28.2.11

O imperfeito do conjuntivos como se os impérios se dobrassem





há talvez uma por quase janela
atravessada ênclise no entanto perdida parede
o cão acorrentado na transcrição seguinte
ou melhor a miséria em cada bassorá sobre o papel
corre denso quase até a grossura
certamente a vassalagem margens mais baixas
no paladar crude olho as monarquias
o que mais me perturba
porque não são quaisquer decibéis
só espiga no rosto dessa gente
dada sombra a luz suspende-se em terra firme
quisesse reduzida fronteira
sobre a mesa bagdade ao jantar
mar exuberante rosa
perdura o imperfeito do conjuntivo ainda
como se os impérios se dobrassem
satisfeita a sede já trazem vísceras a mais nesta janela

Abreu Paxe
Angola

Carnaval triste


A noite despida entoa
negros cantos pelos cantos
do Muceque negro à toa
florido de desencantos...

Morrem de amor minhas mãos.

Tarde, que tarde estamos!
Nem vale a pena sonhar
que a gente já sonhou o tudo...
Resta apenas a brilhar
um eco triste de entrudo.

Mascarados — meus irmãos.

Olhai a lua que assoma
por cima dos cajueiros...
Vem fazendo negras tranças
dos meus longos desenganos...

E os meus vinte paus de prata
naquela mão de mendigo
são como o brilho da Lua
nas palavras que não digo.


A. Neves e Sousa
Angola

Silenciosa



Desencanto A Voz. UMa Atenção Miudes
FAZ UM daquele Feixe Arbusto de Absurdos.
Narinas deste Mundo Cão centrando hum
e Duas AO MESMO parágrafo Abelhas tempo:
IstoÉ ágora que tão interessatipossono - Atravessar
o jardim Pelo Meio da Cidade
Muito parágrafo calado ENTRAR in casa.


Carlos Poças Falcão

27.2.11

Preito


É lei do tempo, Senhora,
Que ninguém domine agora
E todos queiram reinar.
Quanto vale nesta hora
Um vassalo bem sujeito,
Leal de homenage e preito
E fácil de governar?

Pois o tal sou eu, Senhora:
E aqui juro e firmo agora
Que a um despótico reinar
Me rendo todo nesta hora,
Que a liberdade sujeito...
Não a reis! - outro é meu preito:
Anjos me hão-de governar.


Almeida Garrett

Uma carta

Tradução de Hildo Honório do Couto


Excelentíssimo senhor
como faltam sete noites
para a lua se pôr
eu lhe digo que a coisa não está nada bem

Mas como a enxurrada
de bombolons não é ouvida
por outro lado os difuntos não sossegam

Digo-lhe ainda
as novidades de vossa excelência
fazem meu corpo arrepiar
não posso deixar de amassar filijamba
naquele inferno rejeitado
só se encontra coisa ruim

Excelentíssimo senhor
como falta uma chuva
para a tempestade descobrir nossos entulhos
eu testemunho perante vossa excelência:
a coisa está preta!!

Para terminar só digo mais uma coisa:
nós não somos canoa contra a maré!


Respício Nuno (Guiné)

Meu coração é dum rapaz de vinte anos



Meu coração é dum rapaz de vinte anos:
ri, chora, consoante ele quer.
Se lhe dá para cantar, é italiano,
por aquele sangue que herdou quando nasci

Se lhe dá para chorar, é caboverdeano


Sérgio Frusoni (Cabo Verde)

Geopolítica do medo


à frente da história seguem os heróis
os santos e os poetas. e os que sobram
da provada culpa do vento, marinheiros
de cana rapados à venérea idade
do mar. e os que viemos depois
na cauda do açoite

mover os braços reter o corpo
para cá da barra, e a voz
de piratas trincados pela raiz.

daqui nos damos notícia, corsários
do medo auriculado na gengiva
dos séculos. e dos que partiram
sem barco de feição ou anel
para os dedos abertos no pródigo mês
da idade.

já nada nos destrói. nem a lágrima
encalhada na denticula vegetal para o amor.
nem ela.


David Mestre
Angola

26.2.11

Citadina



Tens no olhar
A fúria do conhecer,
Do querer entrar
Na magia da noite.
Descobrir sete maravilhas
Numa só hora,
Conquistar o mundo
Num piscar de olhos.
Vês o sol
Como teu aliado.
E a noite escura
Como a perversa loucura do inédito.
Tudo à tua volta,
Te envolve.
Tudo em ti,
É lume,
É voz,
É dança,
É liberdade total.
A inocência atrai quem passa,
E o medo corta asas.
E nesse olhar de fúria,
E nesse andar de jeito,
Nesse sorriso calmo,
E nessa voz de alento…
Existe uma beleza inédita e real,
Numa mulher deveras,
Que de raízes enlaça.
Citadina de voz e alma.
Citadina mulher bonita.
E se a virem…
Parem.
Ela vale...
Pela beleza de a ver passar!


Maria José Figueiredo

25.2.11

Blasfémia


No relicário que te acolhe
é-me angustioiso supor
o labor das areias
na madeira.

E meu pesadelo dos pesadelos
a iconoclasta muchém
no afã da sua lavra
orgiando-se voraz.

Blasfémia suprema
o festim.
José Craveirinha
Moçambique

24.2.11

Estava quase a morrer



Estava quase a morrer
quando viu chegar o padre
ainda teve tempo de o mandar
ir pregar para outra freguesia
antes de morrer

Joaquim Falé
Moçambique

23.2.11

De eléctrico



(Num carro para Campolide. Dia Sexual)

Uma mulher de carne azul,
semeadora de luas e de transes,
atravessou o vidro
e veio, voadora,
sentar-se no meu colo
na nudez reclinada
dum desdém de espelhos.

(Mas que bom! ninguém suspeita
que levo uma mulher nua nos joelhos.)


José Gomes Ferreira

Auto-retrato



Ao nascer eu não estava acordado, de forma que
não vi a hora.
Isso faz tempo.
Foi na beira de um rio.
Depois eu já morri 14 vezes.
Só falta a última.
Escrevi 14 livros
E deles estou livrado.
São todos repetições do primeiro.
(Posso fingir de outros, mas não posso fugir de mim).
Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro.
Em pensamento e palavras namorei noventa moças,
mas pode que nove.
Produzi desobjetos, 35, mas pode que onze.
Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um
abridor de amanhecer, uma fivela de prender silêncios,
um prego que farfalha, um parafuso de veludo etc etc.
Tenho uma confissão: noventa por cento do que
escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.
Quero morrer no barranco de um rio: - sem moscas
na boca descampada!


Manoel de Barros
Brasil

Como este beijo


Como este beijo,
é vasto e profundo
o oceano.

E alheio ao mundo.


Isabel Solano

22.2.11

Conto Estrelas em Ti


«Não esteja na lua
desça à Terra.»
E o menino a replicar:
«Não me chega esta Terra.»
«Seja realista, terra a terra.»
«Mas eu sou do tipo ar, ar.»
E os olhos do menino
já eram balões quando a professora
lhe ordenou que saísse.
Despediu-se da colega e disse:
«Conto estrelas em ti.»
Ao sair, deixou na mesa da professora
o mais bonito avião de papel
que se possa imaginar.
Era uma prenda desesperada
de um menino triste
por não a poder contagiar.
Na sala, um silêncio ficou suspenso
por palavras que também quiseram
voar."


Teresa Guedes

Há momentos


Há momentos na vida de um Homem
Em que sabe que acordou diferente
E que já não é o mesmo para ele,
Mesmo que o seja para toda a gente...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma Mulher
Aquela que lhe trouxer
A flor do sexo
Desenhada a vermelho no ventre
E nada lhe perguntar...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma mulher
Aquela que lhe trouxer,
Num abraço total,
A ilusão da vida inteira...
E, depois, partir
Com a esperança de vida que ele semeou...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma Mulher
Para todo o Mundo se resumir
À flor vermelha
Como um bocado de sol
Que desponta numa telha!

António Cardoso
Angola

Peregrinação



Venho de longes mundos
Separam-me distâncias
Trago as madrugadas no meu ventre
E a liberdade das coisas inventadas
num mundo abstraído
em tempo.


Manuela Amaral

21.2.11

Necrologia Laurentina



Só netos eram quarenta
sonetos pr’aí uns vinte
bolotos plantou alguns
o patriarca aos oitenta
sabe que bateu no vinte
e é homem como nenhum.

Tem o pelinho na venta
(digo-o sem nenhum acinte…)
E é filiado na un.

Grabato Dias

Qualificação



Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.


Carlos Nejar
Brasil

Azuliante



Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte

Choverá muito eu sei choverá muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o tremor de terra em que tu danças
na tua roda de cigarros cada vez mais depressa cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo
de oriente a ocidente

Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem sabem tão bem quanto eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado
os segredos de estado as razões de estado a segurança do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente

Digo não Eu digo não
digo o teu nome que diz não

No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore
à espera que tu chegues ou passes simplesmente
estão os grandes do império com o chapéu na mão para cumprimentar-te
Então passas tu com a lua no peito
dividindo distribuindo os alimentos
passas tu devagar atirando as moedas
que os dias não aceitam e gastamos depressa
noite mil e uma noites de quem espera
Meu amor países pátrias têm todos um nome
de letras imundas que não é para escrever
Se ainda podes ouvir o búzio da infância
ouvirás com certeza o sinal de partir

No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis
que há mil anos dá a volta ao mundo
sou eu o homem que viaja nu porque eu sou
o arco-íris e a rosa no trapézio
e tu toda a paisagem que atravesso
como se fosse de bicicleta
como se fosse sílaba a sílaba
a primeira frase da terra
tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão
com a tua máscara de olhar a aurora boreal
de me olhares para sempre nua eu a tempestade
de coração a coração

Roda sórdida da razão cínica e canto de galos
depenados vivos que cantam nos intervalos da morte
no meu livro de horas deste século
está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento
sob a forma de um cometa de cauda fascinante
que arrastará os amorosos até ao centro do mundo
donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal


António José Forte

Embalo



Onde quer que estiveres
entregue ou fugitivo
verás o que não queres
na morte e no estar vivo.
Onde quer que banhares
a carne e os pensamentos
virão de outros lugares
banhar-te outros momentos.
Onde quer que dormires
será teu sono prece
que sobe em arco-íris
e sem que alcance desce.


Afonso Félix de Sousa
Brasil

Sonho



Pudesse eu um dia voltar à minha terra
ver os coqueiros e os cafezais em flor
ver as sanzalas transformadas em casas dignas
de homens que trabalham noite e dia

pudesse eu tornar a ver-te mãe
e abraçar-te e beijar-te até não mais
e ver finalmente os meus irmãos de cor
respeitados como eu sempre sonhei

pudesse eu ver as palmeiras da avenida
gingando ao vento e ao grande calor
e pisar essa terra agora nossa

pudesse eu daqui dizer-vos tudo
que sinto e que quero transmitir
pois mesmo longe estarei sempre ao vosso lado


Maria Olinda Beja
São Tomé e Príncipe

20.2.11

Poema para uma Saudade


Tudo em mim és tu
Quando a solidão cala-me a voz
E o olhar debruça-se sobre o mistério
Onde o amor e o sonho
Sussurram-me o que tanto sei
Uma intuição de gestos flagra-me os segredos
Anunciando-te no horizonte da saudade
Em vão interroga-me a tarde morna
Enquanto os abraços aconchegam-me em lembranças
E apenas o silêncio responde a minha inquietação
Para além de mim
Onde se cruzam pensamentos e anseios
Volta-se o meu olhar
Como se pronunciasse o teu nome
Cobre-se o céu em vigília
Com o manto negro da noite
Como se também ele aguardasse
O som dos teus passos
Para iluminar todo o meu universo

Fernanda Guimarães
Brasil

das trocas


não troco
minhas dúvidas
pelas tuas certezas
nem minhas fantasias
pela tua realidade
mas troco
o mar dos teus olhos
pelo cais do meu corpo.


Ademir Antonio Bacca
Brasil

Sossego



gosto
quando invades
minha noite
com o mar aprisionado
no olhar.

é prenúncio de manhã
de calmaria.


Ademir Antonio Bacca
Brasil

O mensageiro do amor



No andar de cima, do outro lado das escadas,
havia uma festa. Eu ouvia a música e os risos,
as vozes que se excitavam e enchiam o silêncio da noite
de desejos, de paixões. Depois a porta bateu, passos
nas escadas. Uma rapariga desceu, as palavras
saíam-lhe da boca com uma facilidade
tão cheia do amor da vida. À tarde,
no centro da cidade, uma outra rapariga esperava,
sentada à mesa do café, com a mala ao lado,
o mensageiro do amor. Estava
tão segura de si, tão convencida de que ele
acabaria por chegar. Eu olhei o seu rosto jovem,
os seus cabelos que o vento parecia ter desalinhado.
A sua espera comoveu-me. Depois continuei
o meu caminho. A chuva caía
sobre as ruas da cidade. Límpidas, nítidas,
as fachadas das casas enchiam o fim da tarde
com a sua presença silenciosa. A eternidade
não existe, mas enquanto é tempo de durar, as pedras
e a madeira das portas e janelas duram.
Pouco a pouco o ruído cessou, a casa adormeceu.
Os convidados da festa falaram alto na rua,
depois o ruído dos automóveis levou-os para longe.
Contemplei a parede branca, a capa de um livro,
a caneta em cima da mesa, ao lado do jornal.
E o sono desceu sobre os meus olhos.


João Camilo

Por dentro da Ilha


Como confessar: estas esperas metem-me medo.
É como se o tempo estivesse parado
temendo progredir nas margens
do meu silêncio
em segredo.

E reparo:
caído nas calçadas do arquipélago
dominado
o pássaro quer rebater as asas imobilizadas
e saltar os muros as sebes os telhados
da cidade
apontando o bico em direcção aos céus
aos cérebros
(deixando derramar cá por baixo
bocas abertas de espanto
no exacto espaço
da liberdade).

Do que se sabe:
é sempre o mesmo incidente.
Os barcos estão presos a âncoras
e não há brisa
alguma
nem ventos livres soprando
onde seja possível navegar.
As gaivotas desfizeram os ninhos
esqueceram os mapas as bússolas
a algazarra das manhãs no calhau
e partiram em busca de outras sinas
cumprindo a ambição que sonharam
desde pequeninas.

Como dizer: faz-se tarde
nos caminhos escuros do futuro
e se o mar é o cerco a prisão
que da ilha brota
e se os dedos nos crispam
de ausências cúmplices
magoados por turbilhões de raiva
fechando-se no peito
e se a água nos afoga no isolamento
do seu sal
é chegada a hora de nos deixarem amar
as distâncias
levando o sabor da terra e da lenha queimada
nos lábios
como se os incêndios vorazes das serras
obrigassem à libertação das cinzas
dos seus degredos.

Como confessar: por dentro da ilha
as esperas metem-me medo.
Venham mais barcos e aviões
para encher os cais e aeroportos.
Programem as viagens, abram alas ao sonho
de partir. Chamem mais passageiros.

Eis que está denunciado o segredo.


José António Gonçalves

19.2.11

O tempo e o mar


Era um homem, a sombra de um homem e
caminhava para o mar.
Estas pegadas
são o obscuro rumor do tempo
e o tempo é uma vara oblíqua nas mãos de deus.
Que fará um homem com as dores do mundo,
com a última gota dos cálices ao lado da noite?
Reconstruir o teu rosto da amada
dar vida à sua silenciosa vida?
Matar,
no súbito ardil do Outono, os vestígios de uma
palavra secreta?
Há uma cidade profunda onde em profunda água
ela o esquece.
Quem para o mar caminha
leva consigo a maldição das ilhas com um
lírio quebrado, uma ânfora de pólen,
um adeus.


José Agostinho Baptista

Entenda quem puder



Como o Caeiro, sabes, digo adeus
aos versos que se vão e aos que chegam,
marcados desde dentro como teus
como sons imperfeitos que se entregam

a quem passe e repasse, e já não sabe
se a conjunção de como que assim ligo
é dele ou de quem é. Como se acabe,
o dia em que te escrevo é que te sigo,

e mais importa, e mais me livra inteiro
do que não tu, a ti, minha mulher,
meu caso e minha casa, meu bom cheiro

a ti ou a mim mesmo, ao que vier
deste completo inverno em que me abeiro
da verdade que entenda quem puder.


Pedro Tamen

Síntese Dja-Braba



I

O poeta
sua tela de pedra
Alba e neblina
pólen e seiva
cinzel rasgando
carne de pedra
pedra de pétalas
mãos frementes
afagando
o pólen
a seiva
o orvalho.



II

O poeta
sua tela de pedra
rubro poente
orvalho de sangue
cinzel rasgado
e
belos
bravos
eróticos
contornos sensuais
de
montes se erguendo
com patas de pétalas
e diademas de flores.


João Rodrigues
(Cabo Verde)


*Djá-Braba: crioulo de Cabo Verde, e significa “Ilha Brava”.

Construo sólidos castelos d’areia


Construo sólidos castelos d’areia
que se destroem
no contacto
com a ímpia suavidade da onda.

… aspiração frustrada.

amor na concha de vento
no êxtase poético
na ondulante curva
da nossa união. na areia.

… amor na interrogação da onda.

minha lágrima:
néctar salgado
pérola de esperança
no mar adocicado.

… para quando o reencontro?


Conceição Cristóvão
Angola

A sombra da memória



Vestido de cavalo e fina seda
e coberto de escamas luminosas
é como se tivesse uma outra idade
(a verdadeira) e o jovem corpo
capaz de atravessar muros e medo.
Inclinarias sobre a minha boca
um nome arrevezado com sabor
a terras estrangeiras visitadas
secretamente, em noite toda escura,
envolto, nu, em glória impermeável.
Vais-me dobrar em dois como se dobra
um dia que passou sem nada dentro,
o velho ardor de nuvens encardidas;
sem ver a minha voz como cantava
ao telefone a sombra da memória
do desejo que dói como um veneno.


António Franco Alexandre

Era o último amor



Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem advinha
o sabor pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.


Luís Filipe Castro Mendes

Desencanto



Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


Manuel Bandeira
Brasil

Prognóstico



Poeta,
Creia,
Nem tudo está perdido,
Porque,
Felizmente,
Sobretudo o mais,
O seu ideal,
A muitos outros ainda comove,
Demove
e
Predomina


Ada Ciocci
Brasil

18.2.11

Que viagem


Que viagem
assim que você chega
a abóbora vira carruagem


Alice Ruiz
Brasil

Reflorir, sempre




Não é já de Natal esta poesia.
E, se a teus pés deponho algo que encerra
e não algo que cria,
é porque em ti confio: como a terra,
por sobre ti os anos passarão,
a mesma serás sempre, e o coração,
como esse interior da terra nunca visto,
a primavera eterna de que existo,
o reflorir de sempre, o dia a dia,
o novo tempo e os outros que hão-de vir.


Jorge de Sena

Visão


Quero fundar
a promessa
na superfície nua
da palavra
para que os teus ouvidos
conheçam o som
da visão,
a chama sagrada
vertida nos poros
dos teus sentidos...


Jorge Arrimar
Angola

Na janela do meu quarto



Na janela do meu quarto
desbotada pende a velha cortina.

No seu humor a cortina
exibe-me os fulgores da sua ironia.

A quem olha de fora
a minha velha cortina
ilude.


José Craveirinha
Moçambique

A sós



Eu vinha só,
tu vinhas só,
aconteceu que o destino
mestre em dar nós,
o meu destino unindo ao teu,
tornou-nos nós.

Veio então o amor,
fez o plural,
e tu e eu, e só mais só,
deu afinal nós dois...
a sós.


J.G. de Araújo Jorge
(poeta brasileiro)

Água Dormida



Toda manhã é pétala
da mesma rosa eterna.
A mesma água dormida
da palustre cisterna

que recolhe as imagens
das nuvens que viajam
no céu mais fugidio
que está além dos píncaros

e além dos passarinhos:
lá onde o vento venta
e faz seu próprio ninho

um ninho de gravetos
folhas adormecidas
e pétalas perdidas.


Lêdo Ivo
(poeta brasileiro)

Colar de missangas


naquela rua da praça…

foi ali que a encontrei
e conheci
e gostei
de a ver passar
com a quinda na cabeça…

não notei as cores dos panos,
não notei o que levava
para vender.
só reparei
e gostei
do seu colar de missangas.

soube depois
que era recordação
dum homem com quem vivera…

um dia
- quantos já passados –
estava ela na baía
quando o guerreiro,
fogueiro
ou marinheiro
de cabotagem,
apareceu por ali.

encontrou-a
convidou-a,
ela foi
e ofereceu-lhe o colar.

depois seguiu a viagem
e a vida seguiu também.

meses passados
nasceu-lhe o filho.
gostou,
ficou contente.
Depois
morreu-lhe o filho.
chorou,
enlouqueceu de repente.

e agora
todas as manhãs
quem quiser a vê passar
a caminho da quitanda
com a quinda na cabeça.

e conta os dias
passados á espera do filho,
pelas missangas
rubras, da cor das pitangas,
que vai pondo,
dia a dia,
no fio do seu colar.
ontem
quando a vi passar
o colar
tinha dez voltas…


Aires de Almeida Santos
Angola

17.2.11

O homem canta


O homem canta
ouvi os meus lamentos
que são segmentos
de recta no espaço.
ouvi as minhas dores
que são flores
trazidas no regaço.
ouvi os meus queixumes
gumes
de rígido aço.
ouvi-as se quiserdes
e puderdes.
ouvi-as e entendei-as.
não são bonitas nem feias,
são sinceras.
a sua idade mede-se pela das eras
surgiram com o primeiro dia.
a luz que as alumia
é só a do tempo no infinito.

as minhas dores, às vezes
transformam-se em grito.
e então a terra treme
e freme
como o dorso do animal que se acaricia.
e é um dia diferente o novo dia
e é um mundo diferente o que então brota.
como a lava do vulcão que queima
- e purifica –
as minhas dores mordem as raízes
e a terra fica mais rica.

mas não morrem – ó infelizes –
não morrem as minhas dores.
eu as reconheço às minhas flores,
outras novas flores as minhas dores…
a sua idade mede-se pela das eras,
a luz que as alumia
é só a do tempo no infinito.
diferentes do velho para o novo dia,
dores flores, dores grito,
ondas no dique quebrando…
minhas dores, ó minhas dores,
até quando?...


Antero Abreu
Angola

Espectros que vêm das estrelas



Na noite vidro, um brilho de fósforo: azul.
Ouvi dizer que as estrelas são as moradas dos mortos,
irradiam assim alguma possibilidade?..
De qualquer modo saem dos nichos os algozes
que nos torturarão ao longo de uma vida inteira...
«Como te chamas ?», pergunta-se para haver resposta.
Descem com os grandes farricocos de Lua esgazeada,
sem O. V. N. I. de seda que lá nos possam flutuar
e vogam só as capas de morcego sobre os olhos.
Sigo-os eu até às suas pernas clandestinas,
dançam já e cortam-me a cabeça-
para quê voar dêem-me aquele pouco de loucura
de ser mais um zombie por aquj,
pois a minha vida é apenas «for the moment»
e todo o meu destino-1800
é navegar de cartola e bengala na mão de ferro
com castão lunar na gravidade destes sonhos.
Penso, penso em ti, como é o teu nome de cabelos?
Como procuras a tua morada sob as pontes
ou espreitas nas chaminés da grande fábrica
que se ergue no teu castelo de colina?
Mas danças, mas não ris, eu pelo meu lado
já vendi a minha alma a Belzebu,
e as crateras dos teus olhos são tão belas...
muito mais do que um olhar se espelha nelas,
os espectros que assim descem das estrelas
lá os vejo a bailar, a afeição
que um dia a mim também me deu a mão...


Alexandre Vargas

Amor


Cala-te, a luz arde entre os lábios,
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
essa perna é tua?, esse braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca,
também a terra morre.


Eugénio de Andrade

Infância



Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".


Guilherme de Almeida
Brasil

Casa deserta



Ah nada pior que a casa deserta,
sozinha, sozinha.

O fogão apagado e tudo sem interesse.
O mundo lá longe, para lá da floresta.
E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta…

Ah nada pior que estes dias e dias,
de cachimbo aceso, com as mãos inertes,
com todas as estradas inteiramente barradas,
ouvindo a floresta.
Com tudo lá longe, na casa deserta,
o vento soprando
e a chuva caindo, na noite caindo…

Há uma cancela que range nos gonzos
um velho cão de guarda que ladra sem motivo -
parece que é gente que vem a entrar…

E é só vento soprando, soprando
e a chuva caindo…

Mudaram muita vez as folhas da floresta.
Os olhos do homem são olhos de doido.
Fogão apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.

E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta…


Mário Dionísio

Numa praia


Em cada corpo recomeça o mundo,
mas onde então acaba este começo?
Amor não sabe mais o que é profundo,
vem da pele e respira só no verso.

Passamos a toalha pelo corpo,
com o suor a enxugar a morte:
há gotas de água fria no teu rosto,
em ti meus dedos lêem sua sorte.

Um riso nos chamou,fulgor ou seta,
e o dia se refez sem mais promessa.
Nos meus dedos ficou a ferida aberta:
só no teu corpo o mundo recomeça.


Luís Filipe Castro Mendes

É triste



é triste calar os gritos dos nus
que andam à chuva com as solas furadas
é triste ver entronizar um déspota
para quem guardamos forcas nos olhos

é triste fuzilar alguém de olhos vendados
esmagar com bombas gente como percevejos
é triste sabotar uma vida em botão
e odiar crianças por amarem a verdade.

é triste esquecer as feridas e o sangue
dar de ombros e por terra deixar bandeiras
é triste ignorar a guerra e as balas
ou fingir coragem ao lado dos tanques.

é triste morrer ao dobrar uma esquina
sem ver a flor nascida com a madrugada
é triste viver assim atolados no medo
à espera que outros morram por nós.


Joffre Rocha
Angola

16.2.11

Nasci na Ilha do Fogo


Nasci na Ilha do Fogo
Sou, pois, caboverdeano,
E disso tanto me ufano
Que por nada dera tal.
Se filho de Cabo Verde,
Assevero – fronte erguida –
Que me é honra a mais subida
Ser neto de Portugal.


Pedro Cardoso
Cabo Verde

A garça estória fiscal dos Estados Unidos



cheira a glândula o sotaque de nuvens
por razão leitos de ontem
estreito sol a última rua da alma
pés na boca o repouso oco farol
istos jejuns
encharcado e puro quilo
a poça mesmo pano adensa-se
o esqueleto em cascata infixa os estados unidos
outra toalha mineral
apurava perfumes o tempo
carregava sozinho nossos corpos
na derivação ou composição suados e sujos
infinitos e esgazelados ora eufónicos
elegíveis duros rascunhos
dobram os sentidos do horizonte
aquilos na alma ficam os tentáculos envelheciam

Abreu Paxe
Angola