30.12.07


A cal e canto


Baila palhaça de cabra,
incha má noite sem espera,
estrela de cem pontas desenlaça-te.
Tanto o ganhador como o vencido
não passam de granizo
a que se segue um sol.

De dentro uma derradeira voz sem som
pela última vez chama e cai
na casa de banho. Desaparecia
e nem a dor final
contra a esquina de azulejo sentia.
O pé esfacelado, a rótula partida,
o lado aberto por uma costela,
a electricidade extingue-se de repente.
Levou tudo o que de fora se esfarela
para o chão que neutramente
é a sua nova moradia.

Sobre cada cabeça que passa,
ao lado de cada esgar e de cada gesto,
vida acompanhada pela aura da morte.
Tansportes, automóveis, motos
seguem para lugares que ninguém vê,
blocos enfaixados no barulho dos outros andares,
arrabaldes torcionários, a delapidação
cobre-os com sudários sujos.
A vida e a aura da morte, o desamparo
de pequenas camas de hospital,
lugares solitários onde se ocupam de nós,
seres de empobrecimento e de terror,
mal sabemos que não regressamos nunca.

Não a representação do que está
diante de mim, mas a expressão
que me destina. Segurava-lhe no braço,
envolvia com manchas de tintura
golpe arrancado. Cada gota de sangue
retida na compressa. Não basta condenar
o que se toma consciente
através de um pensamento feroz,
é melhor a intranquilidade
com as suas traves sem momento
para nos endurecer a humanidade.

Todas estas noites em que não durmo,
o carvão em redor dos olhos,
o gesso do sangue nas pálpebras
e os ruídos incolores que sobrevoam
para se despenharem dentro de um torno:
o cérebro que deixa de ver. Tudo
se funde em desarmonias que negam o teu olhar
cinzento à espera de um compromisso.
Ficam soterradas, tiram guelras
que vai o ar rasgar em canais,
em vias de aniquilamento.

A vontade hesita no desdém
da descrição, demora
além do que vai narrar. Farrapos
no gancho pronto a recolher
ossos esboroados, a infecção
que doía na trincheira
dessa vala comum da noite diária
sobre a auto-estrada urbana.
Põe no mais alto esses cantares que do passado
descem digitalizados nos discos compactos
e ocupam a fermentação do tráfico.

A sinceridade despedaçada não é
uma ética da devastação
para o que de mim permanece de pé.
Mas uma rugosa ruína que nos é comum,
um lixo donde tem de erguer-se
o que nos faz viver. Como cantava
Lucho Gatica na canção de Briz,
Mi suerte necesita de tu suerte.
Olhos cinzentos, que ninguém já diz
quanto eu os procurava.

Fecho-me e vejo tudo amarelo.
Ouço os passos que mais temo
e nem o quarto cerrado me esconde o dia,
é talvez a despedida que chega
embora eu escreva a poesia.
Enquanto escuto cada laje que range
sei que na linfa circulam entre célula e derrota
torções que podem reprender-me
ao que me arrancavam na anestesia.
Juntar palavras ou julgar-me sorte morta
é a mesma ironia.

Uma vez mais aqui estou entregue
ao cego, ao vago, à récua dos vocábulos.
Não vou vergar-me a este peso que nada consegue
mas eu procuro. Se a noite acorrentasse
a um muro a minha cabeça, desse partida
a todo o meu escuro no seu negrume,
num rebentamento me cortasse a pouca vida
de repente como se espalha o estrume,
ah palhaça de cabra,
eu seria um feliz vasilhame de tara perdida.


Joaquim Manuel Magalhães