Não me procureis
onde não existo
Eu vivo
curvado sobre a terra
seguindo o caminho inscrito
pelo chicote
nas minhas costas nuas
Eu vivo
nos portos
alimentando as fornalhas
movendo as máquinas
pelo caminho dos homens
Eu vivo
no corpo de minha mãe
vendendo a minha carne
o meu sexo
não é para amar
Eu vivo
perdido nas ruas
de uma civilização
que me esmaga
com ódio
sem pena
E se é a minha voz que se ouve
e se sou eu que canto ainda
é porque não posso morrer
Mas só a lua escuta a minha dor
Não
não me procureis
nos grandes salões
onde não estou
onde não posso estar
Aqui na América
Sim
eu estou também
eu estou
Mas Lincoln
foi assassinado
e eu
eu
eu
todos os dias sou linchado
O comboio especial
rolando vertiginosamente na estrada
é ouro
é sangue
que eu verti através dos séculos
Porquê
pois
procurar-me na Glória de Beethoven
se eu estou aqui
erguendo-me
nos milhões de ais
que se elevam dos porões
em todos os cais
se eu estou aqui
bem vivo
na voz de Robeson e Hughes
Césaire e Guillén
Godido e Black Boy renascidos
nas entranhas da terra
transformando com o meu corpo
os alicerces da vida
se eu estou aqui
soma consciente e firme
dos homens
que compuseram o poema
da vida contra a morte
do fim da noite
e do começo do dia.
Marcelino dos Santos
Moçambique
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