6.2.09

A última cantiga


Num dia que não se adivinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-me: «Era a expressão
que ela ùltimamente tinha.»

Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha bôca estremeça,
— toda serei recordação.

Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.

Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gôsto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.

Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.

Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.

Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito: «N ã o».

E ondas seguidas de saüdade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)