31.1.09

Média Luz II



Aquilo que não queria
se transformasse em ti
tirando o que vi
mudando o dia a dia.

Alguma fantasia
eu sempre prometi
e em tal eu me rendi
qu'em ti não caberia.

Eu posso bem chamar
ser hora de criar
bem mais do que vivida.


Encontrei bem maior
que não há mais penhor
ao te dar minha vida!


Frassino Machado
Serenata

Repara na canção tardia
que tìmidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.

O orvalho treme sôbre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sôbre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.

E o tempo suspira na altura
por eternidades serenas.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)



30.1.09

Já Velho e Doente



«Seja a terra da Terceira
A minha coberta de alma»,
Disse eu na idade fagueira,
Em que tudo é força e calma.

Mas hoje, já velho e doente,
Em que as almas não se cobrem,
Hoje sim, peço seriamente
Que os sinos por mim lá dobrem.

Até já me aconselharam
Um quarto lá no Hospital,
Tanto caipora me acharam,
Escaveirado, mal, mal...

Ali visitas teria
Por obra de misericórdia,
Embora comida fria,
Alguma vez, que mixórdia!

Mas sempre era doce ao peito
Ir acabar os meus dias
Na Praia, de qualquer jeito,
Perto da casa das tias.

Tive o exemplo resignado
Que me deu a prima Alzira
Num lençolinho lavado
Com rendas limpas na vira.

Ali matámos saudades,
Ela alegre e penteadinha,
Mal pensando eu que as idades
Não perdoam. Hoje é a minha.

Também cheguei a pensar
No Asilo, talvez com um biombo.
Sou biqueiro. Mas jantar?
Todos ali, lombo a lombo.

Como outrora o Tintaleis,
Três-Quinze, Manuel de Deus
Eram duas vezes seis,
Lava-Pés, e Pão-por-Deus.

Mas já sei que nem no hotel!
(A família não consente).
Tenho que amargar o fel
Mortal como toda a gente

Morrer num navio, à proa,
Numa aldeia ou num porão,
Provavelmente em Lisboa
Prò Alto de S. João.

Se acaso em Ponta Delgada
Me fosse dado ter fim:
Queria a última morada
Com Antero, em S. Joaquim.

O melhor é não pensar.
É seja onde Deus quiser.
Bem me podem sepultar
Ao pé de minha mulher.

Vitorino Nemésio
O búzio



Fecha só os olhos meu amor. E devagar
escuta os mesmos sons. A água
escorre para a sede quente:
areia de pés nus.

Encosta só o ouvido. Respira
esta harmonia deste corpo. Os mesmos sons
projectos do tamanho deste mar.

Suave esta espiral. Flauta de ruídos
para ouvir.
E não se parte o corpo. Só pelos sons
os mesmos sons. Tocata para um dia.

Escuta. Compara. Não vês a diferença
entre o cantar e o ser
de uma alegria?


Manuel Rui (poeta angolano)

29.1.09

O cercado



De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado


Ana Paula Ribeiro Tavares (poetisa angolana)

Sol de acácias



Nós bebemos chá às dezassete
enquanto o sol se inclina
E o sonho vai crescendo crescendo
Leio no Time as últimas do Pentágono
As avionetas abatidas pelos cubanos
Contento-me de saber teu sonho ser grande
E longe de murchar
Penso na dança do mar
Vejo gatos em telhados de zinco
Multidões deliram no Central Park
Ao som de Paul Simon
Ray Phiri faz suas acrobacias recordando Soweto
Vejo-te entrar por essa porta de monges
Que antes julgaste maldita
E sorris quando te vês ao espelho
Tuas lingeries secando ao sol da manhã
Os sonhos são como as mães?
E pés de crianças pisam minas em Angola Afeganistão ou Moçambique
Pedi-te água e deste-me e deste-me também amor
Abraçaste as acácias vermelhas de Huambo
Recordaste Maputo
Quando cá cantaste em paz
E foges agora de tuas emoções tuas sensações de criança mulher
Percorres as estradas do mundo solitária
Fugindo dos amores que inventaste e queimaste
E dizes acreditar em algo de grande em nós
Para além de toda a imaginação
E persistes solitária procuras
A paz agradou-te quando estiveste nas muralhas da China
E choraste na praça de Tianamen
Como em 68 na Paris dos estudantes
Tu vais solitária e precisas urgente que sejamos nós
Que amemos pelo menos que amemos pelo menos
Para começar do zero para começar
Procurando em nós algo de superior
Como tu quando mergulhas sem preconceitos
E corajosa na imaginação
Tu detestas e gostas amas exiges de nós
A comparticipação que o amor merece
Sabes quanto de ti somos nós
Por isso persistes na tua jornada águia
Desnudas os boulevardes quando brincas na torre Eiffel
Dançaste Bessie Smith e disseste
Que eram vozes de negros escravos que regressavam
E sabes também fingir e fingiste pássaros de papel
De amor de amor verdadeiro
Nós adormecemos nas cidades de concreto
Enquanto Berberes sonham com areias do deserto
Teus avós mortos sabes não mais o comércio triangular
A morte de elefantes e as missangas que te encheram os olhos
E roubaram-te gentes fugiste da Somália
Quando viste homens em couraças militares
Beijaste crianças e tuas mãos enterraram cadáveres no Ruanda
Deitaste-te nas praias do pacífico
Cobriste-te com estrelas
E Muroroa foi teu pesadelo
Embarcaste nos barcos da Green peace
Chamaste terríveis ao homens chamaste e amaste
Mergulhaste em ti e procuraste o além em ti
E ofertaste e amaste mais uma vez e ofertaste e amaste
E nós adormecemos em cidades de concreto
Que sabes iremos um dia destruir raivosos
Que tu sabes iremos queimar com napalm
E que iremos matar outros homens
E que iremos destruir outros animais
E tu mais uma vez irás amar
Irás oferecer os caminhos que percorreste
Enquanto isso esperas e outra vez amas
E vês o sol e vês a lua
Quão bela é a noite com estrelas
E vês o mar o mar com corais multicolores
E viajas e dás-te a terra do espaço e viajas
E dás-te a terra do espaço
E vê-la inteira de azul
O buraco no ozono queima-te
Esfria-te os sentimentos
E suplicas aos homens aos homofabers
Dás-te inteira por cada pomba liberta nos espaços sem armas
Choraste de contente
Quando viste Mandela fora das masmorras
Plantaste árvores plantaste
E imaginaste os humanos
com novos sentimentos
E quando acordas dizes sempre fria
“As mulheres são proletárias dos proletários”
São máquinas de transporte são
Menos nos caminhos que percorreste
Porque sabes serem inéditos os caminhos que percorreste
Tua mãe chora o Vietname que teu pai faz em casa
A napalm que entorna
Com a bebedeira das esquinas
Terna terna terna
Pousas o copo de whisky
Que depois entornas
Nos retratos dos ditadores
E quando sais à varanda
Descobres a Marilyn Monroe
Num strip tease nas estrelas
Essas suas provocações
Nesses dentes brancos
Me incitam à derrota


Chagas Levene
Moçambique

Streap-tease


Jamais eu ficaria quieto
sob o teu olhar;

que muito menos quietos,
no direito de ir e vir,
sobre o teu corpo,
seriam os meus olhos lívidos.

Porque sobre mim,
bastam os sons
dos teus vestidos:
já me desvestem a alma.


Soares Feitosa
Brasil

28.1.09

Essa pavana



Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através dos desenganos,
dos reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

27.1.09

Li, em tanta sofreguidão, os versos todos


Li, em tanta sofreguidão, os versos todos
A verve tântrica de apalavradas ilhas
E a praça se pressente, e a Brava ao largo,
E a quilha dos barcos em redondilhas.

A raiva toda, senti-a no corpo e na alma,
De pés descalços pelo dorso do vulcão,
Mãos percorrendo corpos de pedra negra,
Calcinados campos onde as uvas solfejam.

Li-os, página a página, a medra da cal
De tão brancas e térreas casas, arrieiros
E sobrados deságuam na matricial igreja.

O rufar dos tambores, o relinchar dos cavalos,
Em festas de pilão e bandeiras, e a procissão
Imensa (quase eterna) e eu nesse Presídio...


Pedro Cardoso
Cabo Verde
A Caminho do Corvo

Ponta do Marco, Ilha do Corvo © Gerbrand Michielsen
À Maria Gabriela e ao Rodrigo,
primos filiais

A minha vida está velha
Mas eu sou novo até aos dentes.
Bendito seja o deus do encontro,
O mar que nos criou
Na sêde da verdade,
A moça que o Canal tocou com seus fantasmas
E se deu de repente a mim como uma mãe,
Pois fica-se sabendo
Que da espuma do mar sai gente e amor também.
Bendita a Milha, o espaço ardente,
E a mão cerrada
Contra a vida esmagada.
Abençoemos o impossível
E que o silêncio bem ouvido
Seja por mim no amor de alguém.






Abandono

(Fado Peniche)



Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar.
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.

Levaram-te, a meio da noite:
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite,
E nunca mais se fez dia.

Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar.
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar.
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar

David Mourão-Ferreira





26.1.09


Maria Campaniça



Debaixo do lenço azul com sua barra amarela
os lindos olhos que tem!
Mas o rosto macerado
de andar na ceifa e na monda
desde manhã ao sol-posto,
mas o jeito
das mãos torcendo o xaile nos dedos
é de mágoa e abandono...
Ai Maria Campaniça,
levanta os olhos do chão
que eu quero ver nascer o sol!

Manuel da Fonseca

Canção do dia de sempre



Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...


Mario Quintana
Brasil

Canção Da Névoa



Tristezas leva-as o vento;
Vão no vento; andam no ar...
Anda a espuma à tona de água
E à flor da noite o luar...

Vindes dum peito que sofre?
De uma folha a estiolar?
Donde vindes, donde vindes,
Tristezas que andais no ar?

Eflúvios, emanações,
Saídas da terra e do mar,
Sois nevoeiros de lágrimas
Que o vento espalha, no ar...

Suspiros brandos e leves
De avezinhas a expirar;
Ermas sombras de canções
Que ficaram por cantar!

Brancas tristezas subindo
Das fontes, que vão secar!
E das sombras que, à noitinha,
Ouve a gente murmurar.

Saudades, melancolias,
Que o Poeta vai aspirar...
Melancolias e mágoas,
Que são almas a voar.

E o Poeta solitário
Fica a cismar, a cismar...
Todo embebido em tristezas,
Levadas na onda do ar...

E o Poeta se transfigura,
É a voz do mundo a falar!
E aquela voz também vai
No vento que anda no ar...


Teixeira de Pascoaes

25.1.09

Voltar a tocar-te,




Voltar a tocar-te,
será sentir-me viva, completa,
tornar a encontrar-me e a perder-me,
neste desejo que dói,
voltar a tocar-te será tocar-me profundamente,
perder-me e novamente encontrar-me.


Sónia Sultuane
Moçambique

Invenção de Eros



Fui procurar-te para ser contigo
quando colhi das horas que invadias.
Colhi da própria dor um nome amigo
que fosse o nome exacto em que virias.

Da límpida substância dos teus risos
fui-te inventando dentro dos meus braços
e os sóis mais densos puros e precisos
vieram dar-me a sombra dos teus passos.

E já não eram meus senão de erguê-los,
a tua face e os lábios e os cabelos
e o teu olhar para ninguém voltado.

Mas quem, o pleno amor de que nascias
se o deus que a ti igual encontrarias
ficou, pelo teu olhar, desabitado?


Victor Matos e Sá
Moçambnique

24.1.09

Não conheço nada do país do meu amado



Não conheço nada do país do meu amado
Não sei se chove, nem sinto o cheiro das
laranjas.
Abri-lhe as portas do meu país sem perguntar nada
Não sei que tempo era
O meu coração é grande e tinha pressa
Não lhe falei do país, das colheitas, nem da seca
Deixei que ele bebesse do meu país o vinho o mel a carícia
Povoei-lhe os sonhos de asas, plantas e desejo
O meu amado não me disse nada do seu país
Deve ser um estranho paíso país do meu amado
pois não conheço ninguém que não saiba
a hora da colheita
o canto dos pássaros
o sabor da sua terra de manhã cedo
Nada me disse o meu amado
Chegou
Mora no meu país não sei por quanto tempo
É estranho que se sinta bem
e parta.
Volta com um cheiro de país diferente
Volta com os passos de quem não conhece a pressa.

Ana Paula Ribeiro Tavares (poetisa angolana)

Desejo


Os meus dedos abertos
são dez velas desfraldadas
ao sopro sertanejo
do teu pensamento
em mares do meu desejo.

O meu corpo feito de água
é um barco sem quilha
e sem arrais
em noites sem estrelas
nem madrugadas
singrando no teu sexo
em loucos orgasmos
de mágoa
e maravilha.

Pára o vento
Não há velas.
E num doce movimento
muito lento
desconexo,
ao sabor dos vendavais
parados,
vejo subir o mar
nas minhas coxas
vestidas de algas roxas
na nudez do teu olhar
vencido no mesmo pejo
feito de noite, de pasmos
e de luar.

Os meus braços são em cadeia
as minhas pernas tentáculos
no mar que me rodeia
escuro e ausente
viscoso
molhado de cio.
A água penetra tabernáculos
ocultos
do meu corpo abandonado
pegajoso
e frio.
E há logros e insultos
e preces a Deus-nenhum
no meu singrar de sereia
que em si mesma se consente
e destrói constantemente
para renascer igual
sempre diferente
num doce movimento
muito lento
e sensual
dos meus dedos abertos
desfraldados
ao sopro violento
dos teus pensamentos
desertos
em mares inviolados
sem gente
e nenhuma ilha,
no meu corpo de água
em doces orgasmos
de mágoa
e maravilha.

E vem o vento.
E eu não sou nada.
Partem-se os mastros,
rasgam-se as velas,
e numa longa noite sem astros
sem estrelas
eu sou joguete de mim
nos teus dedos absurdos
em grutas do meu prazer,
na sede da tua boca
desvendando-me assim
poro a poro da minha pele,
passo a passo na minha carne
vestida de suor, de fel
e de cansaço,
de gemidos surdos
e agonia louca,
na imensa libertação
do próprio espaço
contida nesse grito
de prazer infinito
do teu mar a penetrar-me
e eu a afogar-me
nele!

Os meus dedos dobram-se em dois,
a minha quilha desaparece,
nao tenho arrais, não tenho vento,
não tenho estrelas nem luar
não tenho sequer o mar
não tenho nada
nada ficou.

Depois,
só o silêncio e esse frio,
a deusa-nada que eu sou.

O meu corpo submerso
fremente e já vazio
a ir ao fundo no teu
muito doce, muito lento,
na viagem começada.

E as linhas de cada verso
num poema que acontece
a sabor do vento
em carne desfraldada,
na nossa ilha encontrada
nesse mar que em mim é,
me foi e já me esquece
no vai e vem da maré...


Maria do Carmo Abecassis
Moçambique

Se eu pudesse não ter o ser que tenho


Se eu pudesse não ter o ser que tenho
Seria feliz aqui...
Que grande sonho
Ser quem não sabe quem é e sorri!

Mas eu sou estranho
Se em sonho me vi
Tal qual no tamanho
O que nunca vi...


Fernando Pessoa

23.1.09

Nesta curva tão terna e lancinante


Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O’Neill

22.1.09

Deixa-me amar-te


Deixa-me amar-te em meus silêncios
Na calmaria do teu coração que me acolhe
E de onde se desprendem meus sonhos
Em voos etéreos de plena liberdade
Deixa-me amar-te em minha solidão
Ainda que meus labirintos te confundam
E que teus fios generosos de compreensão
Emaranhem-se no tapete dos meus enigmas
Deixa-me amar-te sem qualquer explicação
Na ternura das tuas mãos que me sorriem
Escrevendo desejos em versos despidos
Na minha alva tez que te cobre e descobre
Deixa-me amar-te em meus segredos
Para que desvendes o que também desconheço
A alma dos meus abismos onde anoiteço
E meus olhos adormecem embalados pelo mistério
Deixa-me amar-te em tuas demoras, longas horas
Em que meu corpo se veste de céu à tua espera
E minhas mãos em frenesim acendem estrelas
Para alumiar-te, ainda que ausente estejas…


Fernanda Guimarães

Paraíso

Deixa ficar comigo a madrugada
Para que a luz do sol me não constranja
Numa taça de sombra estilhaçada
Deita sumo de lua e de laranja

Arranja uma pianola, um disco, um posto
Onde eu ouça o estretor de uma gaivota
Crepite em derredor o mar de agosto
E outro cheiro, o teu, à minha volta

Depois podes partir, só te aconcelho
Que acendas tudo, para ser perfeito
Á cabeceira a luz do teu joelho
E entre os lençois o lume do teu peito

Podes partir, já nada mais preciso
Na minha ilusão do paraiso

David Mourão Ferreira







Os anos são degraus

Degraus Lisboetas

Os anos são degraus; a vida, a escada.
Longa ou curta, só Deus pode medi-la.
E a Porta, a grande Porta desejada,
só Deus pode fechá-la,
pode abri-la.

São vários os degraus: alguns sombrios,
outros ao sol, na plena luz dos astros,
com asas de anjos, harpas celestiais;
alguns, quilhas e mastros
nas mãos dos vendavais.

Mas tudo são degraus; tudo é fugir
à humana condição.
Degrau após degrau,
tudo é lenta ascensão.

Senhor, como é possível a descrença,
imaginar, sequer, que ao fim da estrada
se encontre após esta ansiedade imensa
uma porta fechada
— e nada mais?


Fernanda de Castro


Ao longe, a Vida





Agora eu sou a margem indiferente deste rio,
deste rio da Vida, que passa sem me ver...
Agora eu sou um desejo do esperado Fim,
um sonho que ficou por despertar,
uma lágrima apenas que jamais tardou
às chamadas da minha alma doente.
Eu sou o tédio,
O que ambicionou tudo o que não veio...
Eu sou o tédio, eu sou a morte... eu sou o frio...


Alberto Lacerda
Moçambique

21.1.09

Tenho uma Saudade tão Braba

File:Estrada tipica dos Açores, caminhos de hortensias, Interior da ilha Terceira, Açores, Portugal.jpg

Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.

Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.

Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.

Quando se diz «Seja feita»
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.

Vitorino Nemésio


20.1.09


Nova canção da vida




O meu ideal, a minha felicidade,
é ter uma cubata, mesmo ali
dentro do mato, longe da cidade,
mas sempre, meu amor, ao pé de ti.

O culto da cidade em desprezo do mato!
Eu não conheço nenhum mal maior.
O meu ideal é este, e nele me retrato:
– o mato, uma cabana, o nosso amor...

Ter um jardim cercando o nosso lar
(é lar uma cubata se Deus quer
que nela, sempre, o homem e a mulher,
em sonho e obra, sejam par e par);

ter lavras de feijão e de batatas,
de milho, de ginguba e de mandioca,
para nós dois e para quanta boca
de fome houvesse ali pelas libatas;

gozar o bucolismo das paisagens
(aqui, uma palmeira; além, uma mulemba...);
e admirar a loucura infantil dos selvagens
no prazer da rebita e da massemba;

ter mesmo ao pé da casa uma mangueira,
que desse sombra e fruto ao cansado viajor;
de dia, trabalhar em lida meeira;
à noite, adormecer na benção do Senhor...

– Vamos viver assim a vida inteira,
vamos viver assim, ó meu amor!


Geraldo Bessa Victor (poeta angolano)

18.1.09

Pelo silêncio



Pelo silêncio que a envolveu, por essa
aparente distância inatingida,
pela disposição de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:

pela imobilidade que começa
a afastá-la talvez da humana vida
provocando-nos o hábito de vê-la
entre estrelas do espaço e da loucura;

pelos pequenos astros e satélites
formando nos cabelos um diadema
a iluminar o seu formoso manto,

vós que julgais extinta Mira-Celi
observai neste mapa o vivo poema
que é a vida oculta dessa eterna infanta.

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

16.1.09

Orações do amor



Dizem as conchas do mar:
«Não queiras que desça ao fundo
Quem nos deseja roubar.»

E as águas dizem ao mundo:
«Olha, não mandes sondar
O nosso abismo profundo.»

Como as conchas, como as águas,
Digo à minha estremecida:
«Não queiras roubar-me a vida,
Não sondes as minhas mágoas...»


António Fogaça

Salomé

Mlle. Madeleine Dolley Modeling Ball Gown Made of Salome Silk Designed by Paquin Photographic Print by Bert

Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua...
Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segrêdo...

Tudo é capricho ao seu redór, em sombras fátuas...
O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou...
Tenho frio... Alabastro!... A minh'Alma parou...
E o seu corpo resvala a projectar estátuas...

Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:

Mordoura-se a chorar--ha sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na bôca imperial que humanisou um Santo...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'

Dos mais fermosos olhos, mais fermoso


Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:

Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um esprito peregrino
Se acendeu em mim o fogo, de que indino
Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco üa aima só, pouco üa vida,
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente a alma dos olhos água lança
Pelo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.


António Ferreira
(sec. XVI)

Música


Noite perdida,
Não te lamento:
embarco a vida

no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,

puro e sem nada,
— rosa encarnada,
intacta, ao vento.

Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,

e ressuscitada...
(Asa da lua
quási parada,

mostra-me a sua
sombra escondida,
que continua
a minha vida

num chão profundo!
— raíz prendida
a um outro mundo.)

Rosa encarnada
do sonho isento,
muda alvorada

que o pensamento
deixa confiada
ao tempo lento...

Minha partida,
minha chegada,
é tudo vento...

Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada...

Cecília Meireles (poetisa brasileira)

15.1.09

Canção A Ausente



Para te amar ensaiei os meus lábios...
Deixei de pronunciar palavras duras.
Para te amar ensaiei os meus lábios!

Para tocar-te ensaiei os meus dedos...
Banhei-os na água límpida das fontes.
Para tocar-te ensaiei os meus dedos!

Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!
Pus-me a escutar as vozes do silêncio...
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!

E a vida foi passando, foi passando...
E, à força de esperar a tua vinda,
De cada braço fiz mudo cipreste.

A vida foi passando, foi passando...
E nunca mais vieste!

Pedro Homem de Mello

14.1.09

Encostei-me para trás na cadeira


Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o
compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.


Álvaro de Campos

13.1.09

Variações sobre «O Jogador do Pião»


I

Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos - tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Joga tudo no gesto ríspido de vida
Reergue o braço a prumo, arrisca nessa roda
riscada entre parede e tronco a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada
e que esta vida extensa para sempre seja
- será? - tão bem coberta que nem Deus a veja



II

Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
O pátio gira, a mão que pega no pião
disputará um dia o chão à folha solta

Joga tudo no gesto ríspido de vida
Levanta o braço a prumo, arrisca nessa roda
riscada nesse chão a tua infância toda
tudo é redondo e volta ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? Nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada
e que a vida que esqueço - a ser possível - seja
coberta de torrão, que Deus mesmo a não veja



III

Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Joga tudo no gesto ríspido de vida
Reergue o braço a prumo, arrisca - nessa roda
riscada entre parede e tronco - a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada
e que esta pobre vida para sempre seja
- Vê lá! - tão bem coberta que nem Deus a veja



IV

Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos, tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Rasga o espaço num gesto ríspido de vida
reergue o braço a prumo, arrisca - nessa roda
possível da maçã ao muro - a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? - Nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada:
que a vida arrependida, a ser possível, seja
invisível a Deus, torrão para uma igreja


V

Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos, tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Rasga o espaço num gesto ríspido de vida
Reergue o braço a prumo, arrisca - nessa roda
possível da maçã ao muro - a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? - Nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada:
que a vida arrebatada aos demais olhos seja
ao comprido coberta pelo chão da igreja



VI

Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos - tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Rasga o espaço num gesto ríspido de vida
Reergue o braço a prumo, arrisca - nessa roda
possível da maçã ao muro - a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? - Nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada:
coisa coberta pelo chão de alguma igreja
talvez nem mesmo Deus passando a veja



VII

Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos - tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Rasga o espaço num gesto ríspido de vida
Reergue o braço a prumo, arrisca - nessa roda
possível da maçã ao muro - a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? - Nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada:
Passa o proprietário e já não reconhece
talvez o operário inútil sob a messe


Ruy Belo

12.1.09


Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções...


Maria do Rosário Pedreira


Tenho uma janela que dá para o mar

Mar

Ondas do mar


A voz do mar entende-a quem do mar
viveu as tempestades e as bonanças,
quem nele pôs cuidados, esperanças,
quem lhe deu seu riso, o seu penar.

Quem fez o seu jardim, o seu pomar,
de búzios, de corais, de areias mansas,
quem ergueu sobre as ondas o seu lar
e por ele cruzou ferros e lanças.

Quem sabe de marés, de luas-cheias
e não teme os tritões nem as sereias
nem, de Neptuno, as barbas e o tridente.

A sua voz entende-a quem, de Sagres,
se fez ao mar em busca de milagres,
- todos nós, neste barco do Ocidente.


Fernanda de Castro

Elogio da uisna

e de Sophia de Melo Breiner Andresen




O engenho banguê (o rolo compressor,
mais o monjolo, a moela de galinha,
e muitas moelas e moendas de poetas)
vai unicamente numa direção: na ida.
Êle faz quando na ida, ou ao desfazer
em bagaço e caldo; ele faz o informe;
faz-desfaz na direção de moer a cana,
que aí deixa; e que de mel nos moldes
madura só, faz-se: no cristal que sabe,
o do mascavo, cego (de luz e corte).

2.

Sofia vai de ida e de volta (e a usina);
ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima,
e usando apenas (sem turbinas, vácuos)
algarves de sol e mar por serpentinas.
Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal,
em cristais (os dela, de luz marinha).


João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)

Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difuso duma ausência
que não magoa e sabe bem

Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto

O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente

Que longe tudo o que procuro!

Ser como os outros todos um instante que seja e tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro


Mário Dionísio

Média Luz I



Agora vejo
à média luz
o meu desejo
qu'em ti tranluz

E se em ti pus
maior traquejo
isso deduz
outro lampejo.

Não sei s'amor
com devoção
dá solução...

Por tal valor
eu descobri
meu sim por ti!


Frassino Machado


11.1.09

Visões do mundo



Rua do Loreto. Todas as visões do mundo são parciais.
Como uma invenção de Vermeer
as traseiras de um edifício antigo
podem ser os limites da minha moldura.

Nada há de exaustivo
no olhar humano. A chaminé de tijolo tinge o céu
de um vermelho débil
que ele nunca teve.

Um universo de vozes,
infectos cheiros de cozinhas adjacentes, ruídos
que quebram o alheamento que sobre as fechadas
se perpetua.

Em baixo, uma varanda onde nunca está ninguém.
Nada sei da ausência que a varanda desvenda.
Do lado esquerdo, o parapeito alto confere-me a certeza
de que os meus domínios foram encontrados.

Neste perímetro de luz
procuro a consistência dos sentidos.
O território com que se abastece uma paixão descritiva,
o lastro da imaginação.

Luís Quintais

Em redor das fogueiras


para o José Craveirinha

em redor das fogueiras
os planos se engendram nos ciscos
irónicos das faúlhas cada ponto luminoso
é uma hipótese indefinida
de um mistério a tentar-nos

firmados no apoio do terreiro
as cubatas fecundam o clamor da noite
reinventada
e o cacimbo é apenas uma antipática sensação
a remoer-nos os corpos transidos

mas a manhã é sempre o hálito da vitória das decisões e dos sobressaltos
o reflexo caudaloso
de uma eternidade rectificada


Heliodoro Baptista
Moçambique

Poema



Comprei o caminho por dois vinténs

(ai do homem chope
que compra caminho sem poder voltar)

No Rand as minas são escuras
densas de amargura

Os relâmpagos são chicotadas

Os desabamentos trovoadas

Têm um sugadouro de energia
um processo infalível de roubar a juventude

(ai do homem chope
que parte a caminho
sem direito a voltar)

Cada dia que corre alonga o regresso
cada mshao que chora é uma ferida que sangra sem estancar
e cada vez que pensa em escapar é uma semana na galeria sem sol

(ai do homem chope
que parte a caminho
e sabe que não vai voltar)

Fernando Ganhão
Moçambique

Felizes
Happy Girls II Art Print by Marta Arnau

Felizes. Porque, ao fundo de si mesmos,
cheios andam de quanto vão pensando.
E, disso cheios,
nada mais sabem. Dão para aquele lado
onde o mundo acabou, mas resta o eco
de o haverem pensado até ao cabo
e irem agora criar o movimento
que subsiste no tempo
de o mundo ainda estar a ser criado.
Por isso são felizes. Foram sendo
até, perdido o tempo, só em memória o estarem
[habitando.

Fernando Echevarría (poeta timorense)

9.1.09

Sangue meu



Sangue meu, meu sangue, ferve, ebule,
o meu corpo arrepiado, o meu ventre contorna-se,
o suor corre suavemente,
a minha boca seca,
as palavras, essas, perdem-se pelo espaço,
esse torna-se tão pequeno,
não consigo respirar,
o corpo está pregado,
não sei saber qual o passo a seguir,
não posso mais,
o pensamento pasmo e susto,
o desejo grande, profundo,
a vontade de chorar, a vontade de fugir,
de não repartir o mesmo espaço,
essa química de todos os sentidos,
fundidas em desespero completo,
perdi-me...


Sónia Sultuane
Moçambique

O dia dói límpido na hora


O dia dói límpido na hora
sem tempo o rosto
a lavagem das folhas na
manhã clara
sem janelas

O rosto ascende à vela
a luz quebrada nas têmporas
onde pôr os dedos
onde queimar a pele
o olhar de fulgor mais negro
naturalizado
nesta terra


Ana Horta

8.1.09

Os Filhos São Figuras Estremecidas

Father and Son Art Print by Nora Hernandez

Os filhos são figuras estremecidas
e, quando dormem, a felicidade
cerra-lhes as pálpebras, toca-lhes
os lábios, ama-os sobre as camas.
É por mim que chamam quando temem
o eclipse e o temporal. Trazem nos cabelos
o aroma do leite e da festa das rosas.
Voam-me por entre os dedos, por entre
as malhas da rede de espuma
que lanço a seus pés. Reinam
num sítio de penumbra onde não
me atrevo sequer a dizer quem sou.

José Jorge Letria


A flor tem linguagem de que a sua semente não fala.


A flor tem linguagem de que a sua semente não fala.
A raiz não parece dar aquele fruto.

Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem.
Retirada a linguagem
a semente é igual a flor
a flor igual a fruto
fruto igual a semente
destino igual a devir.
E era o que se pedia: igual.


José de Almada Negreiros

Lembro-me bem do seu olhar.



Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto. ..
Sim o resto parece-se apenas com a vida.
Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave.
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.


Álvaro de Campos

Tenho escrito muitos versos


Tenho escrito muitos versos,
muitas cousas a rimar,
dadas em ritmos diversos
ao mundo e ao se ouvidar.

Nada sou, ou fui de tudo.
Quanto escrevi ou pensei
é como o filho de um mudo-
"amanhã eu te direi".

E isto só por gesto e esgar,
feito de nadas em dedos
como uma luz ao passar
por onde havia arvoredos.


Fernando Pessoa