11.1.10

Elegia de Lisboa



«Nas nossas ruas, ao anoitecer»,
abre-se num olhar a pena errante
de quem se ilude em passos vagarosos,
em mais um jogo incerto de cem luzes
sob este céu tão baço. Como sempre
os mudos automóveis sobem, descem
ruas e ruas rumo a outras ruas
polvilhadas de gente que regressa
sem ter partido — insectos ondulando
ao som das lentas horas fatigadas,
rostos esfarrapados de trabalhos
inúteis como a tarde que se entrega
às doces mãos secretas do crepúsculo
vibrante no declive dos telhados
em degraus sobre o Tejo. Devagar
cola-se ao espírito a membrana escura
dos sonhos que perdi ou que pedi
há tantos anos à eternidade
e agora se dispersam na colmeia
das pequenas janelas reacesas,
no bafo das famílias indiferentes
no seu «tinir de loiças e talheres»,
suspensas de écranzinhos onde vêem
outras famílias e outras indiferenças
até ao infinito. As sombras crescem
quando a lua aparece e pouco a pouco
a solidão retoma os seus direitos,
devora o que ainda resta do azul
e eu vou descendo a pé, já transformado
num perverso turista acidental
e condenado a «combater em vão
o velho tédio» ocidental, em bares
onde reagem faces conhecidas
em acenos voláteis que se cruzam
com esse aroma surdo e espesso e dócil
das vozes que por vezes me esvaziam
qualquer recordação. Bairro nocturno,
confundo os teus caminhos-labirinto,
os nomes das vielas inconstantes
e ao percorrê-las «temo que me avives
uma paixão» recente, a esvoaçar
ainda não defunta, mas talvez
moribunda por entre a marabunta
que vai enchendo, enxameando as caves
onde se compra e vende cada rosto
e onde mergulho cego e surdo e fico
senhor da sua imagem, de repente
unida às gargalhadas tão ingénuas
das viciosas bocas florescendo
na treva, procurando novas bocas
algures. Cá fora, a verde camioneta
recolhe as sensações de mais um dia
exausto. Recomeço o meu circuito,
arranco e desço mais um pouco, até
à zona antigamente industrial,
aos pálidos felizes contentores
sob a penumbra imensa dos guindastes
quase irreais. Alguns amigos entram
em armazéns de espuma onde exercito
os fúteis bocejantes sentimentos,
a mais falsa alegria, a peregrina
febrícula do espírito embrulhado
em whisky ou nas falas transparentes
de alguém que por acaso eu poderia
talvez amar - «I'm so crazy for you!» -,
mas não há «nunca nada de ninguém»,
só esta bílis negra que me espera
à saída dos últimos lugares
acompanhando agora o rio que alastra
e se mistura à crónica euforia
de uns «tristes bebedores» que mal trauteiam
frágeis franjas de música boiando
no seu vazio que é também o meu
quando parto agarrado a um volante
e na aragem dos vidros entreabertos
saboreio um cigarro que se evola
só para ti, Lisboa. Sempre quis
pulsar ao mesmo ritmo que tu,
transpor este deserto e conseguir
em golfadas de versos libertar
o encarcerado sopro do teu peito —
— cidade atravessada de armadilhas
traindo e atraindo cada gesto
das poucas silhuetas ainda vivas
sob os pilares da ponte. Ó vã Lisboa,
cai sobre mim o peso dos teus sonhos,
«quimera azul» da minha dor sem pátria,
e entre dois semáforos suplico-te:
apaga do meu corpo o sobressalto
dos seres de carne e osso, dessa estranha
realidade apenas virtual
que me despe de todos os fantasmas
e fica projectada no silêncio
das cinco e meia, enquanto vou seguindo
a «correnteza augusta das fachadas»,
as pombalinas rectas, um cortejo
de iluminadas cinzas. Uma estrela
(ou talvez fosse um avião da América?)
parece ter sorrido para mim
como se finalmente esta cidade
me confiasse a rota imperceptível
das suas ondas a perder de vista -
- «marés de fel, como um sinistro mar»,
caudal por onde singro e me despeço
do sangue de quem solta, solitário,
algum suspiro em quarto derradeiro
até ser minha a cor da tua voz,
ó morte a que abandono luz e sombra,
o grito do meu nada ainda em fuga,
mas de súbito em paz entre os teus braços.

Fernando Pinto do Amaral