28.4.09

Gosto desses dias molhados




Gosto desses dias molhados, de chuva miúda, de chuva fina
chuva boa,
de névoa, de garoa,
em que a gente não sente a obrigação de ser feliz,
e fica em si mesmo à-toa...

Basta a gente ficar onde está, nada mais, é tudo que se quer,
vendo a chuva cair, a chuva caindo,
ficar sentado, acomodado, num lugar qualquer
ouvindo o rumor da chuva, ouvindo.
ouvindo.

Dias que não pedem nada, que não exigem nada, que não incomodam,
em que a gente fica em casa, sem necessidade
de companhia, de ter alguém,
basta essa sensação que agora é minha...
Oh, a paz, essa felicidade impessoal, perfeita
que consegue ser feliz sozinha...

( Como doem certos dias de sol, de tanta alegria!)
Dias exigentes que gritam por felicidade, que reclamam vida e emoção
e que encontram às vezes a gente tão só
no meio de tanta gente,
tão só e desprevenido
sem saber que fazer - meu Deus! - do coração!

Dias de sol que derrubam a gente,
que maltratam a gente, passam por cima,
da gente
sem piedade,
tontos, deslumbrados,
e se vão a cantar uma felicidade
por todos os lados,
uma felicidade de bola de cristal, inexistente,
sem ver que ficamos no chão, como indigentes
abandonados...

Ah! gosto desses dias assim, de olhos embaciados, cinzentos,
de chuvinha mansa, de chuvinha boa,
que não perturbam o coração
que descansam a vista;
que, no máximo, esperam que a gente se sinta bem,
e nos deixam em paz, sem nada, nem ninguém,
- só isto!

Nesses dias, humilde e só, um pouco egoísta
talvez,
- existo...


J. G. De Araújo Jorge
Brasil
Uma Mulher e o Beberibe


Ela se imove com o andamento da água
(indecisa entre ser tempo ou espaço)
daqueles rios do litoral do Nordeste
que os geógrafos chamam «rios fracos».
Lânguidos; que se deixam pelo mangue
a um banco de areia do mar de chegada;
vegetais; de água espaço e sem tempo
(sem o cabo por que o tempo a arrasta).

*

Ao rio Beberibe, quando rio adolescente
(precipitadamente tempo, não espaço),
nada lhe pára os pés; se rio maduro,
ele assume um andamento mais andado.
Adulto no mangue, imita o imovimento
que há pouco imitara dele uma mulher:
indolente, de água espaço e sem tempo
(fora o do cio e da prenhez da maré).


João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)

27.4.09

Dai-me rosas e lírios,


Dai-me rosas e lírios,
Dai-me flores, muitas flores,
Dai-me flores, logo que sejam muitas...
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
Em me dardes muitas flores,
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço
Que me deis flores...
Sejam essas as flores que me deis...
Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio,
Sob o céu cheio de sol!
A minha agonia da realidade lúcida!
Desejo de chorar absolutamente como uma criança
Com a cabeça encostada aos braços cruzados em cima da mesa,
E a vida sentida como uma brisa que me roçasse o pescoço,
Estando eu a chorar naquela posição.
O homem que apara o lápis à janela do escritório
Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto banal.
Haver lápis e aparar lápis e gente que os apara à janela, é tão estranho!
É tão fantástico que estas cousas sejam reais!
Olho para ele até esquecer o sol e o céu.
E a realidade do mundo faz-me dor de cabeça.
A flor caída no chão.
A flor murcha (rosa branca amarelecendo)
Caída no chão...
Qual é o sentido da vida?!


Álvaro de Campos

Nascimento




As frases bonitas
quando encontram
os actos
maravilhosos
nasce o amor.

Domi Chirongo

24.4.09

um poema



de amor se faz amor
de nada mais resulta amor
que amor se faz de amor
de nada mais.
resulta amor de amor
que amor se faz de nada.
mais resulta que amor de amor
se faz amor de nada.
mais.


E. M. de Melo e Castro

23.4.09

Êxtase


Deixa-te estar embalado no mar nocturno
onde se apaga e acende a salvação.
Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma:

em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,
e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.
Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.

Deslizam os planetas, na abundância do tempo que cai.
Nós somos um ténue pólen dos mundos...

Deixa-te estar neste embalo de água geando círculos.
Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras
ambíguas.

Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.

Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos...

Cecília Meireles (poetisa brasileira)

Anti-evasão



Pedirei
Suplicarei
Chorarei

Não vou para Pasárgada

Atirar-me-ei ao chão
E prenderei nas mãos convulsas
Ervas e pedras de sangue

Não vou para Pasárgada

Gritarei
Berrarei
Matarei

Não vou para Pasárgada


Ovídio Martins
Cabo Verde

22.4.09

Lentos nos Fomos Esquecendo

Old World Art Print by Edwin Douglas

Lentos nos fomos esquecendo. Quando
o tempo da velhice nos foi vindo
a tez apareceu amorenada de anos
e afeita ao espírito.
A lavoura sabia aos nossos passos.
Até os desperdícios
iluminavam debilmente o armário
e a penumbra dos rincões escritos.
Mas nós só estávamos
em nos havermos esquecido.
Ou, às vezes, a aura do trabalho
quase fazia com que na mesa o sítio
aparecesse coroado de anos
sobre a mão a mover-se pelo seu próprio espírito.

Fernando Echevarría (poeta timorense)

20.4.09

Contemplação azul


Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trémulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?


Fernando Pessoa

19.4.09

O Poema em que te Busco é a Minha Rede


O poema em que te busco é a minha rede,
Bem mais de borboletas que de peixes,
E é o copo em que te bebo: morro à sede
Mas ainda és margarida e não-me-deixes
E muito mais, no enumerar das coisas:
Cordão de laço e corda de violino,
Saliva de verdade nalgum beijo,
E poisas
Como ave de aço em pão se não te vejo.
Mas onde mais real do céu me avisas
É nas tuas camisas,
Calças de cor no catre bem dobradas.
E és os meus pensamentos, se te ausentas,
Meu ciúme escuro como vinho em toalha;
E o branco circular das horas lentas
Que um perfurante amor lembrado espalha.
Põe o penso no velo intercrural
Com um atilho vertical:
Rosa coberta esquiva
Quer a mão do desejo, quer
O conhecido cravo da agressão
Que estendo às tuas formas de mulher,
Com esta soma e verbal percaução
De um fónico doutor de Mompilher.

Vitorino Nemésio
Terra


Deusa dos olhos volúveis
pousada na mão das ondas:
em teu colo de penumbras,
abri meus olhos atónitos.
Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.

Mamei teus peitos de pedra
constelados de prenúncios.
Enredei-me por florestas,
entre cânticos e musgos.
Soltei meus olhos no eléctrico
mar azul, cheio de músicas.

Desci na sombra das ruas,
como pelas tuas veias:
meu passo — a noite nos muros —
casas fechadas — palmeiras —
cheiro de chácaras húmidas —
sono da existência efémera.

O vento das praias largas
mergulhou no teu perfume
a cinza das minhas mágoas.
E tudo caiu de súbito,
junto com o corpo dos náufragos,
para os invisíveis mundos.

Vi tantos rostos ocultos
de tantas figuras pálidas!
Por longas noites inúmeras,
em minha assombrada cara
houve grandes rios mudos
como os desenhos dos mapas.

Tinhas os pés sobre flores,
e as mãos presas, de tão puras.
Em vão, suspiros e fomes
cruzavam teus olhos múltiplos,
despedaçando-se anónimos,
diante da tua altitude.

Fui mudando minha angústia
numa força heróica de asa.
Para construir cada músculo,
houve universos de lágrimas.
Devo-te o modêlo justo:
sonho, dor, vitória e graça.

No rio dos teus encantos,
banhei minhas amarguras.
Purifiquei meus enganos,
minhas paixões, minhas dúvidas.
Despi-me do meu desânimo —
fui como ninguém foi nunca.

Deusa dos olhos volúveis,
rosto de espelho tão frágil,
coração de tempo fundo,
— por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.

E esse foi o meu estudo
para o ofício de ter alma;
para entender os soluços,
depois que a vida se cala.
— Quando o que era muito é único
e, por ser único, é tácito.

Cecília Meireles (poetisa brasileira)
Mascarim entre as musas



Se queres passar por mim e ficar vendo
os abraços possíveis que há em nós
Se queres a voz também sem ficar sendo
como quem passou por mim sem me ter visto

Vou ao baile baile
não sei o que visto
dá-me o braço braço
com todo o calor

Se alguma coisa falta em tua mão
que te faça as passadas sem temor
e o coração se faz sofreguidão
daquilo de que julgas que desisto

Vem à roda roda
sapato amarelo
levo a voz sardenta
de polichinelo

Se passas e não vês o íntimo clamor
ou não vês mais que gritos sem sentido
nas tantas faces do poeta na tormenta

Mascarim desmaia
tapo a boca Oh
Levas um vestido
sem corpo nem saia

Vai lá ao fundo e verás lá bem no fundo
e bem escondido onde a vida se acalenta
o sentido da hora e o amor do mundo

Papagaio pintado
diz-me lá quem sou
tenho entrada franca
vou de pierrot


Mário Dionísio
Madorna de Iaiá



Iaiá está na rede de tucum.
A mucama de Iaiá tange os piuns,
Balança a rede,
Canta um lundum
Tão bambo, tão molengo, tão dengoso,
Que Iaiá tem vontade de dormir

Com quem?

Rem-rem.

Que preguiça, que calor!
Iaiá tira a camisa,
Toma aluá
Prende o cocó,
Limpa o suor
Pula pra rede.

Mas que cheiro gostoso tem Iaiá!
Que vontade doida de dormir,,,

Com quem?

Cheiro de mel da casa das caldeiras!
O saguim de Iaiá dorme num coco.

Iaiá ferra no sono
Pende a cabeça,
Abre-se a rede
Como uma ingá.

Para a mucama de cantar,
Tange os piuns,
Cala o ram-rem,
Abre a janela,
Olha o curral:
- um bruto sossego no curral!

Muito longe uma peitica faz si-dó....
Si-dó.....si-dó......si-dó....

Antes que Iaiá corte a madorna
A moleca de Iaiá
Balança a rede,
Tange os piuns,
Canta um lundum
Tão bambo,
Tão molengo,
Tão dengoso,
Que Iaiá sem se acordar,
Se coça,
Se estira
E se abre toda, na rede de tucum.

Sonha com quem?

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

18.4.09

Tempo é de procurar. não de investir



3

tempo é de procurar. não de investir
por tardados caminhos sem parança,
do soletrar apenas do sentir,
do resguardar das mãos em sua ousança.
tempo de naves indo, sem curar
dos riscos que à tomada se prevêm
e recobrar do vento o seu andar
ou impelir os rios que se retêm.
tempo de (retornando à boca) se embeber
do sumo doutra e, exultante,
da cascavel da língua pretender
o golpe mais certeiro ou mais errante.
tempo de embalos, sim, se se quiser
eternizar a alba a cada instante.


Hugo Santos
Canção para Joana Maluca



Para eles
eras unicamente a suja
a piolhosa
colhendo beatas
á porta do Nacional

E lestos
enquanto o sol brincava
no ombro alcantilado
das encostas
seus rafeiros te lançavam
de dentro dos quintais.

Joana
eles sabiam tua mão
e a temiam
(tua mão espinho-de-piteira
tua mão ngana-acusadora-mesmo
ah! kikata kikata muene)
até quando
estendida tua mão
pedia.

Na escudela da noite
entre cassuneiras e muxixis
uma pobre escura flor
adormecia...

João Maria Vilanova (poeta angolano)

17.4.09

Serenata



Caem à noite pedras
sobre o templo
do silêncio
de espaço
um ruído de automóvel
um toque de sinos de uma igreja
monotonia diurna que não quebra
a queda das pedras
no silêncio

De dia o templo é
noite
e à noite há o silêncio
o esgaravatar de uma gaivota em fogo
o estalar de folhas novas
numa árvore
sabendo a vício este cigarro
de cheira a seiva dos pinheiros

E as pedras caem
como chuva ou neve
todas as noites que noites
já são poucas

E a seiva pedra sobre o templo
e a gaivota
o vício
a folha
quebrando este silêncio

Onde as guitarras?
Os quissanges acontecem longe

Manuel Rui (poeta angolano)
Sempre Mar



Mar vezes quando o sol nos enche os olhos
e no promete mais vezes no olhar
fecham-se os olhos no rolar do tempo
de ver andar o antes e o depois
numa miragem que se chama mar
Mar prometendo mais vezes de vermelho
luz transformada num redondo
esquivo
um sol de devagar como descendo
da guerra sem estrondo
na lúcida mutação
de sempre mar.

E a tarde é todo um fim
um beijo tão molhado despenteado
como uma boca a tua boca à beira-
mar depois das ondas e diferentes
princípio de um começo como a noite
antes de o sol se adormecer aquático
formam-se linhas como os pensamentos
linhas carícias que nos fazem ver
que entre os passos da areia e os nossos movimentos
há sempre um pôr-do-sol
de um sol para nascer.


Manuel Rui (poeta angolano)


A Borboleta



Era uma vez uma menina
Tão cheiinha de calor
Abanava um abaninho
Como se fosse uma flor...

Como se fosse uma flor
Uma rosa ou uma violeta
E em volta dela voasse
Feliz uma borboleta.

E veio a mãe veio o pai
E disseram: Filha minha!
Não te canses a abanar
Ligamos a ventoinha!

Veio o avô veio a avó
Com um ar consternado:
Não te canses a abanar
Pomos o ar condicionado!

Param as mãos da menina
Uma rosa ou uma violeta
E em suas mãos pequeninas
Adormece a borboleta...


Matilde Rosa Araújo

16.4.09

Tenho saudades



Tenho saudades
do tempo em que
o mundo era pequeno.

Era só ali.

E eu cabia nos ramos
das acácias

e não sabia do longe que existia.

só do perto
que sentia.


Andrea Paes
Moçambique

Bilhete para a Lua



nascer como nasci não é nascer,
é dobrar a vida,
não se rasga a vida para nascer,
antecipa-se o fim que a vida é um dolo

nascer nas horas da lua
não é nascer
nascer como nascer é transportar
as viscosidades

havia uma partida
e uma estátua havia a lua

havia coisas que nos fazem nascer como não nascer
redobrar o amaro

ver assim a vida ver assim o mundo
e as primeiras palavras serem escritas

como nascer é partir para a Lua
como ver a luz é ter na luz a versão
dos avessos


Norberto do Vale Cardoso

15.4.09


Alva


CreationBabz

Deixei meus olhos sozinhos
nos degraus da sua porta.
Minha boca anda cantando,
mas todo o mundo está vendo
que a minha vida está morta.

Seu rosto nasceu das ondas
e em sua boca há uma estrela.
Minha mão viveu mil vidas
para uma noite encontrá-la
e noutra noite perdê-la.

Caminhei tantos caminhos,
tanto tempo e não sabia
como era fácil a morte
pela seta do silêncio
no sangue de uma alegria.

Seus olhos andam cobertos
de cores da primavera.
Pelos muros de seu peito,
durante inúteis vigílias,
desenhei meus sonhos de hera.

Desenho, apenas, do tempo,
cada dia mais profundo,
roteiro do pensamento,
saudade das esperanças
quando se acabar o mundo...


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

14.4.09

Um dia a menina olhou o álbum de retratos


Pela fresta do céu
Desceu um pensamento nos olhos da menina
Que folheava o álbum dos antepassados.
Suas mãos pararam a página com o retrato do homem de croisé
Que não era seu pai nem seu avô.
Era o irmão de leite de seu tio
Que havia se suicidado por amor.
As pupilas da menina passearam na boca do retrato, desgrenharam o penteado,
Passaram na curva da orelha e por baixo do plastron
Ela sentiu o perfume guardado há tanto tempo.
Puxou com os olhos o álbum bem para dentro do seu corpo.
Os seios gritaram em diâmetro, se turgindo,
E ela esfregou, com um movimento de cabeça,
As pontas pesadas da cabeleira em sua nuca.
A menina casou com um homem fora do álbum
Mas seu primeiro filho era igual ao retrato
Do irmão de leite de seu tio
Que havia se suicidado por amor,
E que seus sentidos ressucitaram e guardaram
Para imprimir formas desconhecidas nos presentes
E amar a memória dos ausentes.


Adalgisa Nery
Brasil

13.4.09


Os antepassados usam o espelho



Os antepassados usam o espelho
Todas as noites

Eh! Olha a aldeia dos nossos antepassados
A verdadeira aldeia sombreada de palmeiras
Que nos obrigaram a abandonar
Eh! Os antepassados
Eh! Os nossos antepassados
Mais as aldeias que nos obrigaram a abandonar
As aldeias sombreadas de palmeiras
Eh! O conjunto tão bonito das nossas aldeias
Eh! A aldeia tão bonita dos nossos antepassados
Que nos obrigaram a abandonar

Os antepassados usam o espelho todas as noites


Ana Paula Tavares (poetisa angolana)

12.4.09

imersa em sereno de lusco-fusco



imersa
em sereno de lusco-fusco
e
suspensa em vazio

São-Tomé

carrocel de montanhas
carregador de nuvens
transportados de sonhos
irrompendo
de abismo de espuma
e
sumindo
em precipício de bruma

São-Tomé

suspensa em vazio
e
imersa em sereno de lusco-fusco


Arlindo Barbeitos (poeta angolano)
Rodopio

Sunny Sunflower I Photographic Print by Nicole Katano

Volteiam dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas tôrres de marfim.

Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sois;
Há promontórios, farois,
Upam-se estátuas de herois,
Ondeiam lanças e mastros.

Zebram-se armadas de côr,
Singram cortejos de luz,
Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor...

Cristais retinem de mêdo,
Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços...
Planos, quebras e espaços
Vertiginam em segrêdo.

Luas de oiro se embebedam,
Rainhas desfolham lirios;
Contorcionam-se círios,
Enclavinham-se delírios.
Listas de som enveredam...

Virgulam-se aspas em vozes,
Letras de fogo e punhais;
Há missas e bacanais,
Execuções capitais,
Regressos, apoteoses.

Silvam madeixas ondeantes,
Pungem lábios esmagados,
Há corpos emmaranhados,
Seios mordidos, golfados,
Sexos mortos de anseantes...

(Há incenso de esponsais,
Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas -
Um lenço, fitas, dedais...)

Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Referências, nostalgias,
Ruínas de melodias,
Vertigens, erros e falhas.

Há vislumbres de não-ser,
Rangem, de vago, neblinas;
Fulcram-se poços e minas,
Meandros, paúes, ravinas
Que não ouso percorrer...

Há vácuos, há bolhas de ar,
Perfumes de longes ilhas,
Amarras, lemes e quilhas -
Tantas, tantas maravilhas
Que se não podem sonhar!...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

11.4.09

Orfandade

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A menina de preto ficou morando atrás do tempo,
sentada no banco, debaixo da árvore,
recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,
e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,
murmurou: «A MAMÃE MORREU».

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.
O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,
escutando na terra aquele dia que não dorme
com as três palavras que ficaram por ali.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)
Urgente

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Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a peda, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.

É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.

Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.

Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro.

Fernanda de Castro

Rumorejam águas idas



Rumorejam
águas idas
E a sede de estar
a ouvi-las
na outra face do espelho


Flor Campino

10.4.09

A harmonia inquieta



Traço um círculo, a luz perdida
do luar, ao redor do teu nome,
da memória do teu rosto ausente por
campos de férias, rios que já não
devolvem a minha imagem.

Escrevo-te cartas. As maçãs apodrecem
na cozinha. Deito-me a meio da tarde
para descansar de não ouvir a tua voz.
Compromissos para esquecer o que
chegará um dia sem sabermos a dor.

Pelas mãos a água corre,
a fronte inclinada quase toca
a harmonia quieta do lavatório.

Por momentos escuto o canto de
um pássaro na varanda,
antes de a buzina de um carro
me arremessar para o terror da manhã.


Jorge Gomes Miranda

9.4.09

Poema da infância distante


ao Rui Guerra

Quando eu nasci na grande casa à beira-mar,
era meio-dia e o sol brilhava sobre o Indico.
aivotas pairavam, brancas, doidas de azul,
Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda
arrastando as redes pejadas.
Na ponte, os gritos dos negros dos botes
chamando as mamanas amolecidas de calor,
de trouxa à cabeça e garotos ranhosos às costas
— soavam com um ar longínquo,
longínquo e suspenso na neblina do silêncio.
E nos degraus escaldantes,
mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas.

Quando eu nasci...
— Eu sei que o ar estava calmo, repousado
e o sol brilhava sobre o mar.
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei, nem sem porquê.
Ah, mas pela vida fora,
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta,
E o sol nunca mais me brilhou como nos dias primeiros
da minha existência,
embora o cenário brilhante e marfim da minha infância,
constantemente calmo como um pântano,
tenha sido quem gritou meus passos de adolescente,
— meu estigma, também.
Mais, mais ainda: meus heterogéneos companheiros de infância.

Ah, meus companheiros, acocorados na roda maravilhada
e boquiaberta Karingana wa Karingana
das histórias da cocuana do Maputo,
em crepúsculos negros e terríveis de tempestade
(o vento uivando no telhado de zinco,
o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda
e casarinas gemendo, gemendo,
oh consolavelmente gemendo,
acordando medos estranhos, inexplicáveis
nas nossas almas cheias de xitucumulucumbas, desdentadas
e reis Massingas virados gibóias...)
Ah, meus companheiros semearam esta insatisfação
dia a dia mais insatisfeita.
Eles me encheram a infância do sol que brilhou
no dia em que nasci.
Com a sua camaradagem luminosa, impensada,
sua alegria radiante,
seu entusiasmo explosivo diante
de qualquer papagaio de papel feito asa
no céu dum azul multicor,
sua lealdade em código, sempre pronta,
— eles encheram minha infância arrapazada
de felicidade e aventuras inesquecíveis.

Se hoje o sol não brilha como no dia
em que nasci, na grande casa
à beira-mar do Índico,
não me devo adormecer na escuridão.
Meus companheiros me são seguros guias
na minha rota através da vida tornada túnel.
Eles me provaram que "fraternidade" não é mera palavra bonita
escrita a negro no dicionário da estante:
Meus companheiros de pescarias
por debaixo da ponte,
com anzol de alfinete e linha de guita,
meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças,
companheiros nas brincadeiras e correrias
pelos matos e praias da Catembe,
unidos todos na maravilhosa descoberta dum ninho de tutas,
na construção duma armadilha com nembo,
na caça às gala-galas, e beija-flores,
nas perseguições aos xitambelas sob um sol quente de Verão...
— Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada,
solta e feliz:
meninos negros e mulatos, brancos e indianos,
filhos de mainato, do padeiro,
do negro do bote, do carpinteiro,
vindos da miséria do Guachene
ou das casas de madeira dos pescadores,
meninos mimados do posto,
ai meninos frescalhotes dos guarda-fïscais da Esquadrilha;
— irmanados todos na aventura sempre nova
dos assaltos aos cajueiros das machambas,
no segredo das maçalas mais doces,
companheiros na inquieta sensação do mistério
da «Ilha dos navios perdidos»
— onde nenhum brado fica sem eco.

Ensinaram-me que "fraternidade" é um sentimento belo,
e -possível,
mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante
são tão diferentes.

Por isso eu CREIO que um dia
o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Indico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.
E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noites de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.

Um dia, .
o sol inundará a vida.
E terá como que nova infância raiando para todos...


Noémia de Sousa

Epigrama nº 4





O choro vem perto dos olhos
para que a dor transborde e caia.
O choro vem quasi chorando
como a onda que toca na praia.

Descem dos céus ordens augustas
e o mar chama a onda para o centro.
O choro foge sem vestígios,
mas levando náufragos dentro.

Cecília Meireles (poetisa brasileira)

8.4.09

Falo das mãos das minhas próprias mãos


Falo das mãos das minhas próprias mãos
depostas abandonadas
sobre esta mesa desamparada e fria
em que me sento e sinto
o sangue contra o mármore contra o vento
que vareja o mar a praia a esplanada
minhas mãos quietas na minha inquietude
de serem estrelas caídas gestos parados
por dentro do silêncio que escorre lentamente
sobre os meus olhos sobre as veias sobre
todo o corpo como um manto indecifrável
são assim as tardes sem paisagem
quando as mãos se esquecem do nome das coisas
e calam o pulsar do sol do sal
nem a tua voz me faz companhia
não-há palavras para legendar os retratos ausentes
das molduras do tempo liquefeito
como este copo que agora tomo e bebo
para ver se as minhas mãos
ainda sabem ainda sentem
a emoção do vidro e o sabor da sede
que reflui do fundo desta tarde
de um Setembro fugaz à beira da vertigem.


António Arnaut

7.4.09

Soturnidades suspensas palpitavam no escuro



Soturnidades suspensas palpitavam no escuro
como pulsações sombrias de ngomas

Havia ecos de falas abafadas
Longínquos sons que o vento move
Cavando distâncias na distância
Fatais
como a queda livre de uma pedra.

E esfiavam-se vidas em murmúrios...

E havia olhos postos no caminho...

E eu sentia
que a marca dos meus passos
Calava vozes nas cubatas
Acordava silêncios no negrume.


Arnaldo Santos (poeta angolano)

Foi um dia delirante


Foi um dia delirante
a lua apareceu num instante
durante a criança admirada
e desapareceu logo a seguir
e a última mãe com filhos na cidade
foi pela mata descalça e devagar
sem dizer a ninguém
para ouvir sozinha o barulho do mar
só um bocadinho
e voltar a correr

era a coisa mais estranha
e fabulosa até aí
pela cidade completamente calma e branca
e o sol não se pôs nesse dia
nunca mais se falou nisto


Joaquim Castro Caldas

Quando




Quando os teus olhos absorvem
todas as cores da minha
mais íntima tristeza,
e compreendes e calas e prometes
um lugar qualquer na tua alma,
e a tua voz demora a regressar
ao neutro compromisso das palavras,

sei que as tuas mãos ajudariam
a limpar estas lágrimas antigas
por dentro do meu rosto.


Victor Matos e Sá
Moçambique

6.4.09

Lírica XVII



Amada amada
porque suplicaste
que eu lançasse o meu esperma
contra o negro capim?
Avisaste-me é certo
que apenas te poderias dar
quando a lua furtiva se ocultasse
atrás das montanhas
Mas por um instante
imaginei loucamente
que fosse um acesso de romantismo


João Melo (poeta angolano)

Do inverno



perguntei pelas águas de fevereiro
como quem se fere nos pulsos

respondeste sendo um país líquido
com uma braçada de searas ao sul

reconheço-me húmido e pronto a trovejar


João Manuel de Oliveira Ribeiro

Renúncia



Deixei enfim de pedir
Eternidade ao amor

Aceito o ritmo sem ritmo
Que há por dentro desse ritmo
Que não se vê não se ouve
Mas eu sinto deslumbrado
Quando os teus olhos acendem
Os corredores da noite

Alberto Lacerda
Moçambique

A matéria do ar


Bom dia. Também eu sou feito de marfim.
Estes são os meus amigos d'hoje: folhedo
para entreter as mãos, pontas de madeira
grossa para depois comer. Hoje havia água
e a minha boca é cheia.
Nunca o mínimo deus me salvou.

Nem a luz nem a treva. Às vezes, de madrugada,
visito as mulheres que lavam e que cantam.
Trabalho com elas e há um forno transparente
onde cozer o pão. Depois elas perguntam sempre
quem sou e eu respondo: sou alguém que come pão
e que se senta fora de casa com as mãos na terra.
E elas começam a cantar e nunca me falam de amor.

Ainda tenho pensamentos mas já não os penso.
Falo como o sono nutre a sua teia e o seu
veneno. Só os bichos da terra e os que andam
no céu são brancos. E digo:
Acende uma fogueira ao que sobrar do
mundo.


Rui Costa

A tua ausência





Em teu olhar aprendi a sonhar
Em teu corpo aprendi a amar
Nas tuas lágrimas aprendi a chorar
Em teus lábios aprendi a falar
Em teus passos aprendi a andar


Foste mãe, amiga e namorada...
Foste sonho, alegria e esperança...
Foste tudo para mim... que me esqueci de ser teu
E foi assim que o nosso sonho morreu
Como o sol se rendendo ao mar.

Ensinaste-me a viver
Ensinaste-me a idolatrar-te... Rainha!
Mais jamais ensinas-te a esquecer-te
E muito menos a perder-te.

E agora sonho que me amas
Choro a tua ausência
Dedilho em ritmo de desespero
A tua presença
Canto, grito, falo...
Mas nada trará a alegria de teu sorriso
E ninguém saberá pintar o sol como tu!


Eusébio Sanjane
Moçambique

4.4.09

Nostalgia



Cinzento nicotina
serpenteia o meu quarto
argola o tempo que não passa

Tu não apareces
nada acontece….

O som sobe em 33 rotações
a voz sofrida de Ottis Reding
sustenta o calor de um canto soul

Emerges de uma nota de piano
por momentos bailas
na circunferência de uma bola de fumo
que se esquiva pela persiana

Fica o som dilatado do sax
a dar passagem a Ottis
a sentenciar “time is over”

Nada acontece…
Nicotino o espaço que se fecha
sobre mim sem ti.


Tony Tcheca (poeta guineense)

3.4.09

Poema quarto de um canto de acusação



Há sobre a terra 50 000 mortos que ninguém chorou
sobre a terra
insepultos
50 000 mortos
que ninguém chorou.

Mil Guernicas e a palavra dos pincéis de Orozco e de

Siqueiros
do tamanho do mar este silêncio
espalhado sobre a terra

como se chuvas chovessem sangue
como se os cabelos rudes fossem capim de muitos
metros
como se as bocas condenassem
no preciso instante das suas 50 000 mortes
todos os vivos da terra.

Há sobre a terra 50 000 mortos
que ninguém chorou

ninguém...

As Mães de Angola
caíram com seus filhos.


Costa Andrade (poeta angolano)

Assim trabalharei a mão


(Pensando em Herberto Herder)


Assim trabalharei a mão, o linho, o cristal paralelo,
os violinos de Dvorák.
Pelos gumes da linguagem, um tecido frágil do lado
da pobreza
dizendo o caminho nómada, a candeia de cinza.

Algures, um coração ardente, um homem que escreve,
um rosto imóvel, apesar,
no silêncio abnegado, denso e radical.

E mergulho nesse dizer aparente, amplo e subjectivo,
erguendo lírios, teias rarefeitas,
loucos interstícios, pelo magma luminoso,
onde o ouro inacessível se propaga,
pelos pórticos de melancolia,

o tempo desconexo percorrendo o caminho das esfinges,
a terra febril,
dizendo as aves, o orvalho e as feridas inteiras,
como violinos,
na extensão dos seus arcos, das suas células secretas,
erguendo o cristal prospectivo,
a chuva, o turbilhão,
caminhos de mel, meteoros de água.


Maria do Sameiro Barroso

A rapariga do país de Abril




Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.

E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.

E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.

Por ti cheguei ao longe aqui tão perto
e vi um chão puro: algarves de ternura.
Quando vieste tudo ficou certo
e achei achando-te o País de Abril.


Manuel Alegre

2.4.09

Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!



Um retângulo oco na parede caiada Mãe

Três barras de ferro horizontais Mãe
Na vertical oito varões Mãe
Ao todo
vinte e quatro quadrados Mãe
No aro exterior
Dois caixilhos Mãe
somam
doze retângulos de vidro Mãe
As barras e os varões nos vidros
projetam sombras nos vidros
feitos espelhos Mãe
Lá fora é noite Mãe
O Campo
a povoação
a ilha
o arquipélago
o mundo que não se vê Mãe
Dum lado e doutro, a Morte, Mãe
A morte como a sombra que passa pela vidraça Mãe
A morte sem boca sem rosto sem gritos Mãe
E lá fora é o lá fora que se não vê Mãe
Cale-se o que não se vê Mãe
e veja-se o que se sente Mãe
que o poema está no que
e como se vê, Mãe
Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Mãe
aqui não há poesia
É triste, Mãe
Já não haver poesia
Mãe, não há poesia, não há
Mãe

Num cavalo de nuvens brancas
o luar incendeia carícias
e vem, por sobre meu rosto magro
deixar teus beijos Mãe, teus beijos Mãe

Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

António Jacinto (poeta angolano)

Nudez



As lágrimas
Deixaram rastros molhados
E depois partiram para Além;

Os sentimentos
Fizeram-se em pó,
Que o vento dispersou por aí;

As minhas ânsias loiras
Calçaram as sandálias de viajante
E partiram para longe

Oh! todos estes ingratos fugitivos
Me deixaram assim nu
No Grande Cruzamento!

João Fonseca Amaral
Moçambique

Ode ao anjo de Portugal



Altas, altas asas, recolhidas,
um dúbio sorriso, uma expressão
de alegria serena, talvez de ironia,
talvez ainda de êxtase ou paixão,
não sei,
a própria face do enigma, como a esfinge,
não sei, que o tempo,
corruptor do símbolo e da pedra
altera ou finge
a palavra dita e silenciada.

Diogo-Pires-o-Moço te esculpiu,
o povo te esqueceu,
fecharam-te em Coimbra num museu,
porque esse que teu ser mediu
não do português uma clara existência quis fixar,
mas a perturbante essência libertar.

Escândalo o teu olhar de paz,
escândalo ontem e hoje a tua beleza intemporal,
escândalo o não pareceres Portugal
na aparência angélica que nos dás.
Olhamos-te, nós, os impacientes
olhamos-te, os saudosos, os furiosos,
porque tarda a hora de o sonho se cumprir,
porque em nossa volta, descontentes,
só vemos sonhos frustrados,
seres dilacerados,
o campo de Alcácer Quibir
ainda e sempre,
orgulho e corrupção,
coragem e miséria,
as guitarras, a traição,
a pátria dividida,
a pressa, a inteligência transviada,
El-Rei Dom Sebastião,
o seu fracasso, a sua ilusão,
a morrer ainda, devagar,
por esse país fora,
nas cidades, nas aldeias, nas montanhas,
a morrer de luxo e de pobreza,
de vaidade, de tristeza,
de curtas ambições,
de poder desregrado,
de habitual monotonia,
a morrer em almas indigentes,
em espíritos carecentes
de alegria criadora,
de entusiasmo, de amor,
Dom Sebastião a morrer dentro de mim
dentro de mim que somos todos,
nas nossas cruéis batalhas interiores
entre a visão radiante do futuro
e a realidade pesada e envolvente
do presente.

Mas altas, altas asas recolhidas,
a própria face do enigma, como a esfinge,
assim Diogo Pires te viu
e para o amanhã que é hoje te esculpiu…
Apostou na esperança, contra dúvida!
Apostou na confiança de que em breve
as grandes asas vão abrir-se porventura
e de que o corpo da pátria, leve, leve,
é ser das alturas que perdura,
apostou que o povo da aventura,
filho do mar,
pai da descoberta,
apostou que a nau fracta do ocidente
no tempo encontraria
a sonhada harmonia
dos seus poetas,
dos seus profetas,
e com clara certeza realizaria,
cedo ou tarde,
depois de quedas e infernos,
depois de abjecções e cobardias,
depois de se ter cindido
e consumido
na inveja, no ódio, na baixeza,
na sujeição, na descrença, na incerteza,
no culto dos eventos positivos,
na negação da própria alma futurante,
cedo ou tarde criaria
o quinto império do amor,
o quinto império do espírito universal,
senhor
da fraternidade enfim,
da justiça e liberdade
fundadas na verdade
que a razão inquieta demanda,
como nau de descoberta rumando ao horizonte
na aliança do leme e do mistério.
Ninguém morre na saudade e na memória,
o tempo que flui não é um grande cemitério
onde jaz sepultada toda a história.
A beleza do Anjo de Coimbra
é o que resta
da gesta.
A sua paz, o seu sorriso,
é o ser português, inteiro e puro
voltado para o futuro.

Ó Portugal,
teu ser no mundo é divisão,
teu ser em Deus é união,
mas o enigma do teu mito em acto
descobre-se no anjo que é o teu retrato.


António Quadros
Inverno

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Choveu tanto sobre o teu peito
que as flores não podem estar vivas
e os passos perderam a força
de buscar estradas antigas.

Em muita noite houve esperanças
abrindo as asas sobre as ondas.
Mas o vento era tão terrível!
Mas as águas eram tão longas!

Pode ser que o sol se levante
sobre as tuas mãos sem vontade
e encontres as coisas perdidas
na sombra em que as abandonaste.

Mas quem virá com as mãos brilhantes
trazendo o seu beijo e o teu nome,
para que saibas que és tu mesmo,
e reconheças o teu sonho?

A primavera foi tão clara
que se viram novas estrelas,
e soaram no cristal dos mares,
lábios azuis de outras sereias.

Vieram, por ti, músicas límpidas,
trançando sons de ouro e de seda.
Mas teus ouvidos noutro mundo
desalteravam sua sede.

Cresceram prados ondulantes
e o céu desenhou novos sonhos,
e houve muitas alegorias
navegando entre Deus e os homens.

Mas tu estavas de olhos fechados
prendendo o tempo em teu sorriso.
E em tua vida a primavera
não pôde achar nenhum motivo...

Cecília Meireles (poetisa brasileira)

Declaração



Quando essa
tua fase
passar
estarei
ainda aqui
preparado
para te amar
eternamente.

Domi Chirongo

1.4.09

O malmequer



Uma a uma cortei
do malmequer
as pétalas macias
não pra saber
se bem ou mal me queres
mas pra sentir nos dedos
a seda do teu corpo.


Edgar Carneiro