5.6.08

Ante-Manhã
Janeiro 1967


Estás no altar, bem sei,
acima de mim que olho
o teu vestido de gesso
pintado de azul.
E escovo com a mão o fato,

com um gesto inusitado,
na lapela azul do fato.
Rezo um Pai Nosso.
"Pai Nosso. Ave!"
Digo:"Salve!
bendita entre as mulheres,
ó minha Mãe!"
Sou tão pequeno, pequeno,
ao pé de ti, minha Mãe!
"Eu tinha um urso de
pano...
Ave!
a quem arranquei os olhos"
Tenho frio nos joelhos.
Ainda é noite na cidade.
"Tu tiraste-mos da boca
e eu cresci, minha Mãe!"
Maria!
Cresci tanto que não posso
já com o peso dos anos.
"Tinha a boca ensanguentada
dos agudos olhos vidros."
Mas não está aqui ninguém.
Posso chorar à vontade.
"Pintaste as covas de azul,
digo, nas covas, os olhos.
E eu chorei."
Cheia de graça!
Chorei como choro agora
de sentir na minha carne
os raios de arame-cobre
que descem de tuas mãos.
O sol ainda não nasceu.
Também que mania esta
de não mudarem as horas.
Ave!
Aqui a luz é das velas
e de uma lâmpada eléctrica.
Mas que solidão, meu Deus!
"O urso ficou guardado
numa caixa lá no sótão.
Meti-lhe os dedos nos olhos."
O Senhor é convosco!
Senti, como sinto sempre,
a dor fina quando esfrego
os olhos, de ter chorado
depois, nesta vida breve.
Bendita sois vós!
Alguém entrou. Quem será?
Parece haver claridade.
São já oito horas certas.
Saíste de casa às sete.
Terás esquecido a chave?
Bendita sois vós!
Sou tão pequeno, pequeno
Ao pé de ti, minha Mãe!
"O tempo
é muito tempo
para uma vida
pequena"
Bendita sois vós!
A nossa vida é pequena,
como eu sou pequeno, Mãe!
E eu queria bendizer-vos.
Bendita sois vós!
Estás fraco, rapaz, estás fraco.
Levanta-te. Vai-te embora.
Mas antes reza a oração
que nosso Pai ensinou.
Digo: Jesus. Tanto faz.
Vá!
"Pai Nosso que estás no céu.
Santificado..."
É possível que o correio
Venha hoje de Timor.
Salve!
Timor!
Timor! Que paciência eterna!
Vinte anos de paciência.
Ilha de mistérios densa
e gente de tez morena.
Timor, minha ilha querida.
Minha verdade. Falida?...
Ó minha causa perdida!
Senhora, tem piedade.
Tem piedade, Senhora.
Tem piedade.
Olha-me por essa gente
portuguesa,
que te ergueu um trono, uma pedra.
Um sacrário de inocência.
Fatu lulik Maria!
Tata-Mai-Lau, Tutuala,
Mata-Bia, alma dos mortos.
Sagrado monte dos mortos.
Venilale, Ave-Maria!
E abro de pronto os braços.
Sou eu que agora actuo.
Não falo, apenas murmuro
no halo que Timor teve.
"Senhora, tem piedade.
Tem piedade de mim.
Sê tu a minha verdade
na vida."
E senti-me trespassado
nos olhos, no corpo todo,
pelos raios - momento breve,
fulgente de frio e cobre -
que tuas mãos irradiam
em S. Luís dos Franceses.
Salve!
Ó clemente,
ó piedosa,
ó doce...
E saí, doido varrido,
cego de azul, cego, cego,
mas contigo, só contigo
e o meu urso pequenino
cego, cego, cego, cego,
desta igreja escura e fria.
Numa manhã de neblina
doirada pelo céu de inverno
entrei, radiante, pelo Rossio.
Salve!
Não havia táxis.
Mas segui, radiante, o meu destino.
Salve, salve, salve!
Em Timor amanhecia!
Ave Maria!
Entrei na Brasileira do Chiado.
Pedi um chá com torradas
e li o jornal.
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...
Há notícias no jornal.
Caso raro.

Ruy Cinatti (poeta timorense)