31.1.08

Círculo Vicioso




As flores rareiam nos campos

Não faz mal
Desfolharei um pavão
no jogo do malmequer

E qualquer que seja a resposta
muito, pouco, nada
darei uma gargalhada
pela vaidade dos homens e dos bichos.


Ruy Guerra
Moçambique

Rôsinha



Rôsinha
eu estar chatiado
não ir trabalhar.
Rôsinha
agente aôje vai amar.
- Ouvi quirido
você sabe qui Chiquito
comeu manga verde
tem dor no barriga
agente aôje não vai amar.
Rôsinha
eli não vai chorar!
Eu vai comprar rimédio pra Chiquito
tu vai ver
eli ficar bom
eli ádi bricar.
Tira capulana Rôsinha
agente aôje vai amar!


Calane da Silva


Presença


Sou dos que ainda estão presentes
e bebem do amor a única ausência.

Quantos pedaços de mentiras
retenho na viscosidade do meu cuspo?

Quantas verdades apaixonadas
reclamam ansiosas o esperma das palavras?

Nenhumas, talvez, nenhumas...
escravizo o silêncio
e faço dele o meu mensageiro.

Estou presente em tudo ou mais
e aí onde me procurarem
será a minha próxima ausência.

Hélder Muteia
Moçambique

É preciso plantar




É preciso plantar
mamã
é preciso plantar

é preciso plantar
nas estrelas
e sobre o mar

nos teus pés nus
e pelos caminhos

é preciso plantar

nas esperanças proibidas
e sobre as nossas mãos abertas

na noite presente
e no futuro a criar

por toda a parte
mamã

é preciso plantar

a razão
dos corpos destruídos
e da terra ensanguentada
da voz que agoniza
e do coro de braços que se erguem

por toda a parte
por toda a parte
por toda a parte mamã

por toda a parte
é preciso plantar
a certeza
do amanhã feliz
nas caricias do teu coração
onde os olhos de cada menino
renovam a esperança

sim mamã
é preciso
é preciso plantar

pelos caminhos da liberdade

a nova árvore
da Independência Nacional.


Marcelino dos Santos
Moçambique

Manhã



É a manhã que vem
silhueta azul e branca
frescura doce de cana
flor de luz a desabrochar
Oh! Alvorada de diamante!

Oh, é a manhã que vem
silhueta azul e branca
missanga de sol e promessa!


Gualter Soares
Moçambique
Cantiga do batelão


Se me visses morrer
os milhões de vezes que nasci

Se me visses chorar
os milhões de vezes que te riste...

Se me visses gritar
os milhões de vezes que me calei...

Se me visses cantar
os milhões de vezes que morri
e sangrei...

Digo-te irmão europeu
havias de nascer
havias de chorar
havias de cantar
havias de gritar

E havias de sofrer
a sangrar vivo
milhões de mortes como Eu!!!

José Craveirinha


O Pescador Velho





Pescador vindo do largo
com o teu calçado de algas
diz-me o que trazes no barco
donde levantas a face

a tua face marcada
pelo sol de horas choradas
dá-me o teu peixe pescado
bem lá no fundo do mar

-nesta água não tem peixe-

pescador dá-me um só peixe
nem garoupa nem xaréu
só um peixinho de prata

-nesta água não tem peixe
foi tudo procurar deus
pró lado de Zanzibar.


Glória de Sant'Anna
Moçambique
Amanhã


Plena é a ilusão
só Deus imenso a sofrer.
Ouvirmos uma criança a gritar
e pensar que não somos nós um dia
homens na terra a chorar.

Não vivemos
a razão de estar vivos
e por isso é que despertamos
quietos depois de morrer.

José Craveirinha


Mulher de M'siro


O m'siro
encantamento dos meus olhos
perfaz a tua insular imagem.
No litoral do teu copo
a apoteótica espuma
do orgasmo das ondas.
Ó júbilo na falésia do canto.


Nelson Saúte
Moçambique

Ouamisi




Será desta luz d'equinócio o manto verde azul
quem te confere teu ar de canto singular?
Será que o mistério vem mais da luz iridiscente
que de tua alma errante em busca da vertigem?

Etiópia Sudão Novo Mundo e Extremo Oriente
escravos e canelas, baixelas de prata bordados.
Será que posso falar de omnipresente osmose
entre o sagrado e o grito mineral da carne?

Efebos e mulheres, conquistadores e naus
entre o simulacro de uns, de outros a firmeza,
neste santuário de almas, a génese irrompe

como se o génio da memória e da paisagem
se beijassem na imediatez do que reclamo
e do oceano imprevisível, nascesses tu, ilha.


Virgílio de Lemos
Moçambique

Muhípiti


É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.


Luís Carlos Patraquim

Naturalidade


Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem a raíz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não, é certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli


Pelo dever



PELO DEVER

de resistir e caminhar
pelos destroços da nossa utopia,
eis-nos aqui de novo, acocorados,
aqui onde o tempo pára
e as coisas mudam.

E PARA QUE O NOSSO SONHO RENASÇA

com a levitação do vento e do grão,
eis-nos aqui de novo,
passivos como os espelhos,
no tear da nossa existência.

ESTE SEMPRE SERÁ

O nosso amanhecer.
E a nossa perseverança
é como a da erva daninha
que lentamente desponta na pedra nua



Armando Artur



João Armando Artur nasceu na Zambézia, a 28 de Dezembro de 1962. Pertence à direcção da Associação dos Escritores. è um dos poetas revelados com o movimento Charrua.


Metamorfose



quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento do mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade

os jacarandás explodiam na alegria secreta
de serem vagens e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
para que o soubesse
na madeira da infância
sobre a casa

a Mãe não era ainda mulher
e depois ficou Mãe
e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e a metáfora

mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze
as rótulas já não tremulam não
e a sete de Março chama-se Junho desde um dia de há muito
com meia dúzia de satanhocos moçambicanos
todos poetas gizando a natureza e o chão no parnaso das balas
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo
enquanto os tocadores de viola
com que latas de rícino e amendoim
percutem outros tendões de memória
e concreta
a música é o brinquedo
a roda
e o sonho
das crianças que olham os casacos
e riem
na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste
Aos Gritos

Luís Carlos Patraquim


Luís Carlos Patraquim nasceu em Lourenço Marques (actual Maputo), em 1953.
Colaborador do jornal “A Voz de Moçambique”, refugia-se na Suécia em 1973. Regressa ao país em Janeiro de 75 integrando os quadros do jornal “A Tribuna”. Membro do núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique) e do Instituto Nacional de Cinema (INC) onde se mantém, de 1977 a 1986, como roteirista/argumentista e redactor principal do jornal cinematográfico “Kuxa Kanema”. Criador e coordenador da “Gazeta de Artes e Letras” (1984/86) da revista “Tempo”.
Desde 1986 residente em Portugal, colabora na imprensa moçambicana e portuguesa, em roteiros para cinema e escreve para teatro. Foi consultor para a “Lusofonia” do programa “Acontece”, de Carlos Pinto Coelho e é comentador na RDP-África.

Mastro


Mastro.
Mastro.
Eis que dentro deste instante
o mundo se principia a iniciar.
Musgo verde
sal das praias
resto que nutro
no hálito quente dos animais.

Eduardo White
Moçambique

País de mim



42.
O peso da vida!
Gostava de senti-lo à tua maneira
e ouvi-la crescer dentro de mim,
em carne viva,

não queria somente
rasgar-te a ferida,
não queria apenas esta vocação paciente
do lavrador,
mas, também, a da terra
e que é a tua

Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido

Deixa nele crescer o sol
até tarde,
deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.

Eduardo White
Moçambique

Esperança



É como se alguém me pisasse
e eu me risse
- uma alegria toda cor e luz.

É como se alguém me batesse
e eu cantasse
- um canto de amizade e paz.

É como se alguém me cuspisse
e eu passasse indiferente
- um caminho claro como o dia.

É como se alguém me apunhalasse
e eu o abraçasse
- um fogo de fraternidade humana.

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome
este vício secreto e interior
esta badalada do relógio da alma
este pulsar no coração do mundo
esta consciência duma ferida em chaga
este sentir a dor duma mulher pobre e faminta.

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome
Ó silencioso grito dos camponeses sem terra!
Ó vento da certeza que os carrascos temem!


Vasco Cabral (poeta guineense)


Aspiração


Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas
Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar
ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos
Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida
E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado
Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco
Ainda a minha vida
oferecida à Vida
ainda o meu desejo
Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer
E nas sanzalas
nas casas
no subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda
O meu desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.


Agostinho Neto (poeta angolano)


A mãe negra embala o filho




Canta a remota canção
Que seus avós já catavam

Canta, canta para o céu
Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,
Que o céu
Às vezes também é negro.

No céu tão estrelado e festivo
Não há branco, não há preto,
Não há vermelho e amarelo.
Todos são anjos e santos
Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa
Nem carinhos de ninguém...

A mãe negra é triste, triste,
E tem um filho nos braços...

Mas olha o céu tão estrelado
E de repente sorri.
Parece-lhe que cada estrela
É uma mão acenando
Com simpatia e saudade...


Aguinaldo Fonseca
Cabo Verde


De longe



Não chores Mãe... Faz como eu, sorri!
Transforma as elegias de um momento
em cânticos de esperança e incitamento.
Tem fé nos dias que te prometi.

E podes crer, estou sempre ao pé de ti,
quando por noites de luar, o vento,
segreda aos coqueirais o seu lamento,
compondo versos que eu nunca escrevi...

Estou junto a ti nos dias de braseiro,
no mar...na velha ponte,... no Sombreiro,
em tudo quanto amei e quis p'ra mim...

Não chores, mãe!... A hora eh de avançadas!...
Nos caminhamos certos, de mãos dadas,
e havemos de atingir um dia, o fim...

Alda Lara (poetisa angolana)

Vegetal e só


É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.


Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
febril de tantos lábios,
sem nenhum rumor de lágrimas
nas pálpebras acesas.


Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como um rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.


Eugénio de Andrade


Eu e Tu


Dois! Eu e Tu, num ser indispensável!
Como
Brasa e carvão, centelha e lume, oceano e areia,
Aspiram a formar um todo, – em cada assomo

A nossa aspiração mais violenta se ateia...

Como a onda e o vento, a Lua e a noite, o orvalho e a selva

– O vento erguendo a vaga, o luar doirando a noite,
Ou o orvalho inundando as verduras da relva –
Cheio de ti, meu ser de eflúvios impregnou-te!


Como o lilás e a terra onde nasce e floresce,
O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,

O vinho e a sede, o vinho onde tudo se esquece,

– Nós dois, de amor enchendo a noite do degredo,


Como partes dum todo, em amplexos supremos
Fundindo os corações no ardor que nos inflama,

Para sempre um ao outro, Eu e Tu, pertencemos,

Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama...


António Feijó

Beatitude Amarga
A Silva Ramos, da Academia Brasileira


Esqueço-me a admirar os teus olhos profundos
E imagino que estou sentado à beira-mar:

Vejo as ondas a erguer-se, arquipélagos, mundos,
Naufrágios, temporais, mar de leite e de luar...


Medroso, o coração tenta fugir, mas treme:

O abismo atrai o abismo! E, desvairadamente,

Despenha-se no mar, como um barco sem leme,

De onda em onda, à mercê do vento e da corrente.


Vejo-a ainda um momento a esconder-se na bruma,

E sinto uma impressão de angústia e de pesar,

– Seguindo ansiosamente o seu rasto de espuma –

Por supor que partiu para não mais voltar!

Mas tu falas, e, ao som da tua voz, desperto;
Volto a mim desse estranho sonho, a alma perdida,
Com o vago terror e o pensamento incerto

Do naufrágio que à praia ainda chegou com vida.


António Feijó

Quando eu era pequenino




Quando eu era pequenino,
Gostava de ouvir contar
Histórias de princesinhas
Encantadas ao luar.

Havia então lá em casa
Uma criada velhinha,
A Sérgia contava histórias
- e que graça que ela tinha!

Lendas de reis e de fadas,
Inda me encheis a lembrança!
Que saudades de vós tenho,
ó meus contos de criança!

“Era uma vez...” As histórias
Começavam sempre assim;
E eu, então, sem me mexer,
Ouvia-as até ao fim.

Lembro-me ainda tão bem!
Os irmãos à minha beira,
Calados! E a boa Sérgia
Contava desta maneira:

“Era uma vez...” E depois,
Olhos fitos nos seus lábios,
Ouvia contos sem conta
De gigantes e de sábios”.

“Era uma vez...” E, por fim,
A voz da Sérgia parava...
E assim como eu te contei
Era como ela contava.

Ai! que saudade, que pena,
Que nos meus olhos tu vês!
Eu sentava-me e ela, então,
Começava: - “Era uma vez...”


Adolfo Simões Muller
Búzio do mar


Praguejam pescadores: Ora esta, ora esta;
O mar na praia é um tambor em festa!

Danado e rouco ele há lá quem o fateixe!
O mar não anda bom...
E som, e som, som-som,
Deita a fugir o peixe.

Meus patrícios, poveiros tal e qual
É a nobreza maior de Portugal!

Mesmo sou duma aldeia à beira-mar,
E ouço-o bem duas léguas em redol:
Meio ano a lavoirar,
Outro meio ao anzol!

Meus patrícios cada qual
Tem o seu bote que é o seu casal.

Mas o oceano, o mar, não anda bom:
Ondas são trambolhões, e trambolhões de som!

Ó mar, meu brutamontes,
Música, deixa ouvi-la da noitinha;
Eu quero ouvir o murmurar das fontes
Que a noite já se avizinha...

Afonso Duarte


Flores do Verde Pinho


Ó meu jardim de saudades,
Verde catedral marinha,
E cuja reza caminha
Pelas reboantes naves...

Ai flores do verde pinho,
Dizei que novas sabedes
Da minha alma, cujas sedes
Ma perderam no caminho!

Revejo-te e venho exangue;
Acolhe-me com piedade,
Longo jardim da saudade
Que me puseste no sangue.

Ai flores do verde ramo,
Dizei que novas sabedes
Da minha alma, cujas sedes
Ma alongaram do que eu amo!

- A tua alma em mim existe,
E anda no aroma das flores,
Que te falam dos amores
De tudo o que é lindo e triste.

A tua alma, com carinho,
Eu guardo-a, e deito-a, a cantar,
Das flores do verde pinho
- Àquelas ondas do mar.


Afonso Lopes Vieira


Words, words...
Ao Guedes Teixeira


Contam que em pequenino costumava,
Ao ver-me num cristal reproduzido,

Beijar a própria boca, em que julgava

Ver a boca de alguém desconhecido

Cresci. Amei-a. E tão alheio andava,

No sonho por seus olhos promovido,

Que em vez de cartas que ela me enviava,

Eu lia o que trazia no sentido...

Rodou o tempo. Estou doente e velho...

Agora, se me acerco dum espelho...

Oh meus cabelos, noto que alvejais...

E as cartas dela, se as releio agora,

Só vejo por aquelas linhas fora

Palavras e palavras... Nada mais!


Augusto Gil

Versos de orgulho


O mundo quer-me mal porque ninguém

Tem asas como eu tenho! Porque Deus

Me fez nascer Princesa entre plebeus

Numa torre de orgulho e de desdém!


Porque o meu Reino fica para Além!

Porque trago no olhar os vastos céus,

E os oiros e os clarões são todos meus!

Porque Eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!


O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!

O jardim dos meus versos todo em flor,

A seara dos teus beijos, pão bendito,


Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços…

São os teus braços dentro dos meus braços:

Via Láctea fechando o Infinito!…

Florbela Espanca




30.1.08


Canção da Primavera


(Para Érico Veríssimo)


Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enloqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!



Mário Quintana (poeta brasileiro)



Charneca em flor


Enche o meu peito, num encanto mago,

O frémito das coisas dolorosas…

Sob as urzes queimadas nascem rosas…

Nos meus olhos as lágrimas apago…

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas

Murmurar-me as palavras misteriosas

Que perturbam meu ser como um afago!


E, nesta febre ansiosa que me invade,

Dispo a minha mortalha, o meu burel,

E, já não sou, Amor, Soror Saudade…


Olhos a arder em êxtases de amor,

Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca

29.1.08

Mais uma noite, amor


Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

Fernando Pinto do Amaral

Pastoral


Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.
Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.
Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

António Gedeão

Pequeno Poema


Quando eu nasci
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais ...
Somente,
esquecida das dores
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém ...

Para que o dia fosse enorme
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos da minha Mãe ...


Sebastião da Gama






Variações da Saudade


Saudade, pão de sustento,
meu vinho de consagrar
ai, Deus, i u é, Saudade,
sem ti não posso passar!

Saudades vivas da Terra,
- vivas saudades do Mar...
Oh, o desejo impossível
de se partir e ficar!

Sereias, Nau Catrineta,
Sete-Partidas do Mundo...
- Quem é que mede a Saudade,
se é como um poço sem fundo ?!

«A vida acaba na morte,
não pode a alma morrer!»
Oh, a saudade sem nome
de ser a gente e não ser!


António Sardinha



Interrogação


Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

Camilo Pessanha



À beira de água fiz erguer meu Paço
Da Rei-Saudade das distantes milhas:
Meus olhos, minha boca eram as ilhas;
Pranto e cantiga andavam no sargaço.

Atlântico, encontrei no meu regaço
Algas, corais, estranhas maravilhas!
Fiz das gaivotas minhas própias filhas,
Tive pulmões nas fibras do mormaço.

Enchi infusas nas salgadas ondas
E oleiro fui que as lágrimas redondas
Por dentro fiz de vidro e, dentro, de água.

Os vagalhões da noite me salvavam
E, com partes iguais de sal e mágoa,
Minhas altas janelas se lavavam.


Vitorino Nemésio



Trova do amor lusíada



Meu amor é marinheiro
Meu amor anda no mar.
Meu amor disse que eu tinha
Na boca um gosto a saudade.

E os cabelos onde nascem
Os ventos e a liberdade
Meu amor é marinheiro
Meu amor mora no mar.

Seus braços são como o vento
Ninguém os pode amarrar.
Meu amor é marinheiro,
Meu amor mora no mar.


Manuel Alegre



Cavalo de Palavras



Cavalo de palavras quem me agarra
quem aparta de mim esta saudade?
Quem fez da minha voz uma guitarra
tocada pelos dedos da verdade?

Cavalo de palavras quem me dera
poder erguer a voz. Calar o pranto.
Trazer no meu poema a primavera
por dentro duma flor de verde espanto.

Cavalo de palavras meu amigo
meu soneto da mágoa mais acesa
pelas praias do sangue vou contigo

percorrer esta língua portuguesa
procurando o lugar que é o abrigo
das enormes gaivotas da tristeza."


Joaquim Pessoa


À deriva



À deriva
no mar da noite
este pequeno sentimento de culpa
de amor e culpa
que traz em si insónia
e saudade do tempo.

À deriva
este pequeno assunto
à espera de cair na rede da memória
à espera de surgir
à tona da maré.

À deriva
este sorriso
que não sei de quem é
que vem flutua assoma
com raízes de líquen
bafo de alga
de alguém que nunca vi

Ou talvez visse me olhasse e me sorrisse
e já esqueci.


Rosa Lobato de Faria

Ao longe o Mar


Porto calmo de abrigo
De um futuro maior
Ainda não está perdido
No presente temor
Não faz muito sentido
Já não esperar o melhor
Vem da névoa saindo
A promessa anterior
Quando avistei ao longe o mar
Ali fiquei
Parada a olhar
Sim, eu canto a vontade
Canto o teu despertar
E abraçando a saudade
Canto o tempo a passar
Quando avistei ao longe o mar
Ali fiquei
Parada a olhar
Quando avistei ao longe o Mar
Sem querer, deixei-me ali ficar


Pedro Ayres de Magalhães


O Suspiro


Voai, brandos meninos tentadores,
Filhos de Vénus, deuses da ternura,
Adoçai-me a saudade amarga e dura,
Levai-me este suspiro aos meus amores:

Dizei-lhe que nasceu dos dissabores
Que influi nos corações a formosura;
Dizei-lhe que é penhor da fé mais pura,
Porção do mais leal dos amadores:

Se o fado para mim sempre mesquinho,
A outro oferece o bem de que me afasta,
E em ais lhe envia Ulina o seu carinho:

Quando um deles soltar na esfera vasta,
Trazei-o a mim, torcendo-lhe o caminho;
Eu sou tão infeliz, que isso me basta.


Bocage



Ausência


Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.


Sophia de Mello Breyner Andersen



Último Soneto


Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste...
- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço -
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...


Mário de Sá-Carneiro


Saudades


Saudades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!


Florbela Espanca






Há um murmúrio na floresta,
Há uma nuvem e não há.
Há uma nuvem e nada resta
Do murmúrio que ainda está
No ar a parecer que há.

É que a saudade faz viver,
E faz ouvir, e ainda ver,
Tudo o que foi e acabará
Antes que tenha de o esquecer
Como a floresta esquece já.


Fernando Pessoa