Se Deus existe, fez-me sem fé,
Inapto para a crença e para a bondade da prece.
Infelicidade a minha. Miséria a de quem
nasceu assim, vazio de quase tudo
o que mereça um olhar apontado às estrelas,
uma devoção murmurada sob a forma de queixa.
Como posso eu implorar perdão
se não sei onde, como e por quem pequei?
Como posso eu pedir a dádiva da salvação
se nem sequer tenho a certeza de querer ser salvo?
Deve ser bom ter a quem rezar,
nem que seja às divindades múltiplas
e impalpáveis das águas, dos ventos e das luzes.
Eu nasci sem fé. Ponto final.
Talvez Deus se tenha esquecido de mim
na hora de distribuir pelos humanos
a oferenda imperecível da submissão e da crença.
Talvez eu estivesse a dormir ou, quem sabe,
não tivesse ainda saído do ventre materno.
Tudo é possível. Mas atrevo-me a perguntar:
e se Deus, simulando este imperdoável esquecimento,
me tivesse dado o verso para eu falar com ele
imaginando que é comigo que falo?
Só no fim de toda a escrita
poderei ter certezas a este respeito. Quem
estará lá à minha espera
quando já não houver mais palavras para dizer?
José Jorge Letria