19.6.09

Encontro



A esta praia cheguei um dia
Na primeira viagem da emigração
E tu negro me espreitavas a medo
De peito nu e azagaia na mão
E olhos de infância antiga
Onde rolaram séculos iguais
Quando ainda não tinhas o segredo
De conhecer o poeta que já eras
Entre diálogos em noites propícias
Com deuses e demónios sem idade
E ventres gerando sem fadiga
A vida que ao futuro se devia
E não deixou ficar notícias
E florestas e feras
Cumprindo ciclos vitais
E o apelo milenário do húmus
Que até mim não veio
Para a teoria dos rumos
E anúncios de tempo novo
Para a história de um povo.

E a teu fado alheio
Na aventura e na saudade
Cantei e reparti então
Da Europa solícitos versos
À terra que descobria
E no meu peito de poeta
Bateram os corações eleitos
Que viram os sonhos desfeitos
E acharam mais fé
E nas minhas veias
Correu o sangue
Dos que verteram nas areias
E morreram de pé
E no meu corpo exangue
Sofri a sede completa
Dos que beberam a água si
Onde andavam dispersos
Corpúsculos de alvorada
E ergueram os braços
Que eram pulsos latejando
E sonharam passos
Parados na agonia
E não morreram quando
A morte apetecia.

Hoje quatrocentos anos depois
Pode a Voz trair-te e trair-me
Na lembrança das angústias originais
Mas havemos de nos encontrar
Vivos e verticais
Na estrada larga
Que abrimos os dois
Eu que vim do Mar europeu
E enraizei meu destino em chão firme
E tu poeta negro que nunca foste ao Mar
E à Mãe-Terra pertences como eu
E à Mãe-Terra pediremos que nos tome
Inteiros para sermos da mesma Raça
E lado a lado cantaremos a mesma alegria
E sofreremos a mesma dor no mesmo luto
E comeremos o pão que engana a mesma fome
E beberemos pela mesma taça
O vinho que embriaga e amarga
E semearemos a semente do mesmo fruto


Orlando Mendes