Maputo, 1985
De manhã quando acordo
em Maputo
o almoço é uma esperança.
Mãe tenho fome
marido tenho bicha
e mil malárias me disputando a vontade.
De manhã quando acordo
em Maputo
o jantar é uma incerteza
o serviço uma militância política
do outro lado do sono incompleto
e o chapa-cem* um regulado impiedoso
no quatro barra oitenta sem contra-argumento.
De manhã quando acordo
em Maputo
o vizinho já candongou o que me roubou
a estomatologia não tem anestesia
a chuva abriu dialecticamente mais um buraco na estrada
e o conselho executivo continua desdentado de iniciativas.
De manhã quando acordo
em Maputo
Porra para a vizinha que estoirou a torneira do rés-do-chão
Porra para o guarda que não ligou a bomba quando veio a água
Porra para as cem gramas de carne apodrecidos
no silêncio desenergetico de Komatipoort
mais as ó eme sed de efes
e o soldado que ainda não ouviu dizer que os passeios
são lugares públicos
e os fulanizados exploradores de outrora
que se preparam para cuspir na tua campa, ó Mataca,
as ordens de um Mouzinho boer.
De manhã quando me percorro
em Maputo
enfio ominosamente o cérebro numa competentíssima
paciência
desembainho felinamente mais uma mentira diplomática
e aguardo a lucidez companheira me leia
nas acácias em sangue
nos jacarandas estalando sob a sola epidérmica do povo
que este é ainda o eco estridente do Chai
até que Botha seja farmeiro e Mandela Presidente.
Então,
com a raiva intacta resgatada à dor
danço no coração um xigubo guerreiro
e clandestinamente soletro a utopia invicta.
À noite quando me deito
em Maputo
não preciso de rezar.
Já sou herói.
Carlos Cardoso
Moçambique
Moçambique