7.5.08


Fim de noite em ripa


No fim do jantar, lendo poesia
e discutindo literatura (o que se aceita
depois da
sobremesa...) começou a chover. Numa
aldeia, quando chove, o barulho
da água ocupa o seu lugar próprio:
o príncipio (e o fim)
do mundo. Por isso, a chuva
entrava na conversa, pelos fragmentos
da frase que lhe deixávamos,
enquanto as sombras se passeavam
por entre imagens, evocações
de gente viva ou morta, e
até recordações de viagens que,
naquele canto da umbria, pouco
mais eram do que pedaços de conversas
irreais. É que, numa aldeia,
o mundo é outra coisa: longe
da vida, como se o único centro fosse
a casa, e nada houvesse para
além dela. Pode falar-se de dante,
imaginar-se o caminho entre o inferno
e o paraíso, ouvir o trovão
que dá uma súbita presença ao mistério
do espaço, e nada pode fazer com que se
esqueça isto: a mesa na cozinha, massas,
pão de queijo,
o vinho caseiro (deu para esvaziar
duas garrafas, e depois beber
a aguardente de ervas, com o café),
a matéria elementar da noite. Porém,
quando o claudio resolveu tirar
uma fotografia de grupo, e pôs
a máquina no automático, o flash
disparou ao mesmo tempo que o último
relâmpago do temporal. Assim,
duas substâncias luminosas se cruzaram,
a de dentro e a de fora, fixando
cada um de nós. Quando saímos,
depois, e olhámos para o céu onde as nuvens
já desapareciam, perguntei-me
a quem poderia pedir a fotografia
que a noite nos tirou?, que mão disparou
esse relâmpago que me obrigou a olhar
para o lado contrário à objectiva
do fotógrafo?, que revelação
ignoro, que só a treva esconde
por entre restos de névoas e
estrelas?


Nuno Júdice