31.3.09

A Graça


Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Porque no coração
Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: «Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem d'ouro e púrpura descendo
Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo,
Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança,
Que te seguiu dos Céus!...


Alexandre Herculano

30.3.09

Desamparo


Digo-te que podes ficar de olhos fechados sobre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exacta direcção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem cor e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

29.3.09

Nova Vénus


Salta aos ventos as tranças douradas,
Meiga filha das bordas do mar,
E no meio das vagas iradas
Solta aos ventos o alegre cantar.

Não, não temas as nuvens sombrias,
Que uma a uma se elevam d´além,
Qe rodeado d´amor e alegrias,
O teu céu dessas nuvens não tem.

Canta sempre, de noite as estrelas,
De manhã ao luzir do arrebol,
Ao passarem no mar as procelas,
Ao sorrir nos outeiros o sol.

Canta sempre, ó alcione d´estas vagas
Nova filha da espuma do mar,
Canta sempre, e eu sentado nas fragas,
Voltarei para ouvir-te cantar.


Júlio Dinis

28.3.09

Flagelados do Vento-Leste


Nós somos os flagelados do Vento-Leste!

A nosso favor
não houve campanhas de solidariedade
não se abriram os lares para nos abrigar
e não houve braços estendidos fraternamente para nós

Somos os flagelados do Vento-Leste!

O mar transmitiu-nos a sua perseverança
Aprendemos com o vento o bailar na desgraça
As cabras ensinaram-nos a comer pedras para não perecermos

Somos os flagelados do Vento-Leste!

Morremos e ressuscitamos todos os anos
para desespero dos que nos impedem a caminhada
Teimosamente continuamos de pé
num desafio aos deuses e aos homens

E as estiagens já não nos metem medo
porque descobrimos a origem das coisas
(quando pudermos!…)

Somos os flagelados do Vento-Leste!

Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãos
E as vozes solidárias que temos sempre escutado
São apenas
as vozes do mar
que nos salgou o sangue
as vozes do vento
que nos entranhou o ritmo do equilíbrio
e as vozes das nossas montanhas
estranha e silenciosamente musicais

Nós somos os flagelados do Vento-Leste!


Ovidio Martins
Cabo Verde

Balada da Chuva





Do céu cai a chuva fria,
Quer de noite quer de dia,
No triste Inverno cinzento.
Fazendo correr as águas,
Como lágrimas de mágoas,
Sempre em constante lamento.

Chuva de Inverno gelada,
Que p´la roupa repassada,
Atinge a pele pungente,
Daqueles que sem abrigo,
A sofrem como castigo,
Em cadência permanente !…

O mundo era mais perfeito,
Se não houvesse o despeito,
Da chuva que atropela.
Em vez de nos agredir,
Só deveria cair,
Onde alguém precisa dela!…

Com seus caprichos e bruma,
A chuva, é apenas uma
Prova, de toda a grandeza,
Que transcende o nosso ser
E nos limita entender,
Mistérios da Natureza!…


Euclides Cavaco
Canção

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No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que tu certamente vinhas.

Eu te esperei todos os séculos,
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,
meus olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro dessas águas sem fim.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

27.3.09

Primeiro a mão, amor, a mão cativa




1

primeiro a mão, amor, a mão cativa
pela palma indecisa que a retém,
o gozo deste jugo que mais sirva
o gesto inacabado que lhe vem.
o suco, o sumo, o brando deslizar
dos dedos entre os dedos, perguntando
que fio ousar tanger deste tear
do corpo já cedendo, e recusando.
o braço sobre o ombro, o-breve enleio
dum olhar por olhar (e nada ver),
o-brando lume da mão roçando o seio,
o-ceder (não se dando) sem saber.
o-cerrar todo o tempo em seu receio
e ao silêncio ajustar o que vier.


Hugo Santos


Nas curtas horas realmente longas
cada minuto um porquê da tua ausência
cada instante o desejo visceral da tua presença

Nas curtas horas realmente longas
ao afagar o sussurro da tua voz suave
ela ribomba como o trovão
como ondas iradas sob tempestade
aos ouvidos impacientes da ânsia.

Ânsia de rasgar o ventre grávido da fera
de arrebatar das mãos do medo
o germe implacável da semente portentosa
da chegada

Nas curtas horas realmente longas
a jornada insana das lutas vitoriosas
o grito no caminho firme para a vida
o meu grito na tua voz
o meu desejo nos teus olhos

Agostinho Neto (poeta anmgolano)
Criança

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Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Cecília Meireles (poetisa brasileira)

O Cavaleiro




Talvez o espere ainda a Incomeçada
aquela que louvámos uma noite
quando o abril rompeu em nossas veias.
Talvez o espere a avó o pai amigos
e a mãe que disfarça às vezes uma lágrima.
Talvez o próprio povo o espere ainda
quando subitamente fica melancólico
propenso a acreditar em coisas misteriosas.

Algures dentro de nós ele cavalga
algures dentro de nós
entre mortos e mortos.
É talvez um impulso quando chega maio
ou as primeiras aves partem em setembro.

Cargas e cargas de cavalaria.
E cercos. Conquistas. Naufrágios naufrágios.
Quem sabe porquê. Quem sabe porquê.
Entre mortos e mortos
algures dentro de nós.

Quem pode retê-lo?
Quem sabe a causa que sem cessar peleja?
E cavalga cavalga.

Sei apenas que às vezes estremecemos:
é quando irrompe de repente à flor do ser
e nos deixa nas mãos
uma espada e uma rosa.

Manuel Alegre
Da Tua Vida

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Da tua vida o que não podem entender
Nem oiro nem poder nem segurança
Mas a paixão do Tempo e de seus riscos
Tu buscaste o instante e a intensidade
E foste do combate e da mudança
Por isso um rastro de ruptura e de viagem
Ou talvez este fogo inconquistado
Como breve eternidade
De passagem

Manuel Alegre




26.3.09

Um Sorriso



Quando
com minhas mãos de labareda
te acendo e em rosa
embaixo
te espetalas

quando
com o meu aceso archote e cego
penetro a noite de tua flor que exala
urina
e mel
que busco eu com toda essa assassina
fúria de macho?
que busco eu
em fogo
aqui embaixo?
senão colher com a repentina
mão do delírio
uma outra flor: a do sorriso
que no alto o teu rosto ilumina?


Ferreira Gular
Brasil

25.3.09

Noite Vagabunda de Luar



A minha angústia é asa quebrada
da noite vagabunda de luar
que vem mansamente pela madrugada
bater-me à porta para me acordar


António Arnaut




Quero compor um poema
onde fremente
cante a vida das florestas das águas e dos ventos.

Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!

Manuel da Fonseca

24.3.09

Legenda



Como quem sente
na legenda do presente
o fim duma história breve,
vou vivendo um sonho intacto
num pesadelo crescente
- uma luz fecunda e leve
nos olhos pardos de dum gato.


Fernanda Botelho

23.3.09

O Meu Amor Existe


O meu amor tem lábios de silêncio

E mão de bailarina
E voa como o vento
E abraça-me onde a solidão termina


O meu amor tem trinta mil cavalos
A galopar no peito
E um sorriso só dela
Que nasce quando a seu lado eu me deito

O meu amor ensinou-me a chegar
Sedento de ternura
Separou as minhas feridas
E pôs-me a salvo para além da loucura

O meu amor ensinou-me a partir
Nalguma noite triste
Mas antes, ensinou-me
A não esquecer que o meu amor existe


Jorge Palma
Os rios de um dia



Os rios, de tudo o que existe vivo,
vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
O rio corre; e assim viver para o rio
vale não só ser corrido pelo tempo:
o rio o corre; e pois com sua água,
viver vale suicidar-se, todo o tempo.

2.
Pois isso, que ele define com clareza,
o rio aceita e professa, friamente,
e se procuram lhe atar a hemorragia,
ou a vida suicídio, o rio se defende.
O que um rio do Sertão, rio interino,
prova com sua água, curta nas medidas:
ao se correr torrencial, de uma vez,
sobre leitos de hotel, de um só dia;
ao se correr torrencial, de uma vez,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alongá-lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros:
esses rios do Sertão falam tão claro
que induz ao suicídio a pressa deles:
para fugir na morte da vida em poças
que pega quem devagar por tanta sede.


João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)

21.3.09

Quando os pássaros abrem a manhã


Quando os pássaros abrem a manhã
ou entardecem nas árvores as nossas praças,

abre-se um lugar dentro do peito
que desconhece as regras do tempo,
aí erguendo a casa
e esperando serenamente
o que nunca saberemos
sobre o que a morte possa ser.

Até que partam um dia
para o mais velado coração,
guardado em nós
como a noite mais longa,
fechado em nós
como a memória mais pura.


Pompeu Miguel Martins
Pedido


Só te peço esse olhar doce
Profundo, naufragado
No teu olhar.
Essa tão doce promessa
De beijar submersa
Nos teus lábios de sangue...
...para fazer as coisas mais impossíveis do Mundo!


António Cardoso (poeta angolano)

Compõe as flores...



Compõe as flores
sem adornos. As coisas
simples, mesmo se
de ornamento
apenas servem, dispensam
sempre o que é gratuito. E sê,
também, por isso,
uma flor. Ou só
o orvalho
que a sustenta. Ou só
o seu perfume
matinal.


Albano Martins

Poema



Eu não sabia então -
nem sei se mesmo hoje saberei -
que a poesia era para isto
falar das coisas miseráveis
- a memória do que é miúdo, o que é rasteiro -
o sono escombros que o mar devolve à terra.

Ou então lembrar meu Pai
suas mãos secas tisnadas do sol
sua vasta alma camponesa rosto de terra
coração de menino olhos ingénuos
um chapéu protegendo-lhe a cabeça
caminhando entre folhas de videira
suavemente falando aos que trabalhavam na colheita
[se acercassem de um outro campo mais acima
para colher sob sol braseiro
uvas que eu ia devorando
até do sumo doce fartar minha boca.

Ou lembrar meu avô
que conduzia mal
levando o carro pelo meio da estrada de província
a buzinar longamente em cada curva
afugentando galinhas ovelhas
crianças ranhosas
filhas do álcool.

Lembrá-lo agora como quem evoca um sabor cheiro
[da infância
não chegando para me humedecer os olhos
(não sou especialmente dado à comoção)
leva-me a um outro tempo:
um tempo de girassóis e de pão farto e doce
a encher-me a boca miúda
momentos coincidentes com o agora:
a guerra na Palestina as eleições em França
a notícia de um óbito no jornal do dia
a graça do pivô a fechar outro telejornal
ou tão-somente essa presença intensa
teu perfil recortado no ecrã dos meus olhos.

Tudo acontecendo ao mesmo tempo numa linha
[horizontal
em simultâneo como se de fora
como se fosse um outro
desconhecendo sempre
o lugar exacto a que pertenço.


Bernardo Pinto de Almeida

Fim

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Ó tempos de incerta esperança
que assim vos desacreditastes!
Cresceram nuvens sobre a lua
e o vento passou pelas hastes.

Vinde ver meu jardim sem flores
no presente nem no futuro,
e a mão das águas procurando
um rumo pelo solo escuro!

Vinde ouvir a história da vida
no sopro da noite deserta.
Caíram as sombra das vozes
dentro da última estrela aberta.

Ai! tudo isto é letra do horóscopo...
E só tu, Estátua, resistes!
— Mas, embora nunca te quebres,
terás sempre os olhos mais tristes.

Cecília Meireles (poetisa brasileira)

19.3.09

Sobre o vento noroeste



Sobre o vento noroeste
galopam negros cavalos
de longas e soltas crinas
perdidas na noite escura.

Saltam ladrões ao caminho
dos homens desprevenidos
e anavalham corações
sobre o vento noroeste.

Choram meninos perdidos
em velhas encruzilhadas,
enquanto pelas estradas
galopam negros cavalos.

E em desespero nocturno
os cavaleiros de fumo
se agarram desesperados
às suas longas e soltas crinas.

Porque o vento noroeste
vai deixando pelos campos,
pelos prados, pelos vales,
lamentos desesperados
dos cavaleiros perdidos
em raivas e desesperos
sobre o vento noroeste.

Orlando de Albuquerque

Para um velho rapsodo



Canta, Muringana, canta,
na noite comprida do Chamanculo:
Ai, o Xivito que eu tenho,
a minha impala não veio hoje beber.
Kina, Kina, Kina
W psala nwana, Muringana,
W psala nwana!
A muchem te roeu o coração
e fez dele um monte de areia seca,
uma casa na solidão.
Kina, Kina até ao cansaço,
à copa das árvores até às raízes.
Bailando voas, bailando te afundas,
o chão dos mais engeitas.
Nesse ventre de homem um filho se gerou
- é o Xivito que te aperta o peito,
rouba o fôlego e entontece.
Ê - lê - lê - lê! Faz tremer o chão
Com raiva e os pés.
Chocalha esses guizos dos artelhos,
iradamente dança, ê - lê - lê - lê!
A azagaia da morte não te apanhará desprevenido.
Quando a Grande Caçadora por ti vier,
tu, em pleno salto,
morrerás no ar como so pássaros mais altivos,
Muringana, Muringana.


Fonseca Amaral
Moçambique

não procuro um amor



não procuro um amor entre os cardos,
se é entre os cardos que me vês, procura
pensar que um amor não se perde por ali
nem por ali se deve encontrar. se estou
entre os cardos, meu amor, é para te esquecer
e se me vires, pensa que é por ti, absolutamente por ti
que procuro apenas dores, apenas fardos,
para lentamente matar o meu coração. e
se me vires cair, se entretanto me vires no chão,
não me apanhes, não me ajudes, pensa que
já ninguém passeia nos cardos e que o
amor, para castigo dos que morrem, recomeça
num outro lugar, seguramente à tua espera.
depois sorri mesmo que te seja difícil, se por
mais difícil que seja para mim ver-te sorrir
é entre os cardos que devo partir, quando
fugazmente te souber passando, tão parecida
com ires buscar a felicidade sem mim e eu
só mais uns segundos, já meus anjos preparados.


valter hugo mãe
Romance de seu Silva Costa



«Seu Silva Costa
chegou na ilha...»

Seu Silva Costa
chegou na ilha:
calcinha no fiozinho
dois moeda de ilusão
e vontade de voltar.

Seu Silva Costa
chegou na ilha:
fez comércio di álcool
fez comércio di homem
fez comércio di terra.

Ui!
Seu Silva Costa
virou branco grande:
su calça não é fiozinho
e sus moedas não têm mais ilusão!...

Francisco José Tenreiro (poeta santomense)

Poema da Mulher Nova




Vejo-te no mundo que não pára,
como um grande lenço rubro desfraldado.
Vejo-te em mim quando me sinto massa
com milhões de braços e de pernas e uma cabeça de anjo.
Vejo-te na vida em marcha,
nas mãos estendidas.
Vejo-te em toda a vibração,
nas plantações cobertas de girassóis e de papoulas,
no topo dos tractores pulverizando a terra.

Vejo-te nua das sedas
com a boca rasgada numa canção de futuro
como um punho ameaçador à pestilência dos homens.

Vejo-te bela
com os cabelos ao vento,
em frente,
sem um talvez: perfeita.

Vejo-te mãe de milhões de homens novos,
de rosto calmo e olhos firmes,
através das labaredas e do fumo,
sem país e sem lar, a caminho da vida
– na descoberta constante.


Manuel da Fonseca

18.3.09


Autocrítica




Aqui, a sós.
Entre mim e o sonho
De cantar-te,
A voz
De que disponho
Sem engenho e arte...

Fraca e mal nascida,
Nasce,
E nunca digo de nós,
Da vida.
Do Sol
Que prossigo,
Com palavras-não-gastas...
Nasce,
E fica-se (tece)
A tristeza mole da derrota
Pelo mal que digo,
(Canto!)
A certeza da vitória
Nesta rota...

Espanto sem história
Neste esforço
De cantar-te?
Se és tão simples água
Ou sol nas veias,
Simples olhar límpido
De criança perpétua
Sem a primeira mágoa?!

Simples leveza de amar-te,
Simples esperança simples,
Maré-cheia e horizonte,
Escorço de linhas
Com o SOL lá, PÃO e FONTE!...
– ah! minhas palavras minhas!


António Cardoso (poeta angolano)
Samba




No oco salão de baile
cheio das luzes fictícias da civilização
dos risos amarelos
dos vestidos pintados
das carapinhas desfrizadas da civilização,
o súbito bater da bateria do jazz
soou como um grito de libertação,
como uma lança rasgando o papel celofane das composturas forçadas.

Depois,
veio o som grave do violão
a juntar-lhevo quente latejar das noites
de mil ânsias de Mãe-África,
e veio o saxofone
e o piano
e as .marocas matraqueando ritmos de batuque,
e todo o salão deixou a hipocrisia das composturas encomendadas
e vibrou.
Vibrou!

As luzes fictícias deixaram de existir.
E quem foi que disse que não era o luar dos shigom belas,
aquela luz suave e quente que se derramou no salão?
Quem disse que as palmeiras e os coqueiros,
os cajueiros
os canhoeiros,
não vieram com suas silhuetas balouçantes
rodear o batuque?
Ah! na paisagem familiar,
os risos se tornaram brancos como mandioca
os requebros na dança traziam a febre primitiva
de batuques distantes,
e os vestidos brilhantes da civilização desapareceram
e os corpos surgiram, vitoriosos,
sambando e chispando,
dançando, dançando...

Os ritmos fraternos do samba,
trazendo o feitiço das macumbas,
o cavo bater das marimbas gemendo
lamentos despedaçados de escravo,
oh ritmos fraternos do samba quente da Baía!
Pegando fogo no sangue inflamável dos mulatos,
fazendo gingar os quadris dengosos das mulheres,
entornando sortilégio e loucura
nas pernas bailarinas dos negros...
Ritmos fraternos do samba,
herança de África que os negros levaram
no ventre sem sol dos navios negreiros,
e soltaram, carregados de algemas e saudade,
nas noites mornas do Cruzeiro do Sul!
Oh ritmos fraternos do samba,
acordando febres palustres no meu povo
embotado das doses do quinino europeu...
ritmos africanos do samba da Baía,
com maracas matraqueando compassos febris
— que é que a baiana tem, que é? —
violões tecendo sortilégios de xicuembos
e atabaques soando, secos, soando...
Oh ritmos fraternos do samba!
Acordando o meu povo adormecido à sombra dos imbondeiros
dizendo na sua linguagem encharcada de ritmos
que as correntes dos navios negreiros não morreram, não,
só mudaram de nome,
mas ainda continuam,
continuam,
oh ritmos fraternos do samba!


Noémia de Sousa

17.3.09

Quando toda és Terra a Terra


Marga, teu busto tufa,
Dois gomos e véus de ilhal
Palpitam palmo de gente
Nesse tefe-tefe igual
E há qualquer coisa de ardente
Que se endireita e que rufa
Nem tambor a general.

Marga, teu peitinho estringes,
Toca a quebrados na praça
De armas que empunham rapazes
De guarda a uma egípcia esfinge,
E um vento de guerra passa
E o pau da bandeira ringe
Antes de fazer as pazes.

Marga, que deusa de guerra,
A Miosótis se interpôs
Quando toda és terra a terra
Cálice de rododendro
Zango nunca em ti se pôs
Em estames senão tremendo...

Vitorino Nemésio




Diz que me amas sussurras
imploras exiges
berras
com todas as vísceras
diz diz que
me amas quem sou o que sou
furas-me
o peito
com tuas unhas azuis
quem sou eu nada tudo tua
diz que me amas explodes
porquê porquê
quem és tu de que limbo
surgiste anjo contumaz
de que noite
atávica que flores
são estas
que irrompem de teus dedos
que pavor assoma aos
meus olhos quando
me amas diz
diz que me amas porque
me amas diz dizes xingas
e desfaleces
alegre &
triste pois
eu não tenho respostas prontas
eu apenas
te amo
pronto pronto.

João Melo (poeta angolano)

Sabes quem sou? Eu não sei.


Sabes quem sou? Eu não sei.
Outrora, onde o nada foi,
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dor que me dói.
Duas dores eu passei.

Fui tudo que pode haver.
Ninguém me quis esmolar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.


Fernando Pessoa

16.3.09

Essa infanta


Essa infanta boreal era a defunta
em noturna pavana sempre ungida,
colorida de galos silenciosos,
extrema-ungida de óleos renovados.

Hoje é rosa distante prenunciada,
cujos cabelos de Altair são dela;
dela é a visão dos homens subterrâneos,
consolo como chuva desejada.

Tendo-a a insônia dos tempos despertado,
ontem houve enforcados, hoje guerras,
amanhã surgirão campos mais mortos.

Ó antípodas, ó pólos, somos trégua,
reconciliemo-nos na noite dessa
eterna infanta para sempre amada.

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

14.3.09

... Sem Bússola, sem Leme...

Bússola Mágica

Cansada, exausta, do labor insano
duma vida incolor, sem fantasia,
vou ver se encontro, noutro meridiano,
a emoção que desejo em cada dia.

Vou procurar, sem lógica, sem plano,
um pouco de aventura, de alegria.
Não mais o miserável quotidiano,
antes o vendaval que a calmaria.

Antes dor... No barco em que navego,
sem bússola, sem leme, louco e cego,
vou procurar inexistentes rotas.

Ó meu veleiro doido, sem governo,
a caminho, talvez, do céu, do inferno,
sobre espumas e asas de gaivotas.


Fernanda de Castro

Claridade violeta violenta
na face torturada

Indignação raivosa
e afogada
em amarelo fulvo e fosco
de surpresa e de roxo desencanto

Vem-lhe da grade um fio
vermelho vivo
que sinuoso corre pelo rosto

e ao canto da boca morta
um grosso empasto de branco
sujo de moscas e de pranto

Mário Dionísio

Consciência



Cumpro-me
na medida possível das minhas fronteiras.
Consciente
cavalgo a noite secular
e marginal
invocando santos por empréstimo.

Lúcido
sonho com campos de lírios
distantes e intangíveis.
Consome-se, enfim, a dialéctica insuflada
e permanecem em mim - mudas e estáticas -
as vernáculas sabedorias
dos confins da Terra


Armindo Caetano de Sousa
Moçambique

12.3.09

Chove insistentemente!




Chove insistentemente
com a persistência bruta
das coisas tropicais...

Jamais
consigo identificar-me com a chuva
nesta minha África abandonada.

Todo o instante é fugaz, é nada
perdido no oceano dos desejos
e ansiedades.

Possa a verdade
ainda um dia vir à tona da água
e sejamos nós, então, realidade
mesmo à custa da nossa mágoa.

Orlando de Albuquerque

Vem, oh noite sombria




Vem, oh noite sombria, e revolvendo
O longo açoite, que à carreira acende
As fuscas Éguas, sobre a terra estende
De sombras carregado o manto horrendo:

Vem: e as brancas papoilas espremendo,
Em letárgico sono os mortais prende;
Que a minha bela Aglaia hoje me atende,
A meu amor mil glórias prometendo.

Se às minhas vozes dás benigno ouvido,
Encobrindo com teu escuro manto
Os suaves delírios de amor cego;

Imolar-te prometo agradecido
Um negro galo, que em contínuo canto
Se atreve a perturbar o teu sossego.


António Dinis da Cruz
(sec. XVIII)
Epigrama nº 3

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Mutilados jardins e primaveras abolidas
abriram seus miraculosos ramos
no cristal em que pousa a minha mão.

(Prodigioso perfume!)

Recompuseram-se tempos, formas, cores, vidas...

Ah! mundo vegetal, nós, humanos, choramos
só da incerteza da ressurreição.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)
Vida

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- Mãe! O mundo é mau,
Torna a flor num lodo
E um pássaro num verme,
E eu não sabia...

- Filha! Semeia flores no lodo,
Empresta o teu canto ao verme.
Se as tuas mãos continuarem puras
E meigo o teu coração,
Acredita que o mundo é belo.
E saberás!

Matilde Rosa Araújo

10.3.09

Circumnavegação




Em volta da flor fez
a abelha
a primeira viagem
circumnavegando
a esfera


Achado o perímetro
suicidou-se, LÚCIDA
no rio de pólen
descoberto.



Ana Paula Tavares
oh alambique...


oh alambique
de saudade

destilando
álcool de poesia
pára pára

oh alambique
de saudade

Arlindo Barbeitos (poeta angolano)
A Queda

Golden Touch I Art Print by Sarah Latham

E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir... Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de ouro,
Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro á mingua, de excesso.

Alteio-me na côr à fôrça de quebranto,
Estendo os braços de alma - e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra - em nada me condenso...
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.

Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
- Vencer ás vezes é o mesmo que tombar -
E como inda sou luz, num grande retrocesso,
Em raivas ideais, ascendo até ao fim:
Olho do alto o gêlo, ao gêlo me arremesso...

. . . . . . . . . . . . . . .

Tombei...
E fico só esmagado sobre mim!...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

9.3.09

Há rumor de tempo e vestígios de lodo



Há rumor de tempo e vestígios de lodo
na paisagem velha sob as telhas intactas.
Destaca-se a transparência da memória
no fundo antigo de um frasco de bocal
onde a cadência do vidro continua lenta
imutável como a poeira dos móveis
intacta como as telhas da paisagem
intocável como a planta de vidro
silábica como o riso da crença
nas tábuas do sótão
templo do medo.


Ana Margarida Falcão

Poder, Amigo

A Rui de Noronha

Poder, Amigo
chamar-me irmão na tua dor
já que não o posso ser
na mesma cor;

Ja que um destino diferente
e os anos,
Puseram longas, infinitas margens
entre as nossas vidas
afastadas...

Tu, lá no último Sonho
onde a verdade existe em cada um
como um sangue puro,
como uma lua natural.
E eu
ainda nesta luta
de viver
sofrendo
o mesmo mal.

Este malfeito destino
desde meus sonhos primeiros
de menino;
este mal de chorar sempre
a dor comum dos desgraçados
e ter lágrimas ainda
para os nossos sonhos
destroçados...

Esta mal
só mal para o mundo
a nossa única essência de viver
e contar
diversamente
a mesma eterna agonia...
Este mal que vem a ser
a poesia...

Deixa-me, pois, Amigo
(Diante qualquer noite deserta
em que o silêncio
e a sonolência de tudo
seja para nós
a única porta inteiramente aberta
e o nosso altar)
ficar contigo um só instante,
- apenas o bastante
para te Amar!

E poder, Amigo,
chamar-me irmão da tua dor
já que não o posso ser
na mesma cor...


Victor Matos e Sá
Moçambique

8.3.09

Bailarina negra



A noite
(Uma trompete, uma trompete)
fica no jazz

A noite
Sempre a noite
Sempre a indissolúvel noite
Sempre a trompete
Sempre a trépida trompete
Sempre o jazz
Sempre o xinguilante jazz

Um perfume de vida
esvoaça
adjaz
Serpente cabriolante
na ave-gesto da tua negra mão

Amor,
Vênus de quantas áfricas há,
vibrante e tonto, o ritmo no longe
preênsil endoudece

Amor
ritmo negro
no teu corpo negro
e os teus olhos
negros também
nos meus
são tantãs de fogo
amor.


António Jacinto (poeta angolano)

Maternidade



A dor consciente da tua concepção
não cabe nos limites
atrofiados de todos os votos
do Mundo.
mas cresce
Embora inconsequente.

Ora somos profetas
de falasa boas novas,
distribuindo benesses
aos quatro ventos.

Entanto
permanecemos em concha
e subreptícios
velamos por nós mesmos
impávidos e surdos.

E cavalgamos no tempo
distantes.
De palavras surdas
arquitectamos o nosso mundo.
Batemo-nos, frenéticos,
e cairemos exaustos.


Armindo Caetano de Sousa
Moçambique

Vem contar-me o teu destino, irmão





Vem contar-me o teu destino, irmão.
Vem apontar-me no teu corpo
as revoltas
que o inimigo plantou.

Vem dizer-me: «Aqui
as minhas mãos foram esmagadas
porque defenderam a terra
que lhes pertencia.

«Aqui o meu corpo foi torturado
porque recusou curvar-se
ao invasor.

«Aqui a minha boca foi ferida
porque ousou cantar
a liberdade do meu povo.»

Vem contar-me o teu destino, irmão.
Vem dizer-me os sonhos de revolta
que tu e teus pais e teus avós
alimentaram
em silêncio
em noites sem sombras
próprias para amar.

Vem dizer-me esses sonhos feitos
guerra,
os heróis que já nasceram,
a terra reconquistada,
as mãos que enviaram
sem tremer
os seus filhos para a luta.

Vem contar-me tudo isto, irmão.
Eu depois vou construir palavras simples
Que mesmo as crianças compreendam,
que entrem em todas as casas como o vento,
que caiam como brasas
na alma do nosso povo.

Na nossa terra
as balas começam a florir.

Jorge Rebelo
Moçambique

Que fazer, Mãe?





Que fazer, Mãe?
das almas tremendamente destruídas
na podridão ignóbil
do sofrimento

Que fazer, Mãe
das totrturas terrivelmente particadas
sobre o corpo negro
do teu filho amado?

Que fazer, Mãe
dos insultos imundos
infamemente perpetrados
no coração d'África sensível?

Que fazer, Mãe
das violações selváticas
horrivelmente suportadas
pelas belas virgens, filhas tuas?

Que fazer, Mãe
de toda a baixeza humana
camuflada no civismo cínico
despejada no seu coração?

Armando Guebuza

Quando a hora chegar...



A hora
que anda na angústia forte da esperança
e na alegria trágica e cansada
de não esperar.

Quando a hora chegar...

Essa hora
com bandeiras, bandeiras e bandeiras
e multidões vibrantes a passar
para dizer aos homens do passado,
para dizer aos homens do futuro,
para dizer presente
e continuar.

Quando a hora chegar...

Há crianças sem pai,
há crianças sem mãe,
que hão-de por risos novos sobre a boca
que ainda não tem pão;
que hão-de pôr brilhos novos sobre os olhos
que ainda vão chorar;
que hão-de pôr forças novas no combate
que vai recomeçar.

Quando a hora chegar...

Cimentada com lágrimas e sangue
e dor
e ansiedade
e medo de a perder...

Ah!, levem-me também,
eu vou também!
( Eu quero ter esta certeza
se não sobreviver!)...

Cochat Osório
Angola