30.4.11

À flor da pele



Acende o cigarro, rapariga. E olha para a
rua onde passam transeuntes desconhecidos.
A tarde vai avançando e nós morrendo nela
ou morrendo nela as nossas esperanças,
a ilusão de eternidade. A beleza o que é?
Braços nus, o ventre liso nu, os cabelos caídos
nos ombros. A desconhecida concentra em si
a atenção do homem desocupado. Para
distrair-se, ele olha para ela e recorda-se
da história antiga do amor, reconstrói
ficções que sabe serem apenas ficções. Assim
passa o tempo, depois irá para casa. Quem
sabe o segredo mais secreto da existência
de cada um? Todos nós temos uma
história. Uns calam-na, outros murmuram
entre dentes os episódios essenciais, outros
encontram palavras com que construir o
poema hermético. Que diferença é que faz?
De tudo se constrói a existência, se alimenta
o sentido. Camisa branca à flor da pele, a
rapariga levantou-se e foi lá dentro do café
comprar qualquer coisa. Palavras, deixai-me
celebrar o vão movimento dos ponteiros do
relógio, os episódios vãos, a nossa morte.


João Camilo

29.4.11

Fragância e Luz


Na rara limpidez, a fragância
mais pura consagra o dia pleno
a floração das rosas.
Rompem a obscuridade, de coração
vibrante. Deslumbram:
os raios solares, a seiva ardente.
Cálices em avidez fruindo a luz.


Agripina Costa Marques

Nocturno


Nem estrelas nem lua

No vidro de uma janela
que dá sobre a noite escura
rola uma lágrima quente
de solidão que receia
que a noite dure
eternamente.

Alberto de Lacerda
Moçambique

Promessa



Jamais deixarei morrer cá dentro o viés
que transforma esta amargura em poesia.
O grito que me teima, mas que tu guardas
no instante dos sentidos, saberá sempre
em mim como um sopro de vida.
E, se não vou à noite como quem vai à maresia,
começarás tu a dissipar a neblina
no horizonte dos caminhos por andar.
É-nos pouco o tempo, mas naveguemos
numa alegria sem demora. Diante do mundo,
algo mais do que esta enseada de águas
mansas, não quererá a eternidade ser parte
do abalo ou do desvario. Simplicidade apenas,
de remanso com que as horas são batidas
monocórdicas no relógio. E todos os fados
são universos de cada transeunte.


Filinto Elísio
Cabo Verde

Sombras Memória SEM



Pequenos Negócios, lançados Olhares
dilatação semana. Dedos Tocar um
Mármore Frios tao. Sombras Memória SEM
mesas dos cafés. Tudo apagamentos
- Ahn Como Esquece Jornal
mas dia um.


Carlos Poças Falcão

A um passo do paraíso



paixão que leva
do nada a lugar algum

sonho que insiste
em fugir pela janela
antes da hora

aromas da infância
esquecidos na dobra do tempo

segredos
que os olhos da amada
escondem

feridas que se abrem
em noites de ausências

velas abertas
à espera de vento
para se lançar ao mar

desejo que resiste
sobre as cinzas da paixão

o que separa o poeta
do paraíso
é só um passo no escuro.


Ademir Antonio Bacca
Brasil

25.4.11

Pátria



Não pronuncio nomes detestáveis
E dou com eles às vezes nos jornais;
E nem sequer lhes chamo miseráveis
E foram-no demais.

Morrem em prisão os rouxinóis
De tristes, como tristes violetas,
- Pátria - os últimos heróis,
os que morrem por ti, os teus poetas.

ninguém mais poderoso andou no mundo
ao que tenho sofrido e vi sofrer;
nem um instante pleno nesta vida,
mais para morrer que de viver.


Afonso Duarte

Monograma



A sotavento da face
colar aquoso
se desfia

E
em sua fímbria macia
meu lenço azul-escuro
discreto humedece
o monograma
Jota
Cê.

Colar
que se desfia
no próprio lapso.

José Craveirinha
Moçambique

Segunda-Feira de Páscoa



Acendia todos os cigarros pelo lado errado,
as letras e o desenho desapareciam sob as cinzas.
Dando por isso interrogou-se: quem sabe
o destino que me está sendo anunciado na coincidência?
uma mulher a quem dissera palavras que magoam
passava com a multidão á tarde diante
da sua mesa de café.

E ele via-a, distinguia o seu rosto que lhe parecia pálido,
começava a interpretar o seu olhar
aborrecido e tão ausente.

Depois, como por acaso, descobria-a sentada noutro café
e pensando em continuar a última conversa
ia ao seu encontro e dizia-lhe boa tarde.
Mas ela olhava em frente e mal lhe respondia.
e ele, desiludido, dava dois passos e baixava a cabeça,
desaparecia no meio dos outros homens e mulheres.


João Camilo

23.4.11

Apagam-se com vagar na impiedade do tempo


Apagam-se com vagar na impiedade do tempo.
Ouço o seu clamor enfraquecido, um gemido impotente
a que em breve ninguém se poderá converter.
Eram os únicos lugares onde sabia estar.
Sem obviamente saber estar, visto a imperícia
me ser tão sanguínea – excepto quando por teimosia
roçava a mais feroz inconsciência e nada então
importava. Mas foi sempre mais frequente ter
de prémio uma excessiva consciência de tudo, da
inexorável tristeza de tudo, embora ali agraciada
com um encanto cáustico:
a possibilidade de reivindicar um inferno.

A pouco e pouco morrem as portas largas
de ruas estreitas que, à parte outros méritos, ensinavam
com mestria o abandono e a eternidade da sede.
Tive a má sorte de serem meus estes anos que de algum
modo testemunham a despedida dos últimos exílios,
desses redutos sombrios onde se podia renegar
a luz perversa do mundo.

Abuso mais uma e outra vez os pequenos templos
que perduram. Aproveito como posso a demora
da sentença, mas sei próximo o dia, a furibunda
manhã em que se apagarão de vez os fogos
em que mais apetecia ser lentamente devorado.


Manuel de Freitas

22.4.11

Deus reincarnado


Tenho
um deus
só para mim
incarnado na loucura
da minha lucidez


Manuela Amaral

20.4.11

Denúncia


Sonharei, no teu seio calmo,
O sonho invisível do cego de nascença.
Dormirei, no teu cerrar de pálpebras,
Como um peixe desliza entre os ramos de árvore
Reflectidos na água.
Dormirei, nas tuas mãos pousadas no meu corpo,
O desejo de te acariciar sem perigo
- não vá tirar-te escamas, borboleta presa.
Dormirei, no teu sexo, a solidão do meu
Ao existir para que eu pense em ti.
Dormirei, na tua vida, a teimosia humana
De um sentido universal para as coisas connosco.
E se, depois, meu amor, formos estéreis,
Se a demora do tempo tiver tido um gesto abandonado,
E a morte, à nossa volta, um moleiro sem trigo,
O mundo que vier inveja-nos
E o nosso espírito há-de perdoar-nos.

Jorge de Sena

19.4.11

De ti




De ti fiz a harpa e a lira,
a guitarra.
Outra música não sei.


Albano Martins

Ma Blonde



Ouve, vagueio num espaço de luz cercado dum silêncio.
é um silêncio e não o teu... vejo claramente olhando, as mesas
o meu perfil que se volta docemente e não és tu,
em que braços te suspendes e flutuas os teus lábios
rigorosos de planície quando voas?..

Olha, fixa e furtivamente olha superiormente,
ó Cyborg que enorme já te ergues no teu luto,
a boca entreaberta como um ovo que é olhado
na doce e fresca idade que em breve nos espera
entoa já o canto dos fantasmas que dão fruto.


Alexandre Vargas

Ao amor



Muito amo as criaturas, porém,

sobretudo eu amo o poeta,
por ser ele o senhor da sensibilidade,
da emoção e do sonho.

Enfim,
eu amo a palavra por permitir-me dizer ela
o quanto eu amo


Ada Ciocci
Brasil

18.4.11

Descoberta


Por ti desço
à madrugada
e desenraízo o tempo
com o arado
do meu corpo
rasgando o teu...

No percurso da
tua pele
os primeiros raios
de sol
são os meus dedos
descobrindo os segredos


Jorge Arrimar
Angola

Doze horas na vida de um mendigo


O mendigo
estendeu suas mão vazias
na penumbra do dia...

Mastigou gestos de indiferença
encheu seus olhos de movimento diurno
e descansou à sombra da esquina do seu destino.

Na penumbra da noite
o mendigo
recolheu suas mãos

— cheias de coisa alguma!


João Rodrigues
(Cabo Verde)

17.4.11

Motivo



juntei na mão
os meus poemas
e lancei-os ao deserto
para que as areias
se transformem em protesto.
sejam catanas armas ou punhais
sejam protesto.
sobre a terra prometida
o mundo:
e uma arma tão forte que construa
os alicerces desta sede insaciável de criar
independência.

II

poesia
será depois a revolução
em seu entendimento permanente.

além da substância
nem o azul
poderá mover
outras lembranças.

lançados no caminho
iremos segredando à continuidade
desde os contos de ninar
aquilo que nos é amor e causa.


Costa Andrade
Angola

15.4.11

Junto de ti


Venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme,
um deus que dança, e mais
que um mero deus,
o breve amor do tempo.


António Franco Alexandre

14.4.11

Passos sem memória



Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.


Rosa Alice Branco

Esperança



Não! A gente não morre quando quer,
Inda quando as tristezas nos consomem.
Há sempre luz no olhar de uma mulher
E sangue oculto na intenção de um homem.

Mesmo que o tempo seja apenas dor
E da desilusão se fique prisioneiro.
Vai-se um amor? Depois vem outro amor
Talvez maior do que o primeiro.

Sonho que se afogou na baixa-mar,
De novo há de erguer, cheio de fé,
Que mesmo sem ninguém o suspeitar,
Volta a encher a maré.

Não penses que jamais hás de achar fundo
Nem que entre as tuas mãos não terás outra mão.
Pode a vida matar o sonho e o sol e o mundo,
Mas não nos mata o coração.


JG de Araújo Jorge
Brasil

13.4.11

Um dia



De súbito, entre a sombria
roda dos dias iguais,
às vezes sucede um dia
que se distingue dos mais.
É um dia raro, feito
à medida do teu peito,
onde o meu busca repouso.
Um dia claro, luminoso
e sobre todos perfeito.
Um dia contra o cinzento
correr dos dias iguais,
no qual me invento e te invento
para sermos o momento
que não findará jamais.

Torquato da Luz

A natureza morta numa casa



A mão que embala o mundo traz ao colo
a música de frases tenebrosas
a arder na minha boca. A língua fala
de tudo o que não sei: palavras rasas
entre lábios sem alma, que revelam
a natureza morta numa casa
onde a luz fica acesa em cada sala
até de madrugada. Tudo é belo
quando a vida mal vibra e mal nos pesa,
quando o silêncio abre as suas asas
sob o divino hálito que engole
o aroma das rosas.


Fernando Pinto do Amaral

vens de repente com a voracidade



vens de repente com a voracidade
de um pássaro nocturno que não chamei
e a porta fecha-se sobre as minhas ancas
e a noite bebe o hálito que largas na minha pele
enquanto os espelhos escondem o rasto
de todos os segredos que guardavas

(...)

fica comigo peço mas tu não me ouves
e eu sei que vou voltar a esperar por ti na vida que me resta
e em todas as vidas e em todas as mortes
até ao dia em que definitivamente
despeças o teu corpo do meu
e eu repita fica comigo e tu
desapareças

como quem esteve só à espera
de ventos favoráveis


Alice Vieira

11.4.11

Com um só fósforo ilumino o infinito


Com um só fósforo ilumino o infinito.
E muitas vezes o infinito é algo
muito próximo, um livro, uma chávena
de chá, o teu rosto escondido
na penumbra, o retrato de alguém desconhecido
que de uma praça, acena,
um fio de tabaco, um monograma
num lenço muito branco.
O infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração,
uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo
que a mão ousa tocar, esta chama
que de repente amplia a escuridão
e me torna visível a quem passa
e no clarão acende o seu cigarro.


Amadeu Baptista

10.4.11

A riqueza



A riqueza! A tão célebre riqueza
É-me o sol parido na boca
A minha alma no bico dos pássaros
As minhas costas pasto de ovelhas
É um ribeiro seco de sorrisos cheio
O meu cérebro em gargantas amargas
As minhas mãos prenhas nas pedras
Os meus olhos vestidos de vênus
Os meus pés dançando nas vagas
O meu corpo despido nas árvores
Sangrando aneis fulgentes de estrelas.


Manuel Feliciano

8.4.11

Soneto do Único Amor



Fios de ouro na voz e nos cabelos
Andar, o andar do ar, se o ar andasse;
Olhos azuis horizontais e belos
Como se a luz do mar os inventasse:

Recordações sem conto se porfiam
Em desgastar no tempo o fio ardente
E inquebrantável, onde morriam
Desde o início, futuro e presente.

Fria talvez, de chama que morreu,
Muito anterior à Terra; o corpo de ave
Plácida e presa, deusa que desceu

E quebrou portas que não tinham chave:
Essa a medusa que eu fitei sem esperança,
Praia sem água, vida sem mudança.


Alberto de Lacerda

7.4.11

Perfume da Rosa



Quem bebe, rosa, o perfume
Que de teu seio respira?
Um anjo, um silfo? ou que nume
Com esse aroma delira?

Qual é o deus que, namorado,
De seu trono te ajoelha,
E esse néctar encantado
Bebe oculto, humilde abelha?

- Ninguém? - Mentiste: essa frente
Em languidez inclinada,
Quem ta pôs assim pendente?
Dize, rosa namorada.

E a cor de púrpura viva
Como assim te desmaiou?
e essa palidez lasciva
Nas folhas quem ta pintou?

Os espinhos que tão duros
Tinhas na rama lustrosa,
Com que magos esconjuros
Tos desarmam, ó rosa?

E porquê, na hástea sentida
Tremes tanto ao pôr do sol?
Porque escutas tão rendida
O canto do rouxinol?

Que eu não ouvi um suspiro
Sussurrar-te na folhagem?
Nas águas desse retiro
Não espreitei a tua imagem?

Não a vi aflita, ansiada...
- Era de prazer ou dor? -
Mentiste, rosa, és amada,
E também tu amas, flor.

Mas ai! se não for um nume
O que em teu seio delira,
Há-de matá-lo o perfume
Que nesse aroma respira.

Almeida Garrett

Toda a poesia é luminosa


Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.


Eugénio de Andrade

6.4.11

Perdigão perdeu a pena



periódica
e temporariamente
esgota-se-me a pena lírica
por via do ruído
ensurdecedor
que entra despudoradamente
pelas janelas do meu quarto
dir-se-ia o estilhaço de uma bomba no Iraque
ou um grito perdido no tsunami

vai-se a pena lírica
vem o teclado pós-moderno
dum Toshiba qualquer
e já não há Perdigão
que sobreviva


Ângela Marques

Poema, beijo, estrela, afago…


Outra coisa que o corpo há quem conheça.
Eu não. Somente nele me cumpro viva.
Poema, beijo, estrela, afago, intriga
Só no corpo me são pés e cabeça.
E coração também que às vezes teça
Razão de me saber mais que medida
Nessa trágica trama tão antiga
A que chamam ficar de amor possessa.
E é de novo poema, beijo, afago.
É de novo corpo que te trago
A exótica festa da nudez.
E tudo quanto sinto e quanto penso
Toma corpo no corpo a que pertenço.
E aqui estou: de barro, como vês.


Rosa Lobato de Faria

Cão morto



Fomos contemporâneos
este cão e eu

e eu sobrevivi-lhe

e isto é tremendo.



A. M. Pires Cabral

4.4.11

É isto: a noite de amanhã


É isto: a noite de amanhã
Tu levantas-te

Manhã e noite não se vêem ao espelho
antes o estilhaçam para dentro
desencontram-se interminavelmente
mas ouvem-se uma à outra entre as salas da casa

Tu estás súbita ali na esquina do corredor
sinto por momentos a tua cara negra
e a imensidão do teu corpo anoitecido

passas-me a manhã devagar
de mão a mão
como um mapa fosforecente

onde por certo íamos morrer


Manuel Gusmão

3.4.11

Para vós o meu canto


Para vós o meu canto, companheiros da vida!
Vós, que tendes os olhos profundos e abertos;
vós, para quem não existe batalha perdida,
nem desmedida amargura,
nem aridez nos desertos;
vós, que modificais o leito dum rio;

- nos dias difíceis sem literatura,
penso em vós: e confio;
penso em mim: e confio;

- para vós os meus versos, companheiros da vida!

Se canto os búzios, que falam dos clamores,
das pragas imensas lançadas ao mar
e da fome dos pescadores,
- penso em vós, companheiros,
que trazeis outros búzios pra cantar...

Acuso as falas e os gestos inúteis;
aponto as ruas tristes da cidade
e crivo de bocejos as meninas fúteis...

Mas penso em vós e creio em vós, irmãos,
que trazeis ruas com outra claridade
e outro calor no apertar das mãos.

E vou convosco. - Definido e preciso,
erguido ao alto como um grito de guerra,
à espera do Dia de Juízo...

Que o Dia do Juízo
não é no Céu... é na Terra!


Sidónio Muralha

2.4.11

Para a minha lápide




Eis-me aqui. sou eu!
nem santo nem fariseu
(serei filho de ninguém
que me importa tal ouvir?...)
Sou eu, o louco
sem lei nem fé,
o tresloucado
que em todo o lado
sonha ser...
e é!

Sou eu, tal qual!
o incompreendido
que numa noite gelada
sem luz sem nada
Deus ou o Diabo
à rua deitou.
Infausta glória!...
fui vã vitória
assim...
mas sou!

Álvaro Giesta

Lamentações



Que solitária está a cidade
Enviuvou a mais povoada
Das nações.
Está de luto a que foi mãe
E em trabalhos forçados

Passa a noite a dobar a sua noite
À luz do pequeno brilho da lembrança
Não há a consolá-la nenhum dos seus amantes
Cresce o silêncio nos degraus da entrada
E encontra inimigos quando estende a mão

Foi levada para fora das muralhas
Foi levada para terra estéril. Foi humilhada
E posta ao serviço das escravas.
Dorme ao relento e sem repouso
Tomada de aflição.
Perseguida até ao fim
Das suas forças
Mesmo no sono é cercada

Está mais perdida do que numa encruzilhada
E venda os olhos porque qualquer luz
Ou a mínima palavra (ou a noite)
Lhe ferem os olhos rompidos de saudade

E nem os mendigos nas estradas
Têm um coração tão só


Daniel Faria

Entregámo-nos


entregámo-nos
um ao outro
dentro dos lençóis
brancos
à tarde
na posição mais
ortodoxa
e agora sabemos
e não sabemos
um do outro
escrevemo-nos
escrevemos

Adília Lopes

Ocaso



Parado num calendário asteca,
O tempo configura a própria eternidade
Sem duração.
Em total comunhão
Com tudo que vivia,
Outrora decorria
Ao ritmo de inquietos corações
E pulsava também nos glifos do basalto.
Agora, aqui, na sala dum museu,
Onde cada lembrança lembra a morte,
Adormeceu num sono tumular.
E não há voz horária
Capaz de o acordar
Da lousa funerária
Que foi pedra solar.

Miguel Torga

1.4.11

Eles amam-se nos meus versos


Eles amam-se nos meus versos nas
enseadas mais recônditas se escondem. os
nossos gestos repetem. partilham cerejas e
amoras. ao cais chegam sob um concreto luar. levam
galhos de castanheiros cítaras de duendes. um corvo
acode ao aroma dos seus corpos porque neles uma
rosa vai morrer. leram nos meus versos o
rumo de Samos. apartando líquidos cavalos crinas
brancas no incerto barco
partem dos meus versos

chove em Samos a chuva de um poema. Hera os
aguarda no arco-íris que
coroa o pórtico de Apolo. uma Danaide lhes
serve o vinho de cedro. colhem
morangos e romãs nos pomares litorais. nos
aromas das algas e dos mármores rimam as
palavras de adeus que nos dissemos. acode a
saliva ao gosto dos frutos novos. caminham de
mãos dadas no
meus versos

Fernão de Magalhães Gonçalves