23.4.08


'Tenção' do Amor Nocturno


Hei-de vir, meu amor, depois de morto,
e mesmo que não sintas quem eu fui,
ou não te amasse já quando morri,
ou nem tenha sabido que existias,
embora eu apodreça e nada mais
de mim seja imortal ou contentado,
hei-de vir, meu amor, para sofrer
o atravessar-me o teu olhar tranquilo
e as tuas mãos passando-me na testa,
ingénuas e felizes como nuvens.

Hei-de vir, meu amor, rapidamente,
que a nossa morte é outra, que eu morri
de quanto envenenaram meu desejo
como nomes e com rosto - solidão
e ausência... Meu amor: ai tantas vezes
te acreditava além da treva impura
e eras, afinal, um candeeiro
que a sombra disfarçava... ai tantas vezes
tu foste ao longe um marco de correio!...

Hei-de vir, meu amor, depois de morto,
sem alma nem presença, feito nada,
mortos comigo a força de chamar-te
e o acaso universal de que vivi,
mas hei-de vir, amor, ao teu regaço
de quem fores ou não fores um destino
que te juntasse a carne para mim
e, perto desse cheiro inexorável
tão perto quanto possa a inexistência,
contemplarei a multidão fluindo,
ver-te-ei no meio dela: tu sorrindo,
e ela tão contente de aumentar!

E, num murmúrio brando, como se
o mar ali estivesse, e a terra inteira
não fosse apenas a que tive em sorte;
já no fechar dos olhos, mesmo antes
de até o próprio nada terminar,
direi, então (de forma a que não ouças):
- É o sol, amor, o Sol é que nos falta!


Jorge de Sena