9.4.09

Poema da infância distante


ao Rui Guerra

Quando eu nasci na grande casa à beira-mar,
era meio-dia e o sol brilhava sobre o Indico.
aivotas pairavam, brancas, doidas de azul,
Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda
arrastando as redes pejadas.
Na ponte, os gritos dos negros dos botes
chamando as mamanas amolecidas de calor,
de trouxa à cabeça e garotos ranhosos às costas
— soavam com um ar longínquo,
longínquo e suspenso na neblina do silêncio.
E nos degraus escaldantes,
mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas.

Quando eu nasci...
— Eu sei que o ar estava calmo, repousado
e o sol brilhava sobre o mar.
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei, nem sem porquê.
Ah, mas pela vida fora,
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta,
E o sol nunca mais me brilhou como nos dias primeiros
da minha existência,
embora o cenário brilhante e marfim da minha infância,
constantemente calmo como um pântano,
tenha sido quem gritou meus passos de adolescente,
— meu estigma, também.
Mais, mais ainda: meus heterogéneos companheiros de infância.

Ah, meus companheiros, acocorados na roda maravilhada
e boquiaberta Karingana wa Karingana
das histórias da cocuana do Maputo,
em crepúsculos negros e terríveis de tempestade
(o vento uivando no telhado de zinco,
o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda
e casarinas gemendo, gemendo,
oh consolavelmente gemendo,
acordando medos estranhos, inexplicáveis
nas nossas almas cheias de xitucumulucumbas, desdentadas
e reis Massingas virados gibóias...)
Ah, meus companheiros semearam esta insatisfação
dia a dia mais insatisfeita.
Eles me encheram a infância do sol que brilhou
no dia em que nasci.
Com a sua camaradagem luminosa, impensada,
sua alegria radiante,
seu entusiasmo explosivo diante
de qualquer papagaio de papel feito asa
no céu dum azul multicor,
sua lealdade em código, sempre pronta,
— eles encheram minha infância arrapazada
de felicidade e aventuras inesquecíveis.

Se hoje o sol não brilha como no dia
em que nasci, na grande casa
à beira-mar do Índico,
não me devo adormecer na escuridão.
Meus companheiros me são seguros guias
na minha rota através da vida tornada túnel.
Eles me provaram que "fraternidade" não é mera palavra bonita
escrita a negro no dicionário da estante:
Meus companheiros de pescarias
por debaixo da ponte,
com anzol de alfinete e linha de guita,
meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças,
companheiros nas brincadeiras e correrias
pelos matos e praias da Catembe,
unidos todos na maravilhosa descoberta dum ninho de tutas,
na construção duma armadilha com nembo,
na caça às gala-galas, e beija-flores,
nas perseguições aos xitambelas sob um sol quente de Verão...
— Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada,
solta e feliz:
meninos negros e mulatos, brancos e indianos,
filhos de mainato, do padeiro,
do negro do bote, do carpinteiro,
vindos da miséria do Guachene
ou das casas de madeira dos pescadores,
meninos mimados do posto,
ai meninos frescalhotes dos guarda-fïscais da Esquadrilha;
— irmanados todos na aventura sempre nova
dos assaltos aos cajueiros das machambas,
no segredo das maçalas mais doces,
companheiros na inquieta sensação do mistério
da «Ilha dos navios perdidos»
— onde nenhum brado fica sem eco.

Ensinaram-me que "fraternidade" é um sentimento belo,
e -possível,
mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante
são tão diferentes.

Por isso eu CREIO que um dia
o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Indico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.
E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noites de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.

Um dia, .
o sol inundará a vida.
E terá como que nova infância raiando para todos...


Noémia de Sousa