22.4.08

Passagem da noite


É noite.
Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra),
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim,
o grito se calou,
fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento, noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite,
não é morte,
é noite de sono espesso e sem praia.
Não é dor,
nem paz,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar:
as distâncias, as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos se nos confia outra vez.

Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas, sinos, palavras;
que a terra prossegue seu giro,
e o tempo não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado, o essencial é viver!


Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)