31.3.09

A Graça


Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Porque no coração
Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: «Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem d'ouro e púrpura descendo
Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo,
Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança,
Que te seguiu dos Céus!...


Alexandre Herculano

30.3.09

Desamparo


Digo-te que podes ficar de olhos fechados sobre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exacta direcção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem cor e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

29.3.09

Nova Vénus


Salta aos ventos as tranças douradas,
Meiga filha das bordas do mar,
E no meio das vagas iradas
Solta aos ventos o alegre cantar.

Não, não temas as nuvens sombrias,
Que uma a uma se elevam d´além,
Qe rodeado d´amor e alegrias,
O teu céu dessas nuvens não tem.

Canta sempre, de noite as estrelas,
De manhã ao luzir do arrebol,
Ao passarem no mar as procelas,
Ao sorrir nos outeiros o sol.

Canta sempre, ó alcione d´estas vagas
Nova filha da espuma do mar,
Canta sempre, e eu sentado nas fragas,
Voltarei para ouvir-te cantar.


Júlio Dinis

28.3.09

Flagelados do Vento-Leste


Nós somos os flagelados do Vento-Leste!

A nosso favor
não houve campanhas de solidariedade
não se abriram os lares para nos abrigar
e não houve braços estendidos fraternamente para nós

Somos os flagelados do Vento-Leste!

O mar transmitiu-nos a sua perseverança
Aprendemos com o vento o bailar na desgraça
As cabras ensinaram-nos a comer pedras para não perecermos

Somos os flagelados do Vento-Leste!

Morremos e ressuscitamos todos os anos
para desespero dos que nos impedem a caminhada
Teimosamente continuamos de pé
num desafio aos deuses e aos homens

E as estiagens já não nos metem medo
porque descobrimos a origem das coisas
(quando pudermos!…)

Somos os flagelados do Vento-Leste!

Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãos
E as vozes solidárias que temos sempre escutado
São apenas
as vozes do mar
que nos salgou o sangue
as vozes do vento
que nos entranhou o ritmo do equilíbrio
e as vozes das nossas montanhas
estranha e silenciosamente musicais

Nós somos os flagelados do Vento-Leste!


Ovidio Martins
Cabo Verde

Balada da Chuva





Do céu cai a chuva fria,
Quer de noite quer de dia,
No triste Inverno cinzento.
Fazendo correr as águas,
Como lágrimas de mágoas,
Sempre em constante lamento.

Chuva de Inverno gelada,
Que p´la roupa repassada,
Atinge a pele pungente,
Daqueles que sem abrigo,
A sofrem como castigo,
Em cadência permanente !…

O mundo era mais perfeito,
Se não houvesse o despeito,
Da chuva que atropela.
Em vez de nos agredir,
Só deveria cair,
Onde alguém precisa dela!…

Com seus caprichos e bruma,
A chuva, é apenas uma
Prova, de toda a grandeza,
Que transcende o nosso ser
E nos limita entender,
Mistérios da Natureza!…


Euclides Cavaco
Canção

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No desequilíbrio dos mares,
as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que tu certamente vinhas.

Eu te esperei todos os séculos,
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,
meus olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro dessas águas sem fim.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

27.3.09

Primeiro a mão, amor, a mão cativa




1

primeiro a mão, amor, a mão cativa
pela palma indecisa que a retém,
o gozo deste jugo que mais sirva
o gesto inacabado que lhe vem.
o suco, o sumo, o brando deslizar
dos dedos entre os dedos, perguntando
que fio ousar tanger deste tear
do corpo já cedendo, e recusando.
o braço sobre o ombro, o-breve enleio
dum olhar por olhar (e nada ver),
o-brando lume da mão roçando o seio,
o-ceder (não se dando) sem saber.
o-cerrar todo o tempo em seu receio
e ao silêncio ajustar o que vier.


Hugo Santos


Nas curtas horas realmente longas
cada minuto um porquê da tua ausência
cada instante o desejo visceral da tua presença

Nas curtas horas realmente longas
ao afagar o sussurro da tua voz suave
ela ribomba como o trovão
como ondas iradas sob tempestade
aos ouvidos impacientes da ânsia.

Ânsia de rasgar o ventre grávido da fera
de arrebatar das mãos do medo
o germe implacável da semente portentosa
da chegada

Nas curtas horas realmente longas
a jornada insana das lutas vitoriosas
o grito no caminho firme para a vida
o meu grito na tua voz
o meu desejo nos teus olhos

Agostinho Neto (poeta anmgolano)
Criança

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Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Cecília Meireles (poetisa brasileira)

O Cavaleiro




Talvez o espere ainda a Incomeçada
aquela que louvámos uma noite
quando o abril rompeu em nossas veias.
Talvez o espere a avó o pai amigos
e a mãe que disfarça às vezes uma lágrima.
Talvez o próprio povo o espere ainda
quando subitamente fica melancólico
propenso a acreditar em coisas misteriosas.

Algures dentro de nós ele cavalga
algures dentro de nós
entre mortos e mortos.
É talvez um impulso quando chega maio
ou as primeiras aves partem em setembro.

Cargas e cargas de cavalaria.
E cercos. Conquistas. Naufrágios naufrágios.
Quem sabe porquê. Quem sabe porquê.
Entre mortos e mortos
algures dentro de nós.

Quem pode retê-lo?
Quem sabe a causa que sem cessar peleja?
E cavalga cavalga.

Sei apenas que às vezes estremecemos:
é quando irrompe de repente à flor do ser
e nos deixa nas mãos
uma espada e uma rosa.

Manuel Alegre
Da Tua Vida

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Da tua vida o que não podem entender
Nem oiro nem poder nem segurança
Mas a paixão do Tempo e de seus riscos
Tu buscaste o instante e a intensidade
E foste do combate e da mudança
Por isso um rastro de ruptura e de viagem
Ou talvez este fogo inconquistado
Como breve eternidade
De passagem

Manuel Alegre




26.3.09

Um Sorriso



Quando
com minhas mãos de labareda
te acendo e em rosa
embaixo
te espetalas

quando
com o meu aceso archote e cego
penetro a noite de tua flor que exala
urina
e mel
que busco eu com toda essa assassina
fúria de macho?
que busco eu
em fogo
aqui embaixo?
senão colher com a repentina
mão do delírio
uma outra flor: a do sorriso
que no alto o teu rosto ilumina?


Ferreira Gular
Brasil

25.3.09

Noite Vagabunda de Luar



A minha angústia é asa quebrada
da noite vagabunda de luar
que vem mansamente pela madrugada
bater-me à porta para me acordar


António Arnaut




Quero compor um poema
onde fremente
cante a vida das florestas das águas e dos ventos.

Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!

Manuel da Fonseca

24.3.09

Legenda



Como quem sente
na legenda do presente
o fim duma história breve,
vou vivendo um sonho intacto
num pesadelo crescente
- uma luz fecunda e leve
nos olhos pardos de dum gato.


Fernanda Botelho

23.3.09

O Meu Amor Existe


O meu amor tem lábios de silêncio

E mão de bailarina
E voa como o vento
E abraça-me onde a solidão termina


O meu amor tem trinta mil cavalos
A galopar no peito
E um sorriso só dela
Que nasce quando a seu lado eu me deito

O meu amor ensinou-me a chegar
Sedento de ternura
Separou as minhas feridas
E pôs-me a salvo para além da loucura

O meu amor ensinou-me a partir
Nalguma noite triste
Mas antes, ensinou-me
A não esquecer que o meu amor existe


Jorge Palma
Os rios de um dia



Os rios, de tudo o que existe vivo,
vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
O rio corre; e assim viver para o rio
vale não só ser corrido pelo tempo:
o rio o corre; e pois com sua água,
viver vale suicidar-se, todo o tempo.

2.
Pois isso, que ele define com clareza,
o rio aceita e professa, friamente,
e se procuram lhe atar a hemorragia,
ou a vida suicídio, o rio se defende.
O que um rio do Sertão, rio interino,
prova com sua água, curta nas medidas:
ao se correr torrencial, de uma vez,
sobre leitos de hotel, de um só dia;
ao se correr torrencial, de uma vez,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alongá-lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros:
esses rios do Sertão falam tão claro
que induz ao suicídio a pressa deles:
para fugir na morte da vida em poças
que pega quem devagar por tanta sede.


João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)

21.3.09

Quando os pássaros abrem a manhã


Quando os pássaros abrem a manhã
ou entardecem nas árvores as nossas praças,

abre-se um lugar dentro do peito
que desconhece as regras do tempo,
aí erguendo a casa
e esperando serenamente
o que nunca saberemos
sobre o que a morte possa ser.

Até que partam um dia
para o mais velado coração,
guardado em nós
como a noite mais longa,
fechado em nós
como a memória mais pura.


Pompeu Miguel Martins
Pedido


Só te peço esse olhar doce
Profundo, naufragado
No teu olhar.
Essa tão doce promessa
De beijar submersa
Nos teus lábios de sangue...
...para fazer as coisas mais impossíveis do Mundo!


António Cardoso (poeta angolano)

Compõe as flores...



Compõe as flores
sem adornos. As coisas
simples, mesmo se
de ornamento
apenas servem, dispensam
sempre o que é gratuito. E sê,
também, por isso,
uma flor. Ou só
o orvalho
que a sustenta. Ou só
o seu perfume
matinal.


Albano Martins

Poema



Eu não sabia então -
nem sei se mesmo hoje saberei -
que a poesia era para isto
falar das coisas miseráveis
- a memória do que é miúdo, o que é rasteiro -
o sono escombros que o mar devolve à terra.

Ou então lembrar meu Pai
suas mãos secas tisnadas do sol
sua vasta alma camponesa rosto de terra
coração de menino olhos ingénuos
um chapéu protegendo-lhe a cabeça
caminhando entre folhas de videira
suavemente falando aos que trabalhavam na colheita
[se acercassem de um outro campo mais acima
para colher sob sol braseiro
uvas que eu ia devorando
até do sumo doce fartar minha boca.

Ou lembrar meu avô
que conduzia mal
levando o carro pelo meio da estrada de província
a buzinar longamente em cada curva
afugentando galinhas ovelhas
crianças ranhosas
filhas do álcool.

Lembrá-lo agora como quem evoca um sabor cheiro
[da infância
não chegando para me humedecer os olhos
(não sou especialmente dado à comoção)
leva-me a um outro tempo:
um tempo de girassóis e de pão farto e doce
a encher-me a boca miúda
momentos coincidentes com o agora:
a guerra na Palestina as eleições em França
a notícia de um óbito no jornal do dia
a graça do pivô a fechar outro telejornal
ou tão-somente essa presença intensa
teu perfil recortado no ecrã dos meus olhos.

Tudo acontecendo ao mesmo tempo numa linha
[horizontal
em simultâneo como se de fora
como se fosse um outro
desconhecendo sempre
o lugar exacto a que pertenço.


Bernardo Pinto de Almeida

Fim

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Ó tempos de incerta esperança
que assim vos desacreditastes!
Cresceram nuvens sobre a lua
e o vento passou pelas hastes.

Vinde ver meu jardim sem flores
no presente nem no futuro,
e a mão das águas procurando
um rumo pelo solo escuro!

Vinde ouvir a história da vida
no sopro da noite deserta.
Caíram as sombra das vozes
dentro da última estrela aberta.

Ai! tudo isto é letra do horóscopo...
E só tu, Estátua, resistes!
— Mas, embora nunca te quebres,
terás sempre os olhos mais tristes.

Cecília Meireles (poetisa brasileira)

19.3.09

Sobre o vento noroeste



Sobre o vento noroeste
galopam negros cavalos
de longas e soltas crinas
perdidas na noite escura.

Saltam ladrões ao caminho
dos homens desprevenidos
e anavalham corações
sobre o vento noroeste.

Choram meninos perdidos
em velhas encruzilhadas,
enquanto pelas estradas
galopam negros cavalos.

E em desespero nocturno
os cavaleiros de fumo
se agarram desesperados
às suas longas e soltas crinas.

Porque o vento noroeste
vai deixando pelos campos,
pelos prados, pelos vales,
lamentos desesperados
dos cavaleiros perdidos
em raivas e desesperos
sobre o vento noroeste.

Orlando de Albuquerque

Para um velho rapsodo



Canta, Muringana, canta,
na noite comprida do Chamanculo:
Ai, o Xivito que eu tenho,
a minha impala não veio hoje beber.
Kina, Kina, Kina
W psala nwana, Muringana,
W psala nwana!
A muchem te roeu o coração
e fez dele um monte de areia seca,
uma casa na solidão.
Kina, Kina até ao cansaço,
à copa das árvores até às raízes.
Bailando voas, bailando te afundas,
o chão dos mais engeitas.
Nesse ventre de homem um filho se gerou
- é o Xivito que te aperta o peito,
rouba o fôlego e entontece.
Ê - lê - lê - lê! Faz tremer o chão
Com raiva e os pés.
Chocalha esses guizos dos artelhos,
iradamente dança, ê - lê - lê - lê!
A azagaia da morte não te apanhará desprevenido.
Quando a Grande Caçadora por ti vier,
tu, em pleno salto,
morrerás no ar como so pássaros mais altivos,
Muringana, Muringana.


Fonseca Amaral
Moçambique

não procuro um amor



não procuro um amor entre os cardos,
se é entre os cardos que me vês, procura
pensar que um amor não se perde por ali
nem por ali se deve encontrar. se estou
entre os cardos, meu amor, é para te esquecer
e se me vires, pensa que é por ti, absolutamente por ti
que procuro apenas dores, apenas fardos,
para lentamente matar o meu coração. e
se me vires cair, se entretanto me vires no chão,
não me apanhes, não me ajudes, pensa que
já ninguém passeia nos cardos e que o
amor, para castigo dos que morrem, recomeça
num outro lugar, seguramente à tua espera.
depois sorri mesmo que te seja difícil, se por
mais difícil que seja para mim ver-te sorrir
é entre os cardos que devo partir, quando
fugazmente te souber passando, tão parecida
com ires buscar a felicidade sem mim e eu
só mais uns segundos, já meus anjos preparados.


valter hugo mãe