31.8.10

Metafísica




Foi em Taipé.
Se bem me lembro, a 3 de Outubro.
Nas árvores o sol crescia devagar.

Entrámos num dos templos da cidade
e era quando os crentes fazem as suas oferendas.
Uma monja revestida de amarelo oficiava
e o fumo dos pivetes enlaçava-se
na música dos sinos e dos címbalos.

Nunca vi em parte nenhuma uma monja tão bela
e os seus gestos oficiando eram belos como ela.
Na música transportava-me não ao céu
mas aos braços da monja erguidos
maduros e redondos para o amor.

Sobre um estrado recebendo as bênçãos
vi comidas que só os chinas sabem oferecer a deuses
e que pelos deuses abençoadas eles retomam, e comem.
Mas sobretudo vi um cacho de bananas
cor de ouro, enormes, sardentas.

Quando saí não pude deixar de comprar bananas,
que logo amorosamente devorei.
E por isso ainda hoje penso na monja de amarelo,
nos gestos que fazia oficiando.

Nunca mais voltarei a Taipé
nem comerei bananas como aquelas.
Que a vida é assim, amigos:
recordar, por exemplo, a beleza de uma monja
e um cacho de bananas
e contentarmo-nos depois com o que temos
onde não temos nada disso.


Pedro da Silveira

Desassossegos



por entre nuvens violáceas
de fim de sábado
levita a lua vadia
despede-se serena a noite
enquanto se estende devagar
o domingo a madrugar

passa das seis da manhã

exasperadas mães de “teenagers”
enroscam-se em tristes lençóis
de corações apertados
mergulham no celeiro das ideias
conjecturam histórias imagináveis

angústias a fervilhar
a substituir os sonhos
a alimentar espíritos ansiosos

há portas que demoram a fazer entrar

porque crescem os filhos?


Filomena Fonseca

No corpo feminino, esse retiro




No corpo feminino, esse retiro
- a doce bunda - é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro

a mão em concha - a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro.

me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.

Carlos Drummond de Andrade (Brasil)

Certidão de Óbito


Um tempo de lanças nuas
espera por nós, riso
cruel de maxilas em riste.
Entanto a vida desabrocha
tenra e tépida,
fruto e flor na ânsia secular
de quem tanto esperou em vão.
Para nós, todavia,
o tempo é de lanças impiedosas,
de lâminas em cuja brancura
se adivinha já um indício
do nosso sangue. Deste tempo
sobrou-nos a acerado das lanças:
este o quinhão ácido que nos coube
e que mastigamos resignadamente.

Entanto, num levedar de ternura,
frágil e muito bela, a vida desponta
na negra polpa de outros dedos.
Para nós, o prémio do aço,
a estrela da pólvora, a comenda do fogo.
Para nós a consolação do sorriso triste
e da amargura sabida. Falamo-nos
e nas palavras mais comuns
há rituais de despedida. Falamos
e as palavras que dizemos
dizem adeus.

Rui Knopfli
Moçambique

30.8.10

Ah! A loucura no poeta!


Ah! A loucura no poeta!
Sentimo-la perto
Perto como um rumor.
Crispamos as mãos
Para senti-La
- e nunca para a tocar.

E como se se tratasse
Do mais banal dos gestos À cabeça atiramo-la.


Valentinous Velhinho
Cabo Verde

29.8.10

Poema da infância


Uma tarde
o Tóino
chegou ao largo
com um vidro extraordinário
Segurava-se
Entre o polegar e o indicador,
Virado para o Sol.
E do outro lado
Chispavam as sete cores do arco-íris!
E nós
Em volta,
Esquecidos do jogo do pião…


Manuel da Fonseca

As estrelas não virão esta noite




Dá-me a tua mão mas isso não te contentará eu sei
Obcecada que estás pela chama das estrelas
Eu não te posso consolar então e por mais que tente
E meus dentes e sorrisos rimem com os meus passos
Falta-me qualquer coisa dos grandes homens Bantos
Nem Mbila e nem Mbira toco como poderia então
Estender tapetes de sons para a tua passagem
Ou capulanas em noites de loucura?


Chagas Levene
Moçambique

Poesia


é a visita do tempo nos teus olhos,
é o beijo do mundo nas palavras
por onde passa o rio do teu nome;
é a secreta distância em que tocas
o princípio leve dos meus versos;
é o amor debruçado no silêncio
que te cerca e que te esconde:
como num bosque, lento, ouvimos
o coração de uma fonte não sei onde...

Vítor Matos e Sá
Moçambique

28.8.10

Se...



Se tiver medo, não posso
atravessar esse bosque,

todas as copas das árvores
hão-de ladrar aos meus pés.

Até a lua por certo
com veneno cor do leite

à socapa vem morder-me
na ponta do calcanhar.

Se tiver medo, não posso
atravessar esse bosque,

as ervas hão-de ceifar-me
antes mesmo de morrer.


José António Almeida

Estive a olhar a Lua


Estive a olhar
a Lua
não creio
conseguir recuperar

Joaquim Falé
Moçambique

A morte da música pode ser lisa entre o início de um verão




A morte da música pode ser lisa entre o início de um verão
e a direção que faz o silêncio. A surdez levanta a imagem
que a sombra distraidamente enterrara a cinco
palmos do chão. Para o coração se salvam as gaivotas
que levaram os mares para bem perto do sol que se despe
com o jeito das mulheres. A cicatriz é delicada
como se tivéssemos que olhar para a memória
com uma outra escolha astúcia. Hesita-se mas sabemos
que no ombro se fazem as glórias muito breves
e à deriva do coração. Cada erro persegue o espírito
que faz o teatro dourar mais que uma lágrima, um longo
cenário acaba por disfarçar-nos perante
o que nunca fomos. Faz-se um corte no dedo indicador
quando se perde a aurora para que a terra
fique mais perto da insónia. Vemos o abandono da juventude
vindo agora de nós uma interpretação
sem chamas. Por isso as palavras vão compondo
numa só estrofe o que a vida mesmo atenta não pode
consagrar.

Adriano Botelho
Angola

27.8.10

Quase de nada místico



Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,

e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:

poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,
que (aproveitando) trago para ti.


Ana Luísa Amaral


Africana


dizes que me querias sentir africana,
dizes e pensas que não o sou,
só porque não uso capulana,
porque não falo changana,
porque não uso missiri nem missangas,
deixa-me rir...
mas quem é que te disse?!
Só porque ando de "Levis, Gucci ou Diesel",
não o sou... será?
Será que o meu sentir passa pela indumentária?
Ou que o serei
pelo sangue que me corre nas veias,
negro, árabe, indiano,
essa mistura exótica,
que me faz filha de um continente em tantos
onde todos se misturam,
e que me trazem essa profundidade,
mais forte que a indumentária ou a fala,
e sabes porquê?
Porque visto, falo, respiro, sinto e cheiro a África,
afinal o que tu saberás? O que tu sabes?
Deixa-me rir...
deixa-me rir...

Sónia Sultuane
Moçambique

O Amor de Agora é o Mesmo Amor de Outrora


O Amor de Agora é o Mesmo Amor de Outrora

O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.
Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.
Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno.

Dante Milano
Brasil

Não pensem que...



Não pensem que vou desistir da vida,
Só porque os dias me açoitam
E as noites me agitam.

Não pensem que vou desistir da vida,
Só porque lá fora o mundo se atropela
E agente anda aturdida.

Não pensem que vou desistir da vida,
Só porque em Agosto choveu
E o mar estremeceu.

Não pensem que vou desistir da vida,
Só porque os olhos do vento
Se esbugalharam contra os meus.

Não pensem que vou desistir da vida,
Só porque o Gaio deixou de cantar
E a seara não deu trigo maduro.

Não pensem que vou desistir da vida,
Só porque ser amigo demora
E as palavras deixaram de ser sentidas.

Não pensem que vou desistir da vida,
Só porque desacreditaram os poetas
E esqueceram as laranjas da madrugada.

Não pensem que vou desistir da vida,
Só porque uma árvore morreu queimada
E a rosa murchou no umbral da tua casa.

Não pensem que vou desistir da vida.
Não pensem que vou desistir da vida.
Sobra-me o espanto e tanto atrevimento.

Maria José Areal

O meu canto

Tu és o meu cisne
A minha última criação
No urgir das asas

És o meu ângulo saliente
No vértice do encontro
Lírio com os sonhos

És o olho angustiado
No que me falta ainda
Por a vida não ser o bastante

És a minha sã loucura
No óbolo beijo
No toque dos dedos

És o meu silêncio
No sussurro lírico
Da minha voz nas palavras

Poesia
És o meu canto

Tânia Tomé
Moçambique



Deixem-nos cantar os bons!


Deixem-nos cantar os bons!
Que se deixem cantar os bons!
Que nos dêem o tempo!
Há que ter o tempo!
e sabe-lo.
Conquista-lo!
Que nos dêem o tempo e o desejo!
A capacidade
temo nos.
de descrever os tempos
fortes
da nossa vida!
Que nos dêem o tempo
Nos os poetas
e o desejo de cantar.


Jorge Ampa Cumelerbo
Guiné

26.8.10

Poema



1.

Nada está prescrito, nada se cumpre como um destino. A anterioridade
situa-se diante de um olhar que a atravessa e a transforma na possibilidade
do acto de ser um puro começo. Cada palavra consuma o
seu início no extremo de si própria e deixa o campo intacto para a
liberdade do sopro anónimo e dos nomes novos no seu espaço aberto.

2.

A relação do ser e do horizonte é circular. É talvez o aberto que cria o
horizonte, é talvez a respiração que abre o mundo. Mas o alento não
poderia romper sem a linha pura do horizonte e a lâmpada da respiração
não se acenderia se o mundo não fosse já o extenso mundo do aberto.
Por isso a escuta é a espera vazia aberta ao tempo e à possibilidade
de uma palavra livre mais fi el à simplicidade nova de um começo.


António Ramos Rosa

Tu já me arrumaste no armário dos restos



Tu já me arrumaste no armário dos restos
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos
e das nossas memórias começamos a varrer
as pequenas gotas de felicidade
que já fomos.
Mas no tempo subjectivo
tu és ainda o meu relógio de vento
a minha máquina aceleradora de sangue
e por quanto tempo ainda
as minhas mãos serão para ti
o nocturno passeio do gato no telhado?

Isabel Meyrelles

Gajaja


Fruto pálido, empaludado…
Cereja dos trópicos
de cor desmaiada.
Luanda:
- onde estão as tuas gajajeiras
que a troco dos seus frutos
pedradas eu lançava,
pedradas que magoavam
- pedradas de criança!
Por certo que foram destroçadas,
sepultadas
em teus alicerces
da Brito Godins
e de todas as Ingombotas,
tal como os frondosos cajueiros.
Vi hoje uma gajajeira já quase morta.
Havia pedras a seu lado,
areia e cimento
e um buraco longo, rodopiando,
fazendo quadrados,
rectângulos, quadrados…
Se a minha fortuna não fosse feita de sonhos,
compraria aquele terreno.
A copa da gajajeira
seria o meu chapéu,
a umbela dos dias quentes
e das noites de luar e de cacimbo.
Luanda:
- onde é que estão as nossas gajajeiras?
Essas gajajeiras que me davam
as gajajas da minha infância
os frutos da minha vadiagem!
Eu atirei pedradas!
Mas tu, Luanda,
o que fizeste delas?

Tomaz Jorge
Angola

Os Ombros Modulam o Vento



Entristece
a tua tristeza - e canta

(os ombros modulam o vento
modulam a noite
a soberana voz
dos horizontes)

entristece
a tua tristeza - e canta

Zeto Cunha Gonçalves
Angola

25.8.10

Apago cigarro após cigarro


Apago cigarro após cigarro,
a chávena ainda quente do café,
e o corpo todo à escuta.
No sono entrevi o teu olhar e
ao visitar-te, excessivamente te beijei.
Entre temor, entre comas, os lugares
que habito são apenas pontos
de esquecimento e fuga.
Tenho medo, por vezes, de estar em casa,
outras, de sair, não sei o que me persegue
ou persigo, movo-me apenas
por entre odores, escombros, e aflita
com perigos indefiníveis.

Helga Moreira

Amor imperfeito


A perfeição
é um momento,
por demais claro.
Como repeti-la,
sem enfaro?

A perfeição,
se possuída
a todo instante
se faz rainha
suicida.

Quem já mediu
o perfeito,
rosa de prata,
mas em sua
medida exata?

Nada existe
sem o defeito
que lhe dá graça.
Só amo a graça
do imperfeito.

O perfeito
quando existe
tem o defeito
de ser triste.
(Lácrima Cristi)

Cassiano Ricardo (Brasil)

24.8.10

Serão Menino



Na noite morna, escura de breu,
enquanto na vasta sanzala do ceu,
de volta das estrelas, quais fogareus,
os anjos escutam parábolas de santos...

na noite de breu,
ao quente da voz
de suas avós,
meninos se encantam
de contos bantus...

"Era uma vez uma corça
dona de cabra sem macho...
......................................
...Matreiro, o cágado lento
tuc...tuc...foi entrando
para o conselho animal...

("não tarde que ele chegou!")
Abriu a boca e falou -
deu a sentença final:
"-não tenham medo da força!
Se o leão o alheio retém
-luta ao Mal! Vitória ao Bem!
tire-se ao leão - dê-se à corça."

Mas quando lá fora
o vento irado nas frestas chora
e ramos xuxualha de altas mulembas
e portas bambas batem em massembas
os meninos se apertam de olhos abertos:

- Eué

- É cazumbi...

E a gente grande -
bem perto dali
feijão descascando para o quitende -
a gente grande com gosto ri...

Com gosto ri, porque ela diz
que o cazumbi males só faz
a quem não tem amor, aos mais
seres busca, em negra noite,
essa outra voz de cazumbi
essa outra voz - Felicidade...

Viriato da Cruz
Angola

23.8.10

Auto-retrato


Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;

E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato.

Ana Hatherly

Inverno



Zefa, chegou o inverno!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa,
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojés,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar, tudo,
moça e viúva!
Chegou o inverno
Covas bem fundas
pra enterrar cana:
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nelas se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa...
E mais gostoso
que tudo isso:
noites de frio,
lá f ora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras caídas,
córgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha dágua,
café, cigarro,
cachaça, Zefa...
...rede gemendo...
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora a chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Mas tudo isso, Zefa,
vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!

Jorge Lima
Brasil

Antes da orgia




... cavo a terra forjo o ferro faço o pão.
quando quero, sempre quero!
mesmo quando os makixi sangram pelo sexo.
e nos seios mirrados eivados
trazem o quente sabor da bílis.
dos dias sem chuva...

Conceição Cristóvão
Angola

Há um homem



1.Há um homem em cada
noite, que se multiplica em suadas mãos
para esmerar um corpo amado.


2.Há um homem
que se dissolve em suspiros
e queda fatigado nos teus braços
a cada noite, mulher!


3. E no oficio árduo das madrugadas
nasce um homem, um homem novo,
um homem de mil e uma auroras
assim como se plagiasse o resplandecer
dos teus olhos, mulher,
para cravar os astros de prazer.


4. Há um homem, mulher,
um homem que sou,
um homem que nasço,
somente quando te amo.

Eusébio Sanjane

Violada


Possuíram-te nas ervas,
Deitada ao comprido
Ou lívida a pé:
Do estupro conservas
O sangue e o gemido
Na morte da fé.

Chegaste a cavalo
Trémula de espanto:
Esperavas levá-lo
Com modos de amor:
O fátum, num canto,
Violento ceifou-te
O púbis em flor:
Dou-te
O acalanto
Mas não há palavras
Para tal horror!

Vem ainda em cós, mulher,
Limpa as tuas lágrimas no meu lenço:
Nem pela dor sequer
Eu te pertenço.

O cavalo fugiu,
Deixou-te em fogo a fralda:
Que malfeliz Roldão
Para tal Alda!
Ao frio, ao frio,
Tinta de ti é a água e sangue o chão.

Ponta Delgada a arder
Do próprio pejo, quis
Em verde converter
O incêndio do teu púbis.

Mulher, não me dês guerra,
Oh trágica enganada:
Tu és a minha terra
Na carne devastada
Como a Ilha queimada.

Vitorino Nemésio

22.8.10

Discurso do vagabundo desgraçado



Rabujentas bocas de falar sem medida
Há muito que Deus sumiu por estas bandas
Ele agora não passa de um céu limpo
Sem lua, sem estrela
Ele agora não passa de um moribundo...


Amin Nordine
Moçambique

21.8.10

Saudade da prosa



Poesia, saudade da prosa;
escrevia «tu», escrevia «rosa»;
mas nada me pertencia,

nem o mundo lá fora
nem a memória,
o que ignorava ou o que sabia.

E se regressava
pelo mesmo caminho
não encontrava

senão palavras
e lugares vazios:
símbolos, metáforas,

o rio não era o rio
nem corria e a própria morte
era um problema de estilo.

Onde é que eu já lera
o que sentia, até a
minha alheia melancolia?

Manuel António Pina

Soprar os fios



Pêlos de gatos cinza eriçados como ratos
amigos mortos
vozes sem corpo
silêncios desdobrados na distância

é preciso soprar
sobre os fios de aranha que restam

e deixá-los ir


Ana Viana

20.8.10

Infância


Coração preto gravado no muro amarelo.
A chuva fina pingando... pingando das árvores...
Um regador de bruços no canteiro.

Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...
Baú de folha-de-flandres da avó no quarto de dormir.
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maçã verde no prato.

Um peixe de azebre morrendo... morrendo, em
dezembro.
E a tarde exibindo os seus
Girassóis, aos bois.

Manoel de Barros
Brasil

19.8.10

Krapp



Ouço a minha voz
como se estivesse ao telefone,
ouço a tua
murmurando-me ao ouvido
mesmo depois de já não nos
conhecermos,
ouço as canções
de que já não gosto,
as canções de que gosto ainda,
gravadas por amigos tão diferentes,
pirateadas numa madrugada
quando em época de exames
ouvia rádio,
canções interrompidas
por locutores, publicidade,
registos sobrepostos,
ruídos sem interesse,
a tua voz dizendo que nunca
te vais embora,
a minha,
emocionante aos quinze anos,
emocionada aos vinte,
espolio de plástico
que me documenta e reclama.


Pedro Mexia

Psiquiatria I




Reverbero de minha esquizofrenia
dias de mim cuidados
atravessei o Hospital Psiquiátrico
ninguém mais mora lá;
os doutores partiram quando o tempo
[envelheceu
e o princípio pariu o fim - uma estrada
onde passo com o livro descuidado,
sem brio, um tratado de loucura.
É o tempo abordado e paginado
com o sangue na caneta;
o tema das cicatrizes que não foram
[encontradas
porque a enfermeira as escondeu
quando forjava a própria madrugada

João Tala
Angola

18.8.10

No Coração, Talvez



No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.

José Saramago,
in "Os Poemas Possíveis"

16.8.10

Esquece-te de Mim, Amor


Esquece-te de Mim, Amor
Esquece-te de mim, Amor,
das delícias que vivemos
na penumbra daquela casa,
Esquece-te.
Faz por esquecer
o momento em que chegámos,
assim como eu esqueço
que partiste,
mal chegámos,
para te esqueceres de mim,
esquecido já
de alguma vez
termos chegado.

António Mega Ferreira

Agora sem faro calígrafo




com a superfície em posição estrutural
configura-se inesperada montanha um gesto
espontâneo também o silêncio pintando folha no norte da língua
pálpebras previstas em casa chegam a seus pés
o milho que fosse caverna acesa
há uma mesma tarde na boca
os caroços olhos cristalinos permeiam constelações
na própria boca que rumo?
haverá um metálico lado do antigo depoimento
faz a presença a escultura
entra de alguma forma o triângulo de casa

Abreu Paxe
Angola

15.8.10

O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros


O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar

a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. As vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada

aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.

Maria do Rosário Pedreira

Um homem ao crepúsculo


Um homem ao crepúsculo
sabe que os poetas e as mulheres
percorrem as ruas da cidade

na peregrinação dificílima do amor.
Esperam-nos em caves secretas
unguentos e odores tropicais
então, um homem tranqüilo torna fácil a nudez.

Maria Alexandre Dáskalos
Angola

13.8.10

Fui ao fundo do mar



Fui ao fundo do mar
e voltei
mas agora não há
quem me consiga salvar
da Loucura

Joaquim Falé
Moçambique

Um canto para Mussuemba



Ó mãe dos gafanhotos
sentados na lavra da boca deserta:
quantos comboios pariu a tua fome
sobre tijolos gravados ao corte da língua?
O abecê do tempo sangra no pilão
e a chuva de Abril nos cafeeiros
é a mulher kilombo, dizem
morreu um leão no fogo do teu ventre
onde caminhei de animais na mão.

José Luís Mendonça
Angola

Reconhecimento do amor



Amiga, como são desnorteantes
os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
(ou que forte se pensava ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.

Descansei em ti meu feixe de desencontros
e de encontros funestos.
Queria talvez - sem o perceber, juro -
sadicamente massacrar-te
sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
desde a hora do nascimento,
senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
ou mais longe, desde aquele momento intemporal
em que os seres são apenas histórias não formuladas
ao caos universal.

Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em docura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.

Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando - por esperteza do amor - senti que éramos um só.

Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos tarnsmutamos dispensa
alegorias, circunstâncias, referências temporais,
imaginações oníricas,
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,
a revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o número perfeito:
UM.

Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
a melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.

Carlos Drummond de Andrade (Brasil)

12.8.10

Nada mais



Não há mais que inventar.
Não há mais que dizer.
A sintaxe está gasta.
As imagens estão gastas.
Mesmo a Morte está gasta
E todos os poetas
O deviam saber.

A moral está já gasta.
Gasta a anormalidade,
E a imoralidade,
E a amoralidade.

Gastos os sentimentos
E todos os tormentos,
Mais os grandes amores
E todos os pavores.
Gastos rios e serras,
Mais os erros das guerras.
Gasta a Ciência e a Arte.

Gastos,lutos,enterros,
Cemitérios,jazigos,
Lágrimas,desesperos,
Sacrilégios e perigos,
Crimes,roubos e monstros,
Lirismos e fardins,
Naufrágios,terramotos
E o dilúvio do Fim,
Planetas e vigílias
De mortes pressentidas,
Mais o amor das famílias,
Gastas todas as vidas!

Que tudo está já gasto
Porque morreste um dia.
Porque à tua paixão
Opuseram traição.
Aos teus braços de mel
Só opuseram fel.
Ao teu canto,ao teu riso
De ave do Paraíso,
Opuseram cegueiras,
- Monte das Oliveiras!


E se à minha paixão
Opuserem traição;
Se ao meu canto,aos meus risos,
Negarem Paraísos,
E cegarem meus olhos
Com pedradas certeiras,
Foi bem mais triste o teu
Monte das Oliveiras.
Todo o futuro é gasto
Porque morreste um dia.


Procurar-te,é bem pouco.
Achar-te,era demais.
Em mim,em qualquer ponto,
Te escondes e te esvais...


Natércia Freire

Tão perto de morrer de tanta vida


Tão perto de morrer de tanta vida
que em meu ser acordava
e nem conter podia tanta vida
que viva me tomava
e nem extravasar de tanta vida
a vida comtemplava
e não cabendo em mim tão extrema vida
por arma a desamava
virando-se contra a vida.

Tão perto de morrer e não morri
de vida tanta que em vida contagiavas
por toque de alma e depois completavas
no que total o ser em ser se achava.


Agripina Costa Marques

11.8.10

Canção do soldado no Cerco do Porto




Sete balas só na mão
Já começa amanhecer.
Sete flores de limão
Pra lutar até morrer.

Já estremece a tirania
Já o sol amanheceu.
Mil olhos tem o dragão
Há chamas d'oiro no céu.

Cresçam monstros e canhões
Contra este mar de vontades
A força bruta não pode
Vencer o sol das verdades

Abriu-me o peito o luar
Companheiros acercai-vos.
Arde em nós a luz do dia
Companheiros revezai-vos.

Já o rouxinol cantou
Tomai o nosso estandarte.
No seu sangue misturado
Já não há desigualdade.

Cresçam monstros e canhões
Contra este mar de vontades
A força bruta não pode
Vencer o sol das verdades


Urbano Tavares Rodrigues

Praia da Granja


Pelo que quer que seja a exaltação habito aqui,
nesta casa de sete janelas,
com uma pequena porta e uma varanda verde.

A praia incendeia-me os olhos,
e chamo, chamo à mulher espiral do mundo.

Toco com um dedo o muro branco e acrescento
ao entendimento ervas amargas, animais solares
e obscuros, um antigo instrumento de trabalho,
o búzio, o barco, o arado,
um ramo de salgueiro, esta pedra incisiva,
uma maçã vermelha.

Guardo no coração uma voz que vai de lugar em lugar
a interrogar as sombras
e no poema murmura o poder das cintilações
sobre a cânfora,
a hortelã,
os figos,
o encantamento,
a cabeça da víbora.

A extensão desta casa é a dimensão desta praia
divina sobre as águas,
tal como é divina a mulher que me acompanha
e a quem chamo espiral do mundo
por ter criado um sortilégio assim,
uma casa grega,
branca,
nítida,
com sete janelas,
uma pequena porta e uma varanda verde
sobre o mar.

Amadeu Baptista

Conhecer o Mundo




Conhecer o Mundo
Eis o meu Fado!
De nada vale
Remar contra o vento!


Delmar Maia Gonçalves

10.8.10

Abandonei-me ao vento



Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro livre, que me sabe

quando me levantar e o corpo solte
o meu despojo vão. Em toda parte
o vento há-de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.

E os seus fragmentos caem na viração
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.

Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.

Carlos Nejar
Brasil

9.8.10

Os meus heróis



Prezo os símbolos, o rasto e os sinais
da minha nostalgia portuguesa. Mas
os meus heróis verdadeiros não vêm na história,
não têm monumentos nas praças domingueiras
nem dias feriados a lembrar-lhes o nome,
são heróis dos dias úteis da semana
levantam-se antes do sol e recolhem apenas
quando a noite se fecha nos seus olhos,
lavram a terra, o mar, e são jograis
colhendo a virgindade púdica da vida,
sobem aos andaimes, descem às minas
e comem entre dois apitos convulsivos
um caldo de lágrimas antigas,
são os construtores do meu país à espera
mouros no trabalho e cristãos na esperança
famintos do futuro, como se a madrugada
fosse a seara imensa apetecida
onde o sol desponta nas espigas
sobre o casto silêncio da montanha.


António Arnaut