31.12.08

A Viagem


Quem é alguém que caminha
toda manhã com tristeza
dentro de minhas roupas, perdido
além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
como se levassem nos bolsos
doces geografias, pensamentos
de além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
vem morrer no longe horizonte
de meu quarto, onde esse alguém
é vento, barco, continente.

Alguém me diz a noite toda
coisas em voz que não ouço.
Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.

João Cabral de Melo Neto
(poeta brasileiro)
Poema à boca fechada



Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago

As Sete Penas do Amor Errante



Eu não sei se os teus olhos se gaivotas
mas era o mar e a Índia já perdida
as ilhas e o azul o longe e as rotas
minha vida em pedaços repartida.

Eu não sei se o teu rosto se um navio
mas era o Tejo a mágoa a brisa o cais
meu amor a partir-se à beira-rio
em uma nau chamada nunca mais.

Eu não sei se os teus dedos se as amarras
mas era algo que partia e que
ficava. Ou talvez cordas de guitarras
ó meu amor de embarque desembarque.

Eu não sei se era amor ou se loucura
mas era ainda o verbo descobrir
ó meu amor de risco e de aventura
não sei se Ceuta ou Alcácer Quibir.

Eu não sei se era perto se distante
mas era ainda o mar desconhecido
ou Camões a penar por Violante
as sete penas do amor proibido.

Eu não sei se ventura se castigo
mas era ainda o sangue e a memória
talvez o último cantar de amigo
amor de perdição amor de glória.

Eu não sei se teu corpo se meu chão
mas era ainda a terra e o mar. E em cada
teu gesto a grande peregrinação
das sete penas do amor lusíada.

Manuel Alegre

30.12.08

Surfista


De pé na frágil tábua
onda a onda ele escrevia
poesia sobre a água.
Era uma escrita tão una
de tão perfeita harmonia
que o que ficava na espuma
não se podia apagar:
era a própria grafia
do poema do mar.

Manuel Alegre

...Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.

Fecha os olhos agora e sossega: o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo.

Dorme, meu amor...

Maria do Rosário Pedreira


29.12.08

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Fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
Eu sei exatamente o que é o amor.
O amor é saber que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
O amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte de nós que não é nossa.
O amor é sermos fracos.
O amor é ter medo e querer morrer.

José Luis Peixoto

Canção da Saudade




Se eu fosse cego amava toda a gente.

Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea que nasceu sem vida, e amo-a a fantasia-la viva na minha idade.

Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se já nasceste.

Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.

Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.

Eu amo os cemitérios - as lágens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente.


Almada Negreiros,
in Frisos - Revista Orpheu nº1

Esses momentos já não chegam




Esses momentos já não chegam,
já não completam,
anseio o teu corpo, e ser para os teus lábios,
anseio a tua voz, o teu cheiro,
como se no vazio ficasse uma dor,
já não sei!
tento fugir a esse sentimento,
porque lembro-me que há um tempo atrás,
senti o mesmo e sofri,
diz-em tu porque me fazes sentir assim!
diz-me tu!

Sónia Sultuane


Pós da história




Caiu serenamente o bravo Quêto
Os lábios a sorrir, direito o busto
Manhude que o seguiu mostrou ser preto
Morrendo como Quêto a rir sem custo.

Fez-se silêncio lúgubre, completo,
no craal do vátua célebre e vetusto.
E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto,
Fitava os dois, o olhar heróico, augusto.

Então Impincazamo, a mãe do vátua,
Triunfando da altivez humana e fátua,
Aos pés do vencedor caiu chorando.

Oh dor de mãe sublime que se humilha!
Que o crime se não esquece à luz que brilha
Ó mães, nas vossas lágrimas gritando?


Rui de Noronha
Moçambique

28.12.08


O teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém - longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas; e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.
Se me abraçares, não partas.

Maria do Rosário Pedreira


As estrelas hoje saíram



As estrelas hoje saíram
fora do seu leito azul
e vieram brilhar nas margens
dos meus olhos terrosos.

Com fúria de granizo
uma fumaça de luar
me embacia os olhos
num nevoeiro de borrasca ventosa…

Eu suporto frios intensos
e o branco polar
também pode ser pomba

Fechei minhas pálpebras
e as cisternas dos meus olhos
armazenaram mais águas.
e eles permaneceram límpidos,
sem uma lágrima,
com as raízes mergulhadas
no húmus milenário que me
alimenta.

Que me perdoem as flores,
mas eu hoje amei-as assim mesmo:
perdidas na cor e no balido dos
charcos, dançando ao vento
lágrimas vivas
confundidas com pinhais.


José Pastor
Moçambique



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Oh, meu amor,
Doem-me os braços de te abraçar,
Trago as mãos acesas,
A boca desfeita
E a solidão acorda em mim um grito de silêncio quando
O medo de perder-te é um cordel que pisa os meus cabelos
E se perde depois numa estrada deserta por onde
Caminhas...

Joaquim Pessoa





Canção



A pastorinha morreu, todos estão a chorar. Ninguém a conhecia e todos estão a chorar.

A pastorinha morreu, morreu de seus amores. Á beira do rio nasceu uma árvore e os braços da árvore abriram-se em cruz.

As suas mãos compridas já não acenam de além. Morreu a pastorinha e levou as mãos compridas.

Os seus olhos a rirem já não troçam de ninguém.
Morreu a pastorinha e os seus olhos a rirem.

Morreu a pastorinha, está sem guia o rebanho.
E o rebanho sem guia é o enterro da pastorinha.

Onde estão os seus amores? Há prendas para Lhe dar.
Ninguém sabe se é Ele e há prendas para Lhe dar.

Na outra margem do rio deu á praia uma santa que vinha das bandas do mar.
Vestida de pastora p'ra se não fazer notar. De dia era uma santa, à noite era o luar.

A pastorinha em vida era uma linda pastorinha;
a pastorinha mórta é a Senhora dos Milagres.


Almada Negreiros,
in 'Frisos - Revista Orpheu nº1
O fim da noite


A nossa história é simples: somos
neste momento todo o amor na terra
e nada mais importa, senão
o que sou, verdade em ti,
o que és, verdade em mim.
Por isso este poema talvez não seja
mais que um silêncio pela noite,
nem verso, nem prosa, só
uma oração ao deus desconhecido.

Não é talvez senão o teu olhar,
e tua esquiva mágoa,
o teu riso e tuas lágrimas.
E o apelo dentro de mim
ao milagre de nos querermos,
com a mágoa e com o riso,
- e teu olhar que vê em mim.

Não sei pedir, sei só esperar.
Mas já houve o milagre. Estava
agora comigo ao longo das ruas, que antes
eram só casas de pálpebras cerradas.
Estava no silêncio, que antes
era mortal.

E tu, sem eu saber, estavas comigo.
E sem eu saber de súbito na treva
buliram asas
e sem eu saber era já dia.

Adolfo Casais Monteiro

O jogador do pião




Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos - tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Rasga o espaço num gesto ríspido de vida
Reergue o braço a prumo, arrisca - nessa roda
possível da maçã ao muro - a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? - Nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada:
que a vida arrebatada aos demais olhos seja
ao comprido coberta pelo chão da igreja

E Abril traz o Senhor até esse esquece
o operário inútil imolado à messe


Ruy Belo

27.12.08

Enleio



Não sei se volteio
Se rodopio
Se quebro
Se tombo nesta queda
em que passeio
Não sei se a vertigem
em que me afundo
é este precipício em que me enleio
Não sei se cair assim me quebra...
Me esmago ou sobrevivo
em busca deste anseio

Maria Teresa Horta

A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade



A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada.

Fernando Echevarría (poeta timorense)


Portugal

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O teu destino é nunca haver chegada
O teu destino é outra índia e outro mar
E a nova nau lusíada apontada
A um país que só há no verbo achar

Manuel Alegre

Agora Mesmo



Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado
Está gente a morrer e nós também

Está gente a despedir-se sem saber que para
Sempre
Este som já passou Este gesto também
Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante
Tu próprio te despedes de ti próprio
Não és o mesmo que escreveu o verso atrás
Já estás diferente neste verso e vais com ele

Os amantes agarram-se desesperadamente
Eis como se beijam e mordem e por vezes choram
Mais do que ninguém eles sabem que estão a
[despedir-se

A Terra gira e nós também A Terra morre e nós
Também
Não é possível parar o turbilhão
Há um ciclone invisível em cada instante
Os pássaros voam sobre a própria despedida
As folhas vão-se e nós
Também
Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte
Agora mesmo e para todo o sempre
Amen

Manuel Alegre

26.12.08

Marginal


Saborear-te a boca devagar,
como a um fruto raro e sumarento,
e cada rijo seio te apertar,
num misto de prazer e sofrimento.

Depois, beijar-te o ventre e deslizar
por ele, num tão macio movimento
que de ave mais parecesse um adejar
do que um afago húmido e lento.

E só, então, te possuir. amor,
teu corpo penetrando ferozmente,
nos braços te apertando com ardor,

até, no estrebuchar do frenesi,
imaginares que, em fogo, uma torrente
de lava, em ondas, desaguara em ti.

Nuno Bermudes
Moçambique

A torto e a direito

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Sussurram tempos e contrariedades,
caem dias a torto e a direito.
Fica quem tudo a eito leva,
e não quem de todo a nada chega.
Escondo-me atrás de mim
e vejo-me tinto no copo,
do olhar do mundo afastado.
Olho-me e ouço as cousas ficarem
no fluir de um sussurro, no osso
de um momento, teus lábios
fugidios na ponta da noite além
onde me aconchego e escondo,
torto em sábios dias aí tecidos,
aqui direito em nós de luz.

Adriano Alcântara
Moçambique
oh Angola dor mansa e bruta


oh Angola
dor mansa e bruta
de menina
descuidada e contente

desandando
em gargalhada teimosa
e
pé de dança atrevido
para
loucura de abismo

a compasso
de marimbas guitarras elétricas
e
minas

oh Angola
dor mansa e bruta
de menina
descuidada e contente

Arlindo Barbeitos (poeta angolano)
No tempo/em que as pacaças entravam



no tempo
em que as pacaças entravam
pelos povoados
o vôo alvoraçado das perdizes
carregava sonhos
que
a mãozinha inerme de criança
feliz
agarrava ao lusco-fusco dos muxitos
no tempo
em que as pacaças entravam
pelos povoados



Arlindo Barbeitos (poeta angolano)

Infância




Sobre o lado ímpar da memória
o anjo da guarda esqueceu
perguntas que não se respondem.
Seriam hélices
aviões locomotivas
timidamente precocidade
balões-cativos si-bemol?
Mas meus dez anos indiferentes
rodaram mais uma vez
nos mesmos intermináveis carrosséis.

João Cabral de Melo Neto
(poeta brasileiro)


O dia azul

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O dia azul antecipou-se
ao lento despertar dos bosques.
Tudo azul! diziam em coro
os de pálpebras abertas.
Porém os olhos em refolhos
só descobriam sobre a relva
a minudência dos miosótis.

O dia azul veio em atraso
na esperança de contemplado.
É tempo ainda azul sem nuvens!
anunciavam vozes de alerta.
Porém os olhos em refolhos
já se esqueciam junto à relva
na intimidade dos miosótis…

Henriqueta Lisboa




Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta que dissesse
Deste anseio
De te ver
Deste receio
De te perder
Deste mais que bem-querer que sinto
Deste mal indefinido que me persegue
Desta saudade a que vivo todo entregue...

António Jacinto


Canção


Giras... (de costas para o) ...sol

Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: - a luz do dia!-
Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!

Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!

Se fosses água - música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
- Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

António Botto

Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,

e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:

poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,
que (aproveitando) trago para ti.

Ana Luísa Amaral

24.12.08

Natal



Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
em letras grandes e pretas,
traz versos e historietas
e desenhos bonitinhos,
e traz retratos também
dos bodos, bodos e bodos,
em casa de gente bem.

Hoje é dia de Natal.
- Mas quando será de todos?

Sidónio Muralha


Natal

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Menino, peço-te a graça
de não fazer mais poema
de Natal.
Uns dois ou três, inda passa...
Industrializar o tema,
eis o mal.

Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)
Noite de Natal

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(A um pequenito, vendedor de jornais)

Bairro elegante, - e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
o pequenito adormeceu...

Morto de frio e de cansaço,
as mãos no seio, erguido o braço
sobre os jornais, que não vendeu...

A noite é fria. a geada cresta;
em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar...

Todas as portas já cerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
vede as estrelas a chorar!

Morto de frio e de cansaço,
as mãos no seio, erguido o braço
sobre os jornais, que não vendeu,

em plena rua, que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
o pequenito adormeceu...

Em torno dele -ó dor sagrada!
Ao ver um círculo sem geada
na sua morna exalação,

pensei se o frio descaroável
do pequenino miserável
teria mágoa e compaixão...

Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
com o presépio de Belém...

Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora abriu-lhe as portas
e aos orfãozinhos sem ninguém...

E todo o céu se lhe apresenta
numa grande Árvore que ostenta
coisas dum vívido esplendor,

onde Jesus, o Deus Menino,
ao som dum cântico divino,
colhe as estrelas do Senhor...

E o pequenito extasiado,
naquele sonho iluminado
de tantas coisas imortais,

- no céu azul, pobre criança!
Pensa talvez, cheio de esp'rança,
vender melhor os seus jornais...


António Feijó
Poema de Natal

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Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes (poeta brasileiro)


Canto de Natal


O nosso menino
Nasceu em Belém.
Nasceu tão-somente
Para querer bem.

Nasceu sobre as palhas
O nosso menino.
Mas a mãe sabia
Que ele era divino.

Vem para sofrer
A morte de cruz,
O nosso menino.
Seu nome é Jesus.

Por nós ele aceita
O humano destino:
Louvemos a glória
De Jesus menino.

in “Belo Belo” 1948

Natal

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Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

Fernando Pessoa

Natal

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Natal. Nasceu Jesus. O boi e a ovelha
deram-lhe o seu alento, o seu calor.
De palha, o berço, mas também de Amor.
Desce luz, desce paz de cada telha.

Nem um carvão aceso nem centelha
de lume vivo. A dor era só dor,
até que a mão trigueira dum pastor
floriu em pão, em leite, em mel de abelha.

Natal. Nasceu Jesus. Dias de festa.
Até o cardo é hoje rosa, giesta,
até a cinza arde, como brasa.

E nós? Que vamos nós dar a Jesus?
Vamos erguer tão alto a sua Cruz
que não lhe pese mais que flor ou asa.


Fernanda de Castro
Primeira Lição de Natal

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Este Natal,
Vou levar o meu neto pela mão
A ver o pinheirinho do quintal,
Nu, sem qualquer decoração.

Nem fio de oiro ou prata ou cobre.
Tem a humildade de ter
Nascido pobre,
Como o Menino que vai nascer.

E por isso é mais belo e vivo e humano
Do que esse outro que estará na sala,
Morto, porém, soberbamente ufano
Do seu trajo de gala.

Este Natal,
Vou levar o meu neto pela mão,
A aprender a moral
Da primeira lição.


Antóno Manuel Couto Viana


Noite de Natal



Como esse mar onde mal chega o rio,
Como esse poço onde mal sopra o vento,
Aqui me tens, negando o lume e o frio,
E cego e surdo ao próprio pensamento.

Como esse mar onde mal chega o rio,
Como esse poço onde mal sopra o vento.

Não haveria quem sonhe à minha beira
E, ao menos, longe em longe me sorria?

Às vezes cuido que na terra inteira,
Já ninguém sente regressar o dia.

Não haverá quem sonhe à minha beira
E, ao menos, longe em longe me sorria?

Areia. Pó. Um charco e uma parede,
Tudo confundo: a sombra, o medo, a luz.

Nem lágrimas. Porquê? Morro de sede.
É esta a noite,
– E vai nascer Jesus.

Pedro Homem de Mello

23.12.08

Litania do Natal



A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus…»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus…»
Que então me recordei do santo dia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus…»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus…»

E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

José Régio


Natal

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Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.

Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.

Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário…
E Deus não representou.

Miguel Torga




22.12.08

Natal


Que nos trazes a não ser
lágrimas cada vez mais,
natal eterno a nascer
de outros natais…
Ligeira esperança que toca
os nossos olhos molhados
e o sangue da nossa boca,
amordaçados…

Ah bruxuleante luz
acenando ao longe em vão
e que a dor nos reproduz
em ilusão…
Ternura dum breve instante
que o próprio instante desterra,
morta no facto constante
de tanta guerra…


António Salvado
Natal


Outro Natal.
Outra comprida noite
De consoada,
Fria,
Vazia,
Bonita só de ser imaginada.

Que fique dela, ao menos,
Mais um poema breve,
Recitado
Pela neve
A cair, ao de leve,
No telhado.

Miguel Torga
Tu e Eu Meu Amor

Tender Passion Art Print by Talantbek Chekirov

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Manuel da Fonseca




Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho,
o cordão astral à criança aldebarã, não cortem
o sangue, o ouro. A raiz da floração
coalhada com o laço
no centro das madeiras
negras. A criança do retrato
revelada lenta às luzes de quando
se dorme. Como já pensa, como tem unhas de mármore.
Não talhem a placenta por onde o fôlego
do mundo lhe ascende à cabeça.
Linhas cristalográficas atravessando os cornos.

A veia que a liga à morte.
Não lhe arranquem o bloco de água abraçada aonde chega
braço a braço. Sufoca.
Mas não desatem o abraço louco.

A terra move-a quando se move.

Não limpem o sal na boca. Esse objecto asteróide,
não o removam.
A árvore de alabastro que as ribeiras
frisam, deixem-na rasgar-se:
- Das entranhas, entre duas crianças, a que era viva
e a criança do sopro, suba
tanta opulência. O trabalho confuso:
que seja brilhante a púrpura.
Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor agreste nas bolsas
pulmonares. Deixem que se espalhem as redes
da respiração desde o caos materno ao sonho da criança
exacerbada,
única.


Herberto Helder
Natal 64

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A Moussy

Ao deitar-me para a dormida,
Desejara maior repouso
Do que adormecer, e nao ouso
Desejar o jazer sem vida.

Vida é possibilidade
De sofrimento; quando menos,
Do sofrimento da saudade,
Com seus vãos apelos e acenos.

Mas a não haver outra vida,
Aos que morrem pode a saudade
Dar-lhes, senão a eternidade,
Um prolongamento de vida.

Então, por que neste momento
Me sinto tão amargo assim?
E a saudade me é um tal tormento
Se estás viva dentro de mim?

in “Estrela da tarde” 1960

21.12.08

Flor da Liberdade



Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós... Também nós... E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos, insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.

Miguel Torga

Subúrbios by night



Lá no beco da ti’Juliana
logo logo tem a cantina do Dias mulungo
e há uma árvore que sabe das coisas
ela viu tudo, tudo.

A luz do jeep cinzento
as fardas pretas e os bastões
viu as botas ouviu os gritos
ela viu tudo, tudo

lá no beco da ti’Juliana
onde o caniço está partido
eles bateram, bateram, bateram
no fim das luzes ficou um corpo caído
mais o caniço, tudo partido

nem o Dias nem ninguém
abriu uma janela, uma porta, um grito
a ti’Juliana dormia sem sono
a árvore viu tudo tudo.

Foi lá no beco escondido,
as fardas pretas arrombaram o caniço;
as botas pisaram, os bastões bateram
e a árvore viu tudo tudo

De manhã passos de criança
sob a árvore que sabe das coisas
misturaram areia ao sangue caído
lá, onde o caniço está partido

os pés correram as mãos brincaram
lá onde o caniço está partido
onde está a árvore que sabe das coisas
ela que viu tudo, tudo

Um dia crescerão e
eles sabem tudo, eles sabem tudo


José Alberto Sitoe
Moçambique

20.12.08

Voto de Natal





Acenda-se de novo o presépio no mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
Passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
Para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
Como a casca do ovo ao latejar-lhe a vida...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
Dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumo, dissipem-se os fantasmas!
O calor destas mãos nos meus dedos tão frios!
Acende-se de novo o presépio nas almas,
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.

David Mourão Ferreira

Dia de Natal




Hoje é dia de Natal
Mas o menino Jesus
Nem sequer tem uma cama,
Dorme na palha onde o pus.

Recebi cinco brinquedos
Mais um casaco comprido.
Pobre menino Jesus,
Faz anos e está despido.

Comi bacalhau e bolos,
Peru, pinhões e pudim.
Só ele não comeu nada
Do que me deram a mim.

Os reis de longe trazem
Tesouros,incenso e mirra.
Se me dessem tais presentes,
Eu cá fazia uma birra.

Às escondidas de todos
Vou pegar-lhe pela mão
E sentá-lo no meu colo
Para ver televisão.

Luísa Ducla Soares
Natal Africano



Não há pinheiros nem há neve,
Nada do que é convencional,
Nada daquilo que se escreve
Ou que se diz... Mas é Natal.

Que ar abafado! A chuva banha
A terra, morna e vertical.
Plantas da flora mais estranha,
Aves da fauna tropical.

Nem luz, nem cores, nem lembranças
Da hora única e imortal.
Somente o riso das crianças
Que em toda a parte é sempre igual.

Não há pastores nem ovelhas,
Nada do que é tradicional.
As orações, porém, são velhas
E a noite é Noite de Natal.

Cabral do Nascimento

Natal Sem Sinos

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No pátio a noite é sem silêncio
E que é a noite sem o silêncio?
A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos
Do meu Natal sem sinos?

………………..Ah meninos sinos
………………..De quando eu menino!

Sinos da Boa Vista e de Santo Antônio.
Sinos do Poço, do Monteiro e da Igrejinha de Boa Viagem.

………………..Outros sinos
………………..Sinos
………………..Quantos sinos!

No noturno pátio
Sem silêncio, ó sinos
De quando eu menino.
Bimbalhai meninos,
Pelos sinos
De quando eu menino,
Pelos sinos (sinos
Que não ouço), os sinos de
Santa Luzia.

in “Opus 10″ Rio, 1952