31.3.10

Visão vinte e cinco



E eis que a mulher aparece dentro da sombra,
largando o sangue entre as árvores, e é o seu
corpo visível que se transforma e se deixa levar
pela noite, esquecendo que a sua alma está
presa ao homem que a algemou para sempre.

Não é ele que eu vejo, espanta-se o pedreiro.
E as mãos dele enlouquecem até à exaustão.

Uma coisa nada humana sai do tronco de um
sicómoro. É a mulher esvaindo-se em cinza,
uma borboleta esmagada por um cilindro.
Porque era tarde demais e o amor do homem,
tal como as aves, morreu com o esplendor
das últimas uvas.


Jaime Rocha

Crepúsculo

Sunset Palm Poster

Uma pátria de angústia
No lento anoitecer
Coroa o dia álgido
No verão de ardentes sóis.
Vão morrer os heróis.
A voz crepuscular
Dos campos e das ondas
Agoniza comigo.
E promete e promete
Imensas alquimias
Em braços de outros Dias.
Em bocas de outro Mar
Os deuses vão voltar.
Há quanto tempo eu estou
Marcada a fogo e ferro
Na paz do meu desterro
Na morte sem enterro.
Oiço-te,Mãe,na bruma
Tangendo às nossas filhas
Um instrumento de espuma
Forrado a sumaúma...
E ele,o meu ser de gelo,
O meu senhor de frio,
Amarra-me o cabelo
Aos flancos do navio.

Natércia Freire

Viagem



Em torno da odisseia das ilhas, creio levar
Neste puro desejo que me transcende, a senha
E a palavra-chave de os labirintos serem aqui
Simples lugares de passagem, apenas paisagem...

O andarilho palmilha as dunas, as areias
De intermináveis desertos e todas as ondas
Que os oceanos concedem, quando furibundas
Ou, mesmo, serenadas e das praias acariciadas...

Sem culpa, nem sina – ou de Job puro devedor –,
Percorro de lés a lés o mapa que é de ti e do mundo
Como quem responde à morte o saldo estival...

Como quem salta para a eterna idade da vida
E fica suspenso entre a estrela e sua cadência
A riscar, de viajar tão-somente, o céu da noite...


Pedro Cardoso
Cabo Verde

Poeta




Poeta o que é?
Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
- mas apenas vê
o que não ilumina.

José Gomes Ferreira

Poeta da noite

Poeta da noite
Quando a semente brota na lua
Intelectualidade na boca do beijo
E sémen no “livre arbítrio” da democracia....

Tânia Tomé



Era bom alisar seu traseiro marmóreo



Era bom alisar seu traseiro marmóreo
e nele soletrar meu destino completo:
paixão, volúpia, dor, vida e morte beijando-se
em alvos esponsais numa curva infinita.

Era amargo sentir em seu frio traseiro
a cor de outro final, a esférica renúncia
a toda aspiração de amá-la de outra forma.
Só a bunda existia, o resto era miragem.

Carlos Drummond de Andrade (Brasil)

Anúncio da rosa

Rose The Noisette Art Print

Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,
sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas históricas, todas catárticas, todas patéticas.

Vede o caule,
traço indeciso.

Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.

Vinde, vinde,
olhai o cálice.

Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercância estelar e sofrer vossa irrisão.

Rosa na roda,
rosa na máquina,
apenas rósea.

Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.

Carlos Drummond de Andrade (Brasil)

Canto e lamentação na cidade ocupada


2.

Com ternura crescente, insone, canto.
Com simples flores de angústias,
canto.
Em termos de revolta, crise, sonho,
ergo, à mesa do café vazio e enorme,
meu sonho de viagem sem regresso.
Para enganar a solidão, o medo,
digo palavras, música, esperança.

Canto porque estou vivo e amarrado
à condição de ser fiel e agreste.
Porque em vão nos destroem a memória
com máquinas, rodísios, honorários.
Porque o sol torna fulvo o teu cabelo
e apetecem meus lábios os teus seios.

Canto para espantar o espectro indefinido
da besta apocalíptica, medonha.
Canto e louvo o teu sonho, amigo anónimo,
suando e trabalhando, algures oculto.

Canto a tua coragem, general,
confinado na prática e fora dela.
Canto como quem morde, ofende, esmaga
e, exausto, resiste e sobrevive.

Canto para saber que vale a pena
ter voz, músculos, nervos, coração.
A mesa do café, nas ruas, canto.
Nos jardins, nos estádios, sofro e canto.
No quarto abandonado, sonho e canto.
Nos pequenos cinemas, rio e canto.
Entre teus braços doces, choro e canto.

Descerro a aurora com palavras graves,
cantando. Reinvento a melodia,
o sol aberto, o amor pelas esquinas,
a marca sensual nos ombros nus,
a memória da infância, a tua face
— e canto.
Inutilmente embora,
canto.

Daniel Filipe (Cabo Verde)

30.3.10

Outra Beleza



Uns exibem insólitos perfis
de outra beleza
maquilhada
no mato.

ou
do viés
ou de frente
perfeitos modelos de caveira
desfilam sem nariz.

José Craveirinha
Moçambique

A primeira vez




A primeira vez que entendi do mundo alguma coisa,
foi quando na infância cortei o rabo de uma lagartixa
e ela continuou se mexendo.
De lá pra cá fui percebendo
que as coisas permanecem vivas e tortas,
que o amor não acaba assim,
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo alguma coisa,
foi quando na adolescência me arrancaram do lado esquerdo
três certezas e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens,
seja nas nuvens ou no grafite de qualquer muro.


Affonso Romano de Sant'Anna
Brasil


Quatro vezes sete versos Para Aquela Rapariga


Enquanto não vens nem tu sabes é assim
uma casa que só cheirasse a uvas de setembro
Este quarto esta sala onde o som contínuo é Out of
Nowhere soprado pelo Charlie Parker
Há calma com vento que vem quente enquanto não vens
e podes ter a certeza que o soalho vai ter aroma de estações
A que menos entenderes para melhor a desejares

Entretenho-me com uma breve meditação
sobre o perfil de um velho índio apsaroke
e tenho-te rapariga na visão do vale dos bisontes
onde esperas o bafo morno do fim da tarde
ajeitando o lenço na cabeça e sorrindo
entre o voo de alguns insectos
e a recordação destes dedos que te escrevem

Não me leves a mal se te falo de coisas tão domésticas
mas neste falar assim é que as plantas destes vasos
crescem para o tecto e é lá que está o éden delas
ainda que o vá sendo sempre o ar e
a luz que tomam
cada dia perto muito perto das menores palavras
com que te aviso do paraíso tão à mão

Abel Neves

Restos de chuva

in memoriam de Nhu Xinhu


ossários da esperança
cantarolando fúnebres
no limiar da sepultura
apenas pressentido

longos jazigos
engolindo
os restos da chuva
arribada
com a ilusão de setembro
apenas pressentido

solenes câmaras ardentes
acoitando o vento leste
silentes rememorados esquifes
açoitando o cadáver das cheias
apenas pressentido

longos meses
ininterrupto ciclo
da viva estiagem
namoriscando
as montanhas
áridas e em cio
sonhando
alucinadas
com o silvo da humidade
apenas pressentido


José Luís Hopffer Almada
Cabo Verde

Canto e lamentação na cidade ocupada


1.
Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida

Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma
em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria
e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo

Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor

Daniel Filipe (Cabo Verde)

Como sou - sinopse



Eu sou como as algas:
necessito de luz e calor.
Eu sou como os pinheiros:
verde em todas as estações.
Sou fóssil de toda e qualquer era,
muito mais homem que fera.

Eu sou um vulcão:
dentro de mim há crateras e grutas,
cheias de estalactites
e estalagmites puras e brutas,
que nascem da filtração
do sangue e lava
de todas as minhas artérias em erupção.

O relevo do meu fundo marítimo
tem mais picos e cumes
que abismos e barrancos.
Os altibaixos internos
que embriagam o meu coração legítimo,
e as minhas entranhas montanhosas
vivem numa eterna bruma de cantos
indubitavelmente cheia de horizontes.

Dentro de mim há cascatas
e cachoeiras. É por isso
que meus lábios e maneiras
sempre falam espuma cristalina
que sai pelos rios
múltiplos da minha voz.

Também tenho portos fluviais
onde desaguam todo o meu
silêncio, todas as minhas
palavras, que aí flutuam,
e são tantas e da mesma linhagem!
Aí ficam, se quedam, e alimentam
a minha personagem primária,
ermita e selvagem.

O meu sangue é como o trigo:
panificável por excelência.
Eu vivo no pão impecável do
meu sangue.

A minha génesis é o resultado
da condensação do «grand pás de quatre»
e criação que alegra e desperta
a natureza vivente e agreste:
terra, água, sol e semente.


José Pastor
Moçambique

29.3.10

Já a luz se apagou do chão do mundo



Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre.

António Franco Alexandre

Quando eu morrer


Há vezes em que nem é a morte que se teme,
o seu sossego de cinza,
a sua solidão escura,
mas como se morre.

Quando morrer
quero fazê-lo sem rumor algum,
sem ninguém que me chore
ou a quem doa.

E queria a morte uma ave,
nocturna ave
sigilosamente partindo
para outro tempo.

Para morrer, fá-lo-ia
em total silêncio,
severo
e lúcido.

Eduardo White
Moçambique

Bissau é um enigma


Bissau é um enigma
Guiné é um mistério
mergulhada numa profunda angústia
eu a construir
e tu a destruíres
Porquê, meu irmão
pergunto
se o caminho é único?

Odete Costa Semedo
Guiné-Bissau

Minha eleita


Algo em ti me fascina
teu mistério me atrai
Não sei o quê
Não sei porquê
É algo que não se vê
é um desejo inato que sai
Deste centro que sou eu!
Não posso, não devo, não sei
Como coroar-te minha eleita!

Vislumbro ondas do mar
No navegar do teu corpo
e neste meu caminhar
Por essa passagem estreita
Desejo poder alcançar
O teu reinar minha eleita!
Viajo nesse teu olhar
E bato no desejo de t'afagar
E se tal m'atrevo e não devo
Como posso então explicar
Este querer que m'espreita
no teu olhar minha eleita?!

O fascínio da tua presença
é algo que me provoca
este sufoco que m'aleita
Um sentimento de louco
Já este momento tão pouco
Como coroar-te minha eleita?


Angelino Pereira

Quiseste-me


Quiseste-me e depois foste desmoronando
glóbulo a glóbulo
alteraste sistemas rebentando artérias
devassaste lugares
deixando vestígios de razão
como sobram nas neves mais eternas
as latas de cerveja os restos do fiambre
em papéis suados de gordura
é urgente fuzilar inúteis
o que invade e destrói o nosso próprio concentrado
campo
lógicas ordenam e revelam
organizam as cinzas do que não se mede
atrevem-se a manchar
sítios remotos
o que de cada ser faz parte incerta
na deriva real da procura
tentam riscar sagrados hipotálamos
com o ponteiro dos factos
a geometria a que te condenaste
vai encerrando os dados que precisas
para jogos de risco, outras encantações
e sempre mais couraças
inerme comandado por regras brutas
como escamas de aço
suturas bolas de natal
sem perceber que pouco tempo existem
irisadas subitamente estalam.


Fátima Maldonado

28.3.10

Noite por Ti Despida



Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos
coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.

Casimiro de Brito

Coração sem Imagens


Deito fora as imagens.
Sem ti, para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em qualquer parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

Raúl de Carvalho

Chuvoso maio!



Chuvoso maio!

Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade ...
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda
que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa...
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa...
e sempre assim!
Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água...

Irene Lisboa

Música triste


Música triste
desenganado
canto nocturno
a pouco e pouco
vai penetrando
meu coração

Nocturna prece
ou pesadelo
não sei que sombra
aquele canto
em mim deixou.

Febre ou cansaço?
Não sei! Nem quero.
lúgubre pranto
de roucas vozes
não tem beleza
- só emoção.

É como um eco
de noites mortas
de vidas gastas
ao deus dará.

Mas eu o recebo
dentro de mim.
Entendo. Choro.
Eu o recebo
Como um irmão.

Adolfo Casais Monteiro

É duro de encarar o sol que brilha

É duro de encarar o sol que brilha
e nada pode, a cólera do touro
contra a manada dos areais do rio.
Quem recebeu a cauda
a cauda arrastará.
Não basta juntar a lenha
para recolher os molhos:
é preciso que a maldade os não desfaça.

Sujeito-me a vestir as velhas peles
e olho à volta
atento ao que se passa.
Eu sei que há luz e sombra
Nuvens e chuva...
Mas chegará a minha voz aos vossos pés
como aos da onça o grito da capota?

Guarda a cigarra o seu canto
perante a voz dos tambores.

Ruy Duarte de Carvalho (Angola)

Não há lua no céu



1.Letárgico o rio deflui
silencioso dentro de uma noite afável,
E vagando pelo cosmo
vai tecendo estrelas-marinhas
pelas dóceis nuvens, que são também
de agua imaculada, e resguardam as profunduras
da tranquilidade, que somente os anjos desfrutam.

2.Pela janela quebrada
do meu quarto, vislumbro
o plenilúnio romper, e quedar
ensombrando a monocromática paisagem
de arvoredos tímidos, e de cores fugidas.

3.Nas calçadas frias, os dedos pedintes
dos meninos reluzem, trepidantes
remendam sonhos havidos, de um áureo
alvorecer.

Eusébio Sanjane

E Agora Só Me Restam


e agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz - esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.

Os deuses não assistiram a isto.

Maria Alexandre Dáskalos
Angola

Da fruição do silêncio



Tratávamos o silêncio por tu
Dormíamos na mesma cela
Acordávamos do mesmo sono

Cada sílaba audível
Completamente nua
Feria dum segundo sénticfe.
O palato hipertenso
Da fria cela dezanove

Farrapos de ambiguidade
Pendiam pelas arestas
Das mais afoitas vogais

Ninguém pressentia
No gume acerado
Da quase indiferença
Que o silêncio aparentava
O perfeito sincronismo
Das sílabas dispersas
Pêlos tímpanos de cada um

Nada sabíamos de nós próprios
Além da angústia lacerante

Coagulando-nos um a um
Nos limites da expectativa

E no écran memorial
Milhões de imagens se degladiando

Era o silêncio devorando o silêncio
Era o silêncio copulando o silêncio
Era o silêncio assassinando o silêncio
Era o silêncio ressuscitando o silêncio

Oh o silêncio o silêncio
Maldito silêncio colonial
Fuzilando-nos um a um
Contra as paredes da solidão

Oh o silêncio o silêncio
Maldito silêncio imperial
Sepultando-nos um a um
Sob os escombros de Portugal


Rui Nogar
Moçambique

Um poema anti-lírico




Olga:

Hoje
não há mais poesia em mim.

O sol,
o céu de nuvens claras,
mantêm juntos promessas falseadas.
Um avião sem raça
caiu longe,
onde florestas riem das debulhadoras,
dos "buldozers"
e o arado é palavra sem sentido.

Os trinta e tantos passageiros
já não são.

E aqui perto
— tu sabes —
aquele nosso colega
ficou sob as rodas dum machimbombo,
colorido de reclames.
Ah! Olga,
porque,
em face disto tudo
esta vontade constante de gritar
pêlos vivos?

Ah! Hoje,
não há mais poesia
em mim,
nem na natureza colorida.
Não pela queda
do avião
ou do homem solitário.

Na Coreia,
os milhares não são mais números,
mas cadáveres,
marcados por bombas,
baionetas,
granadas
e não sei mais quê.

Multidões,
digladiam-se,
algures,
de petróleo nas veias.

E lá,
onde homens abriram a braço um canal,
estudantes trocaram os livros
por pedras
e viram personagens bíblicas
frente ao pecador.

Ah! Olga
hoje não há mais poesia em mim,
que te vou deixar.

Mas os caminhos
de todos os cantos,
chamam-me.
Como ficar parado
junto a ti,
Olga,
sabendo que mais além
a nossa paz
é comprada,
com sangue que não é nosso?

Hoje, Olga,
não há mais poesia em mim,
porque te quero
e não te posso ter.

Hoje
não há mais poesia,
mas esta certeza
da necessidade de lutar
junto aos que lutam...

Ruy Guerra
Moçambique

27.3.10

Em Teus Dentes



Em teus dentes
o sol
é diamante de fantasia
a lua
caco-de-garrafa
e
a mentira
verdade vagabunda
errando de cágado
em torno da lagoa dos olhos da noite
na treva aveludada
de tua pele
os dedos curiosos
são estrelas de marfim
à busca
de um dia caprichoso
despontando de miragem
por detrás das corcundas de elefantes adormecidos

(Angola, angolê, angolêma)

Arlindo Barbeitos
Angola

Queixa

In His Presence Art Print

Toda a noite te esperei.

Quando cheguei
Não estava ainda luar.
E fiquei
A esperar
Que viesses
Como tinhas prometido.

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste.

Fiquei esperando,
Esperando,
E as horas foram caindo,
Uma a uma,
Como gotas de cacimbo.

Entretanto,
Surgiu detrás da Igreja
O disco, em prata,
Da Lua.

Debaixo da gajageira,
Junto à valeta da rua
E sob a luz que me encanta
Vi nascer a madrugada
Da cor da semana santa
Vi como a noite fugia
E como raiava o dia.

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste...


Aires de Almeida Santos (Angola)

Eu sei que vou te amar



Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
A cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que eu vou te amar

E cada verso meu será pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência sua eu vou chorar
Mas cada volta sua há de apagar
O que essa ausência sua me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida

Vinicius de Moraes
Brasil

Decadência




a acácia murchou
Secou
As pétalas caíram uma a uma
Sublimaram-se esperanças magnânimas
Legítimas
A realidade tombou
Com o seu manto da morte
Miséria
Fome
Cóleras…

A fome apertou
O pai protestou
O filho chorou
A mãe amparou

A fome matou
O pai protestou
A policia chegou
E o pai levou
O filho sem forças
Já não chorou
A mãe desamparada
Chorou !


Filomena Embaló
Guiné

Idade da Pedra




(há um discurso de facas nas fronteiras lívidas do rosto.
a madrugada morre de leucemia. e ainda as florestas
não revelam as crateras abertas.
línguas de fogo economizam tristezas. deslizam águas
na luz da pedra.
oh, vidas de pedra, náuseas de pedra. na dura frágil
idade da pedra.)

Conceição Cristóvão
Angola

Mapa-Sexo


Nossos corpos desenharam nos lençóis
o mapa de um país imaginário
– e neles abrimos rios,
descobrimos oceanos,
erguemos, entre gritos e gemidos,
cumes de montanhas,
desbravámos florestas,
neles nos perdemos
e, depois, nos encontrámos,
deixámo-nos cair,
exaustos,
em abismos,
morremos
e ressuscitámos.


Nuno Bermudes
Moçambique

26.3.10

Aquela é a casa



(à memória de Jacinto de Magalhães)

Aquela é a casa
Que me tem cativa
E porque nela vivo
Já não quer que viva

A casa que escrevi
Quando apenas sonhei
Que era rasa (redonda, disseste)
Envolta de água
E de barcos chãos
Baloiçando no horizonte vermelho
Mas não de sangue.

Branca por fora
Tão branca como a cal
Do Eugénio
Tão pura como as cantigas de amigo
Uma casa escrita com palavras
A cheirar a relva molhada
Que se apoderou de mim.

Ficámos em silêncio
A ouvir os ruídos da terra
De olhos fechados
Apalpando o vento
Desenhando corpos nus
Nas nossas mãos de esculpir
Afectos inefáveis.

Uma casa com perfume de versos
E de lenha
Com perfume de vinhos
E de tintas de óleo
Plena de risadas e de lágrimas
Que percorro
Indefinidamente.

Esta é a casa
Que me tem cativa
E porque nela vivo
É força que viva.


Ângela Marques

O avô e o neto



Ao ver o neto a brincar,
Diz o avô, entristecido,
«Ah, quem me dera voltar
A estar assim entretido!

Quem me dera o tempo quando
Castelos assim fazia,
E que os deixava ficando
Às vezes p´ra o outro dia;

E toda a tristeza minha
Era, ao acordar p´ra vê-lo,
Ver que a criada já tinha
Arrumado o meu castelo.»

Mas o neto não o ouve
Porque está preocupado
Com um engano que houve
No portão para o soldado.

E, enquanto o avô cisma, e triste
Lembra a infância que lá vai,
Já mais uma casa existe
Ou mais um castelo cai;

E o neto, olhando afinal
E vendo o avô a chorar,
Diz, «Caiu, mas não faz mal:
Torna-se já a arranjar.»

Fernando Pessoa

De súbito



De súbito,
a tristeza nasce no teu rosto,
suave, densa e silenciosa
– céu da África ainda sem noite nem dia

A lua,
tua irmã africana,
irrompeu dos teus ombros,
esplendorosa e suave.

E ao gesto diáfano das tuas mãos
incendiou-se a noite.

Fernando Couto
Moçambique

Paixão


Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.

Luis Miguel Nava

24.3.10

A Arte de Viver




Habito no halo
dos meus versos
onde incansavelmente
rimo palavras sem rima
e seco lágrimas sem pranto

é a arte de viver...

como lacrar a vida e o amor
sem cantar?
como vencer o tédio e o temor
sem bailar?
eis a razão
porque sonho sem sono
porque voo sem asas
porque vivo sem vida

no avesso dos versos escondo
o tesouro da minha contrariedade
o mistério da minha enfermidade
e o feitiço da minha eternidade

Armando Artur
Moçambique

Confissão


Dizem que o amor é cego,
não nego,
por isso te abro os olhos:
não tenho bens nem alqueires,
eu não sou flor que se cheire,
nem tão boa cozinheira,
(bem capaz que ainda me piches
por só comer sanduíches),
minha poesia é fuleira,
tenho idéias de jerico,
um cio meio impudico
como as cadelase as gatas,
às vezes me torno chata
por me opor ao que comtemplo,
sei que sou péssimo exemplo,
por pouca coisa me grilo,
talvez por mim percas quilos,
eu não sei se valho a pena,
iguais a mim, há centenas,
desejo te ser sincera.
Mas no fundo o amor espera
que grudes qual carrapicho:
são tão grandes meu rabicho
e minha paixão por ti,
que não estão no gibi...
Ao te ver, viro pamonha,
sem ação, e sem vergonha
o meu ser inteiro goza.
Por isso, pra encurtar prosa,
do teu corpo, cada poro
eu adoro adoro adoro...


Leila Mícollis
Brasil

23.3.10

Feições para um Retrato



Na agreste paisagem de dunas
expira a vastidão da savana.
No areal se sepulta o choro do mar
em seu clamor e seu soluço
e a fúria do vento largo
veste de saliva os arbustos sobreviventes.

Mangal de raizes nuas
doí-me o desespero dos teus dedos
ainda longos e cravados à terra.
Na orla do tempo, as aves marinhas
contemplam os despojos com olhos tranquilos
e nos conturbamo-nos à vista
dos despojos e do jeito dos pássaros.

Aqui, só nos vemos
a delgada fímbria do encontro
da morte e da vida
e conturbamo-nos.
E, amando-nos,
avivamos o traço esguio e sinuoso
dessa fímbria de encontro de morte e da vida.

Fernando Couto
Moçambique

De uma Noite


O meu olhar ainda confessa
A ternura que deixas em mim
Quando me ofereces as tuas mãos
E fazes meu, o teu destino
Conduzes-me as paisagens
Que meus passos tanto anseiam
Devolves aos meus abraços
O aconchego dos teus braços
Acolhendo minhas longas esperas
No tempo em que ausente de ti
Apenas fui silêncio e solidão

É que quando vens assim
Deitas o perfume da tua entrega
No horizonte da minha saudade
Teu olhar despe-me em carícias
E meu corpo te sorri consentido
Sussurrando-te afagos e doçuras
É na nudez dos teus olhares
Que se revela a intimidade
De todos os meus desejos

O olhar perdido na distância
Ainda procura a tua voz
Entregue a carícia das tuas palavras
No veludo do silêncio da madrugada
Ouço a melodia da tua falta
E recosto o rosto à solidão do lembrar-te
Há suavidade em cada momento
Na delicadeza da construção do afeto
Na decisão inabalável de ser feliz
Agora que te foste
Deixaste em meus lábios
A saudade que ainda eterna
Uma vez mais te beija...

Fernanda Guimarães
Brasil

Viajam as palavras

Authour d'Un Herbier Art Print

Passageiros, formo como que um diagrama
entre o céu tremido e o jornal que a trepidação
do trem sacode
em minhas mãos.

A paisagem me vem oferecer seus buquês
roxos e cor de ouro
mas foge, arrependida.

Vistos, de longe, de passagem,
todos os rostos são amigos, são iguais.

Só que depois, em minha memória,
que estará rolando ainda esta paisagem
impressa em mim, à minha saudade
como um quadro à parede.

O possível desastre
faz cantar, como uma carretilha ao meu ouvido,
o pássaro do adeus.

O trem de ferro desloca o sentido das coisas.

Viajam as palavras.

Cassiano Ricardo (Brasil)

A Rua dos Cataventos


Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


Mário Quintana (poeta brasileiro)

22.3.10

O dia


A manhã

A nuvem branca
encobre
o fetiche azulado
teu.
Reprimem carícias
ténues
os dedos loiros do astro
rei.


A tarde

Soturno gesto
insípido partilha heróis
a branco e negro
em a galeria.
Ao fundo
a mais bela tela
suporta
a penumbra húmida.


A noite


desdobro-me em múltiplas sombras
umbrais de portas
aluaradas.
Pretendo
prolongo mais um pouco
o lusco-fusco,mas é a noite da bola
branca.


Paulo Duarte Filipe

21.3.10

A Sombra das Galera



Ah! Angola, Angola, os teus filhos escravos
nas galeras correram as rotas do Mundo.
Sangrentos os pés, por pedregosos trilhos
vinham do sertão, lá do sertão, lá bem do fundo
vergados ao peso das cargas enormes...
Chegavam às praias de areias argênteas
que se dão ao Sol ao abraço do mar...
... Que longa noite se perde na distância!

As cargas enormes
os corpos disformes.
Na praia, a febre, a sede, a morte, a ânsia
de ali descansar
Ah! As galeras! As galeras!
Espreitam o teu sono tão pesado
prostrado do torpor em que mal te arqueias.
Depois, apenas pestanejam as estrelas,
o suplício de arrastar dessas correias.

Escravo! Escravo!

O mar irado, a morte, a fome,
A vida... a terra... o lar... tudo distante.
De tão distante, tudo tão presente, presente
como na floresta à noite, ao longe, o brilho
duma fogueira acesa, ardendo no teu corpo
que de tão sentido, já não sente.

A América é bem teu filho
arrancado à força do teu ventre.

Depois outros destinos dos homens, outros rumos...
Angola vais na sede da conquista.
Hoje no entrechoque das civilizações antigas
essa figura primitiva se levanta
simples e altiva.
O seu cãntico vem de longe e canta
ausências tristes de gerações passadas e cativas.
E onde vão seus rumos? Onde vão seus passos?

Ah! Vem, vem numa força hercúlea
gritar para os espaços
como os dardos do Sol ao Sol da vida
no vigor que em ti próprio reverberas:

- Não sou cativo!
A minha alma é livre, é livre
enfim!
Liberto, liberto, vivo...

Mais... porque esperas?
Ah! Mata, mata no teu sangue
o presságio da sombra das galeras!

Alexandre Dáskalos
Angola

Pastoreio



É em íngremes serranias – e talvez ao luar –
que acompanho o gado (o vulto
das palavras) de que às vezes sou dono
e sou pastor.

Bem junto a ele, e vislumbrando ao longe
ruínas e caminhos, hortejos e silvedos
(e mesmo um corpo em chamas de guitarra),
reencontro o fio das frases e os poemas
– seus currais.

João Rui de Sousa