Lina,
distante dezanove dias de água,
milhas marítimas que só a lembrança vence,
teus desvanecidos traços tento definir
pois de ti só possuo, intensamente, a imagem
de um lenço branco, acenando no cais.
Assim, te completo com as quase delidas faces
dos companheiros de infância,
verdes rostos moldáveis na memória,
e os gestos e os moldes e as falas
de todos os que, vivos ou mortos, se cerro os olhos
vejo e ouço...
Deste modo, escuto ainda
o trilo de flauta que,
no recôncavo da mata à beira do córrego,
pastorzinho negro ingenuamente improvisava,
a restolhada bravia dos dedos longos do vento
lascivamente despenteando a margem verde dos canaviais
— e vejo as barbudas figueiras bravas de ao pé do pomar
onde, nas tardes de Verão, a cega-rega das cigarras
nos ficava zunindo nos ouvidos.
E os rouxinóis...
Não, não e não!
Só sei dar a tudo, coisas vivas ou inanimadas,
aves, folguedos, frutos, instrumentos, localidades,
os saborosos nomes que juntos aprendemos, e não outros:
bokota, shikumbela, timbila, Zavala,
pois, só assim, poderei evocar
com as palavras mesmas que no alvoroço da descoberta
à boca nos acudiam
(Lina, Lina, uma gala-gala naquela mafurreira!)
as nossas «grandes e terríveis aventuras».
Quando um dia, amiga, com doces termos
tivermos baptizado, escrito pela primeira vez
o nome de bichos e aves, rios e ruas,
gentes e gestos, danças e doces, frutos e factos
e os quisermos preservar na Arca-de-Noé da Poesia
será mais rico o colorido do nosso canto
pois nós, gémeos no amor da transfiguração,
pegando numa irisada palavra
a voltearmos nas mãos como precioso diamante
ou como irmã mais nova
já que do ventre da nossa mãe a recebemos.
Fonseca Amaral
Moçambique
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