortuosos
Lamber a terra até te encontrar no grão
Ah amor é na mísera procura que me sabes
A uma laranja de sumo a arder ao sol
Degolei todos os Invernos despidos
Escarrei nos dias submissos que em arrastam
Escrevi a felicidade numa pedra de gelo
Mas com caracteres de ferro em fogo
Amo-te tanto que quebrei o aço dos braços da terra
E os telhados são cardumes de peixes no estômago
Finquei os olhos nas ventoinhas inertes dos montes
E a minha voz limpou as névoas com o teu nome
Não acho que a vida é para engelhar num bolso
A minha língua pinga no mel dos figos
Acendem-se pedras ao esmagar-me os dedos
Não quero que me cubram com guardas-chuva
A vida amassa-se com dedos nos verbos da lama
Eu vou seguir pelo mar no barco de mim mesmo
Foda-se se fizeram greve no porto de Lisboa
Cansei-me de mãos amputadas sem um arranhão
De um charlatão vendendo-me sonhos à porta
Da tinta velha que cobre o céu esfarrapado
Dos olhos impressos nos papeis húmidos das paredes
Que me importa um homem de gravata numa rua
Como quem está pendurado num estendal de roupa
A vontade impressa em passaportes caducos
Duas nuvens dar-me-ão os braços sem carne
Até que os teus seios me queimem com amor a boca
Nem que uma flor pense com força eu e tu de mãos dadas
Sobre burilares de ondas ao som vermelho das línguas
Timbradas na espuma de seda que desfaz entre os dentes
Onde o teu vestido se solta em alvoradas de azuis!


Manuel Feliciano

Samarcanda


Navega-nos por dentro como o mar
o fortuito desejo de a possuir
Incidentes solares onde o lume
de dentes e espadas seja baço
para que o sol não desalinhe
as planícies dela derramada
no tumulto do poente
Pálpebras pesando
sob o peso da consciência
Orientes rumorejando o silêncio
nas gargantas
irrigado pela velha poeira do sangue
Aqui os Homens são feitos
de chão sem vento
e os rostos gritam ideiais
mesmo antes de desabarem


Andreia C. Faria

5.7.11

Fragmentos


Na fragrância da música
que sai do teu corpo
e toca o meu,
como cristais de água escorrendo,
na miragem
de um oásis sedento,
em boca ressequida
numa lagoa sem fundo,
o teu beijo quente
evapora cada gota que
se solta no orgasmo da minha pele.

És uma âncora secreta
onde me aninho me deleito me desnudo
em cada fragmento do meu verso.


Otília Matel

2.7.11

Eu quero apenas amar-te lentamente



Eu quero apenas amar-te lentamente

Como se todo o tempo fosse nosso
Como se todo o tempo fosse pouco
Como se nem sequer houvesse tempo.


Joaquim Pessoa

Deitado na areia



Horas e horas deitado na areia caído
Na praia
Ou por algum braço arremasado. Pouco a pouco
Deixei de sentir os grãos finíssimos
Colarem-se-me à pele. Deixei de ver
O céu que meus olhos olhavam.
As primeiras ondas que me tocaram os pés
Ainda as senti − bocas minúsculas
Bebendo meu sangue silencioso.
Mas as segundas já não eram frias nem quentes já não
Eram
Suaves nem ríspidas já não possuíam
Lábios nem dentes. E nada sei
Das seguintes como nada já sabia
Da areia nem do sal nem dos bichos que passavam
Por cima do meu corpo depois de terem passado
Pelo corpo da areia.
Durante algum tempo durante a rigorosa eternidade
De um momento
Foi como se eu fosse também areia mar e sol
E talvez eu tenha sido
Areia sol e mar. O resto
É vento.


Casimiro de Brito

1.7.11

O sal da língua


Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extingue o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade