30.10.07


Não passarão!


Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!

Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Miguel Torga

29.10.07


Igual - desigual


Eu desconfiava:
Todas as histórias em quadrinhos são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os "best-sellers" são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.
Todos os partidos políticos são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda são iguais.
Todas as experiências de sexo são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas, e rondóis são iguais
e todos, todos os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais, iguais, iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.

Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho ímpar.


Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)

Qualquer coisa de intermédio

Eu não sou um nem outro:
Sou qualquer coisa de intermédio
M. de Sá-Carneiro



Se eu fosse o outro,
o do chapéu macio e do bigode
eternizado em cúbico arremedo,
angústia dividida em tantas partes
e óculos redondos,
podia-te contar eu guardador e sonhos

Se eu fosse o outro,
o delicado e bêbedo génio de nós todos,
o que amou estranho e sabia dizer
coisas enormes numa pequena língua
e fraco império,
se eu fosse aquele inteiro
ditado de exageros e exclusões,
falava-te de tudo em ingleses versos

E mesmo se não foi ele quem disse
( e podia até ser, que eram amigos
e o século a nascer arrepiava como já não
o fim) há razão nessa história do pilar
e do tédio a escorrer de um
para o outro

Ana Luísa Amaral

28.10.07


A orelha de Vincent


Nem as cigarras, nem os flancos
acesos das searas,
nem a pensativa cor dos lírios
ou mesmo a bárbara
luz do sul têm agora
morada no seu coração;
como falcão ferido
a orelha não pára de sangrar;
sangra de amor, do negro e tresloucado
e transbordante amor do mundo,
e desprevenido e magoado.


Eugénio de Andrade



Caravelas


Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.


Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!


Se eu sempre fui assim este Mar-Morto,
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram.


Caravelas doiradas a bailar...
Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...


Florbela Espanca



Debussy

Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Um novelozinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma criança
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase a adormecer o balança
- Psio... -
Para cá, para lá...
Para cá e...
- O novelozinho caiu.

Manuel Bandeira (poeta brasileira)


Os últimos mortos da Pide


Do meio dos telhados donde gatinhava
o regime que fora de salões e enxovias
bolçava contra a rebentação da cidade
a pedrada de tiros do rancor acossado.
A biltre obediência das inquirições,
das negaças, dos traços toldados,
dos pátios chulos onde grimpavam torturas
como hera de sangue pelas mãos caladas,
ia ainda metralhar à queima-roupa.
Sobre ti, sobre o outro além, sobre a alegria de todos.
A sanha era qualquer um: matavam
esses últimos sinais do que tínhamos sido
Saíam em braços anónimos do erro nocturno
para a claridade que ninguém ainda conhecia.


Joaquim Manuel Magalhães



Amarelo quebrado


As casas ganham um ar mais mortal
na tristeza depois de não ter havido coito.
Vão depressa as nuvens, tão depressa, levam pombos
e telhados agudos com ardósia quebram
em radiações de treva na água aprisionada.

Já tínhamos falado de tudo na véspera,
do adiamento, da sufocação,
mas senti que não seria assim.
Com a garganta ao contrário da Holanda,
seca, incapaz de falar.

Vi os gráficos do sangue empresarial.
Na floração das vendas, o risco suspendia
câmbios de gasolina sobre mim.
Ao som do telefax, um visor de números
era agora o teu rosto.

Por cima do casaco hesitavam as mãos
de novo perdidas no medo de prender-se
ao metal tecido de milagre da saliva.
Eram mãos que não sabiam pousar.

A experiência agora é esta: chamar desamor
à emoção que não entende o que deseja,
confunde os sentimentos numa aridez tão pesada
que nem eu percebo como deixa voar um avião
por este sem fim de céu que traz o fim.

Mas foi horas antes que findou.
Ia a noite avançando, escurecia o hotel
e as mãos ficaram presas. Tanto tempo,
tanto tempo nenhum.


Joaquim Manuel Magalhães



Queixa


Vida!
Que te pedi a mais
Que um mortal não mereça?
Ou queres que nenhum filho
Conheça
A plenitude?
Pude
O que me consentiste.
Mas vou triste
Do mundo.
Cavei,
Cavei,
E abri um poço sem chegar ao fundo.

Miguel Torga


Devia morrer-se de outra maneira


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...


José Gomes Ferreira

26.10.07


Antes que seja tarde


Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.


Manuel da Fonseca


25.10.07

Dez reis de esperança

Hebergeur d'images

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanindade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

António Gedeão

Santo e senha


Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.

Miguel Torga

23.10.07


Água


Água a correr na fonte.
Uma quimera líquida que sai
Das entranhas do monte
A saber ao mistério que lá vai…

Pura
Branca, inodora e fria,
Cai numa pedra dura
E desfaz o mistério em melodia.


Miguel Torga


22.10.07


Quem é que abraça o meu corpo


Quem é que abraça o meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito?
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
- És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.


António Botto

Oração para aviadores


Santa Clara, clareai
Estes ares.
Dai-nos ventos regulares,
De feição.
Estes mares, estes ares
Clareai.

Santa Clara, dai-nos sol.
Se baixar a cerração,
Alumiai
Meus olhos na cerração.
Estes montes e horizontes
Clareai.

Santa clara, no mau tempo
Sustentai
Nossas asas.
A salvo de árvores, casas
E penedos, nossas asas
Governai.

Santa Clara, clareai.
Afastai
Todo risco.
Por amor de S. Francisco,
Vosso mestre, vosso pai,
Santa clara, todo risco
Dissipai.

Santa Clara, clareai.

Manuel Bandeira (poeta brasileiro)

Enquanto a Chuva Cai


A chuva cai. O ar fica mole...
Indistinto... ambarino... gris...
E no monótono matiz
Da névoa enovelada bole
A folhagem como o bailar.

Torvelinhai, torrentes do ar!

Cantai, ó bátega chorosa,
As velhas árias funerais.
Minh'alma sofre e sonha e goza
À cantilena dos beirais.
Meu coração está sedento
De tão ardido pelo pranto.
Dai um brando acompanhamento
À canção do meu desencanto.

Volúpia dos abandonados...
Dos sós... - ouvir a água escorrer,
Lavando o tédio dos telhados
Que se sentem envelhecer...

Ó caro ruído embalador,
Terno como a canção das amas!
Canta as baladas que mais amas,
Para embalar a minha dor!

A chuva cai. A chuva aumenta.
Cai, benfazeja, a bom cair!
Contenta as árvores! Contenta
As sementes que vão abrir!

Eu te bendigo, água que inundas!
Ó água amiga das raízes,
Que na mudez das terras fundas
Às vezes são tão infelizes!

E eu te amo! Quer quando fustigas
Ao sopro mau dos vendavais
As grandes árvores antigas,
Quer quando mansamente cais.

É que na tua voz selvagem,
Voz de cortante, álgida mágoa,
Aprendi na cidade a ouvir
Como um eco que vem na aragem
A estrugir, rugir e mugir,
O lamento das quedas-d'água!

Manuel Bandeira (poeta brasileiro)

21.10.07


Num exemplar das Geórgicas


Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.


Eugénio de Andrade



A noite desce...



Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!


Assim mãos de bondade me beijassem!
Assim me adormecessem! Caridosas
Em braçados de lírios, de mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!


A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe embriagada, louca!


E a noite vai descendo, sempre calma...
Meu doce Amor tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!


Florbela Espanca






Meu mal


A meu irmão


Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,
Eu sei o nome ao meu estranho mal:
Eu sei que fui a renda dum vitral,
Que fui cipreste, caravela, dor!


Fui tudo que no mundo há de maior:
Fui cisne, e lírio, e águia, e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou. um cínico riso de Chamfort...


Fui a heráldica flor de agrestes cardos,
Deram as minhas mãos aroma aos nardos...
Deu cor ao eloendro a minha boca...


Ah! de Boabdil fui lágrima na Espanha!
E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha,
Mágoa não sei de quê! Saudade louca!


Florbela Espanca


L'Angélus de Millet


Recolhidos
os camponeses de Millet olham a terra,
quando o céu, às Trindades, os convoca.

Forquilha, cesto, carro,
homem, mulher
- já tão longe na história!


Alexandre O'Neill

Errância


A voar por cima de Samarcanda,
Aceno à súbita memória
De meus avós almocreves
Que, por acaso, nunca aqui passaram
Quando iam ao Porto
Em machos guizalheiros,
E onde comiam tripas, a buscar as especiarias de lá.
De primeira classe, num avião francês,
A enjoar champanhe e caviar,
Vou a Macau falar de Camões.
Em nome dele, e por eles,
Obreiros dum império de ilusões,
Vou, como novo andarilho,
Garantir ao futuro que Portugal
Terá sempre o tamanho universal
Da infinda inquietação de cada filho.


Miguel Torga


Tapei os olhos


Tapei os olhos
para não ver as rosas
-corações de fora
dos nossos mortos
vestidos de terra,
calcados de urtigas. ..

Tapei os ouvidos
para não ouvir os pássaros
que quando cantam
iluminam de pétalas
os ramos secos
das árvores nuas.

Só quero ouvir o ódio
dos que roem pão de trevas.
Só quero ver as rosas
dos corpos vergastados de pústulas.

Só quero ver a terra
nua e queimada
a abrir-se em boca
para cantar connosco
o desespero da esperança
dum mundo diferente
com flores e pássaros dentro dos homens.


José Gomes Ferreira

18.10.07

Anjo daltônico



Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.

Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.

Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.

Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

16.10.07

Sítio em Vista


Trazem as árvores insignificantes
o maior distúrbio aos ventos; arredam-nos,
alçam outros armazéns sonoros
casas de relâmpagos e de cataclismos.

Chega-se. Parte-se. Segreda-se
de seres indeterminados que movem
resistência. Pelejam mais.

E quando a sua pele se usa vence
a moda, mudança de uma árvore para a mundanal
outra árvore carregada.


Podem aliás irromper quentes florestas.
Abate-se sobre o lenhador a opulência, o triunfo
do fruto desenvolvido no seu trono
iluminado por quatro archotes de seiva.


Há no mundo inteiro uma, quando muito, rua
difícil de encontrar.

São os campos, gente humílima, absorta em grãos
de areia, praia inequívoca onde,
na estação tardia, os do mar se deitam.
Algumas folhas, de livros, assinalam o ponto.
Algumas cartas, de marear,
não chegam.


Criaturas que se reproduziam em interstícios
que se deitavam em divâs
cada vez mais estreitos

a luminosa vocação, a luminosidade
de uma terra sábia e rotunda
suplantava aqueles gritos portadores
de uma defunta órfica voz

Eram as criaturas presas ,
do seu século
retraídas nos olhos mal afeiçoados

Filhos mais velhos a atentarem
em como o corpo incha e se perfaz a polpa
como o limite se delimita corpo a corpo
e engorda

Cobriam-se as folhas de uma letra hirsuta
e os mais novos sorriam como lábios.

Luiza Neto Jorge

Canção do Semeador


Na terra negra da vida,
Pousio do desespero,
É que o Poeta semeia
Poemas de confiança.
O Poeta é uma criança
Que devaneia.

Mas todo o semeador
Semeia contra o presente.
Semeia como vidente
A seara do futuro,
Sem saber se o chão é duro
E lhe recebe a semente.


Miguel Torga


15.10.07


Diálogo


Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro
continuando através de séculos impossíveis.

Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.

Nossas perguntas e resposta se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos.
Olhos que choraram.

Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas.
Mas com uma voz que não se importa...
E um mar de estrelas se balança
entre o meu pensamento e o teu.

Mas um mar sem viagens.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)


Em um retrato


De sob o cômoro quadrangular
Da terra fresca que me há-de inumar,

E depois de já muito ter chovido,
Quando a erva alastrar com o olvido,

Ainda, amigo, o mesmo meu olhar
Há-de ir humilde, atravessando o mar,

Envolver-te de preito enternecido,
Como o de um pobre cão agradecido.


Camilo Pessanha


14.10.07


Canção


Vem da canção de Verlaine
a chuva
e ninguém,
nem mesmo o sol,
tem pés tão formosos.
Na boca
o verão, na colina
o navio,
O ar,
em cada rua o ar,
dança comigo.


Eugénio de Andrade



Volúpia


No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!


A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!


Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!


E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...


Florbela Espanca








E o espaço fica - ah fica - e ninguém ousa
mais que espreitar a medo para dentro dele
pelas grades de um verso em que palpita a vida,
tão pura e tão ausente como quando um dia
primeiro ela vibrou num cheiro de maresia,
ascendendo das águas, luminosa,
num corpo ainda escamoso cuja pele
seria este sabor de espaço e de ternura
em solidão perfeita descobrindo o amor.

Jorge de Sena

O regresso


"Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar.
Ouvi, agora, Senhores
Uma história de pasmar..."

A Mãe correu à varanda,
Bem longe de imaginar
Que o alarme desejado
Vinha dum cego a cantar:

"Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar..."

A Mãe abriu num soluço
O coração a sangrar,
Porque a sola era tão rija
Que a não podiam tragar...

"Deitam sortes à ventura
Qual se havia de matar".
(A Mãe tinha pão na arca
E não lho podia dar!)

"Logo foi cair a sorte..."
(Que sorte tão singular!).
O gageiro olhava, olhava,
Mas só via céu e mar...

"Alvíssaras, Capitão..."
E o vento a enrodilhar
A voz do homem da gávea
Na do ceguinho a cantar!

"A minha alma é só de Deus,
O corpo dou-o eu ao mar..."
A Mãe, que nada podia,
Já só podia rezar...

"Deu um estoiro o demónio,
Acalmaram vento e mar."
E quando o cego acabou
Estavam em terra a varar...

Miguel Torga


Assim o mar...


Assim o mar. Ainda hoje o ouço sem o ouvir
na espuma como dantes nos paredões da Foz.
(“Cala-te” - ordenei-lhe mais tarde com outra voz.)

Mas aos vinte anos andava eu de penedo em penedo,
de praia em praia, de Sol em Sol, em busca do cofre
onde fechara este segredo,
agora finalmente revelado:

“não há vida nem morte,
mas um conjunto
de sonho,
futuro,
presente,
passado
- angústia de, mesmo sem começar,
tudo ter acabado há muito.”


José Gomes Ferreira



Gozo IX


Ondula mansamente a tua língua
de saliva tirando
toda a roupa...
já breves vêm os dias
dentro de noites já
poucas.
Que resta do nosso
gozo
se parares de me beijar?
Oh meu amor...
devagar...
até que eu fique louca!
Depois... não vejas o mar
afogado em minha
boca!


Maria Teresa Horta

12.10.07

Poema à Pátria




Ó grande país
Tu aderiste também.
Teus urubus são inquietados
Nos teus ares altíssimos pelos aviões.
Nos teus céus os anjos já não podem solfejar,
Sufocados de fumaça, importunados pelo pessoal
Do Limbo.

Tu vais ficar irremediavelmente
Toda a América
Irremediavelmente gêmeo,
Irremediavelmente comum.

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

9.10.07


A largada


Foram então as ânsias e os pinhais
Transformados em frágeis caravelas
Que partiam guiadas por sinais
Duma agulha inquieta como elas...

Foram então abraços repetidos
À Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.

Foram então as velas enfunadas
Por um sopro viril de reacção
Às palavras cansadas
Que se ouviam no cais dessa ilusão.

Foram então as horas no convés
Do grande sonho que mandava ser
Cada homem tão firme nos seus pés
Que a nau tremesse sem ninguém tremer.

Miguel Torga

8.10.07


Suavíssima

Hebergeur d'images

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente . . .

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma . . .
Fica-se longe, quase morta, como ausente . . .
Sem ter certeza de ninguém . . . de coisa alguma . . .
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente,
De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma . . .

E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente . . .

Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .
Tão para lá!
. . . No fim da tarde . . . além da bruma . . .
E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma . . .
Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma . . .
E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . .


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

7.10.07


Adagio Sostenuto


A música outra vez, de vaga
em vaga, colina
em colina;
concertada voz de sete
estrelas, primeira respiração
do mundo, alta
e prometida harmonia;
dói, fere
fundo; também apazigua,
acaricia, ilumina
a terra, tornada
próxima; de colina em colina,
vaga em vaga - a música,
nua, bárbara.


Eugénio de Andrade



Sem remédio


Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou…
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio.
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!


Florbela Espanca






Vida

Choveu!
E logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliáceas.
Foi bem fecunda, a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liliáceas!

Calquem.
Recal-quem, não o afogam.
Deixem.
Não calquem.
Que tudo invadam.
Não as extinguem.
Porque as degradam?
Para que as calcam?
Não as afogam.
Olhem o fogo que anda na serra.
É a queimada...
Que lumaréu!
Podem calcá-lo, deitar-lhe terra,
Que não apagam o lumaréu.

Deixem!
Não calquem!
Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta além.
- E se arde tudo?
- Isso que tem?
Deitam-lhe fogo, é para arder...


Camilo Pessanha



Drama


A quem falo no mundo? Por quem foi
Esta bandeira branca de poeta?
A quem descubro a chaga que me rói
Por não ser seu artista e seu profeta?

A quem arranco com beleza a seta
Do calcanhar humano que lhe dói?
A quem vejo chegado à sua meta,
Novo senhor da terra e novo herói?

A nenhum homem, que a nenhum conheço.
Água de um rio que não tem começo,
Nas duas margens sinto o mesmo não.

Mas na direita a vida é gasta e velha...
Só na outra uma chama se avermelha
Capaz de me aquecer o coração.

Miguel Torga


Kyrie


Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e de paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!


José Carlos Ary dos Santos