20.1.07


À Flor das Vagas


Vai a barca do mundo à flor das vagas
No seu mar de tormentas;

Gemem os remadores,

Mordidos pelo beijo de chicote;

E tu, poeta, como um sacerdote,

Da bonança,

A conjurar o mal,

A cantar,

Sem nenhum desespero,

Te desesperar!

Sabe cada ternura a pão azedo

Os acenos são olhos disfarçados;

E os teus versos,

Gratuitos, desfolhados,

Sobre as chagas da vida

Como pensos sagrados

De beleza calmante e condoída!


Que humanidade tens, irmão?

De onde te vem a força, a decisão

E esse gosto de nunca desertar?

És o Cristo, talvez...

Um Cristo sem altar

Que ficaste a lutar

Junto de nós,

Tão presente, real e natural,

Que podemos ouvir-lhe a própria voz.


Miguel Torga