28.2.09

Pelo Voo de Deus quero me guiar



Não quero aparelhos
para navegar.
Ando naufragado,
ando sem destino.
Pelo voo dos pássaros
quero me guiar.
Quero Tua Mão
para me apoiar,
pela Tua Mão
quero me guiar.
Quero o voo dos pássaros
para navegar.
Ando naufragado,
quero Teus Cabelos
para me enxugar!
Não quero ponteiro
para me guiar.
Quero Teus Dois Braços
para me abraçar.
Ando naufragado,
quero Teus Cabelos
para me enxugar.
Não quero bússolas
para navegar,
quero outro caminho
para caminhar.
Ando naufragado,
ando sem destino,
quero Tua Mão
para me salvar.


Jorge de Lima
Brasil
Mulher proletária


Mulher proletária — única fábrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.

Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

27.2.09

Curvo-me


Curvo-me ao obstinado peso das raízes.
Mais alto se erguem os morosos frutos
da inquietude. Por todo o meu corpo
animais em deserção, bélicos murmúrios,
impendentes murmúrios, desdenhada fortuna.

Não sei de barcos, não sei de pontes,
para outro tão melodioso território.
Afeiçoados ficaram os olhos ao sonhado
verde dos campos. Derrotados sob o
adivinhado zelo do sol por quantos dias
a ilha estremece ao temor da sede
e da ruína.

Deram-lhe navegadores nome de santo,
quando à vista das angras lágrimas
e gritos se confundiram. E na hora terreal,
feito o sinal da cruz, divisa de quem
por tão longes terras os mandara navegar,
um destino de penumbra ali se traçou.

E ficámos náufragos, irmãos dos chibos,
pela ocidental terra que o dia já desnuda.
Pelos sinos da matriz avisando da inexorável
aproximação dos corsários (um tempo
de rapina subjaz ainda na memória desses
anos) eu vos saúdo, velho cadamosto,
diogo gomes, antónio da noli; eu vos saúdo
desde esses picos de sede de onde a noite
mais veloz se confunde com os desfraldados
estandartes da alegria.


José Luís Hopffer Almada
Cabo Verde

Sempre disse



Poesia não é dactilografia
Poesia é sentir a força do cosmos,
Deus (se ele existe) em cada folha, em cada ser,
O voar dos pássaros, os olhos de uma criança.

Casa do peito como um relógio
Batendo, aurora boreal magnética
Natureza em pleno movimento…

Escriturar versos, é enovelar verbos
Pura empolada de palavras
Pluma de asa quebrada
Exercício redigido sem alma.

Observa as estrelas do céu, poeta!
Cada linha de uma folha caída
De uma árvore em Outono,
As pedras deitadas num deserto
Beijadas pelo vento norte, música
Nos teus ouvidos cantando.

Sente a simplicidade complexa das coisas, poeta!...
O grande e o pequeno, deste universo
Infinito…


Tchalê Figueira
Cabo Verde

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e a genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

Maria do Rosário Pedreira


O grande desafio




Naquele tempo
A gente punha despreocupadamente os livros no chão
ali mesmo naquele largo - areal batidos dos caminhos passados
os mesmos trilhos de escravidões
onde hoje passa a avenida luminosamente grande
e com uma bola de meia
bem forrada de rede
bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves
em alegre folguedo, entremeando caçambulas
... a gente fazia um desafio...
O Antoninho
Filho desse senhor Moreira da taberna
Era o capitão
E nos chamava de ó pá,
Agora virou doutor
(cajinjeiro como nos tempos antigos)
passa, passa que nem cumprimenta
- doutor não conhece preto da escola.
O Zeca guarda-redes
(pópilas, era cada mergulho!
Aí rapage - gritava em delírio a garotada)
Hoje joga num clube da Baixa
Já foi a Moçambique e no Congo
Dizem que ele vai ir em Lisboa
Já não vem no Musseque
Esqueceu mesmo a tia Chiminha que lhe criou de pequenino
nunca mais voltou nos bailes de Don´Ana, nunca mais
Vai no Sportingue, no Restauração
outras vezes no choupal
que tem quitatas brancas

Mas eu lembro sempre o Zeca pequenino
O nosso saudoso guarda-redes!
Tinha também
tinha também o Velhinho, o Mascote, O Kamauindo...
- Coitado do Kamauindo!
Anda lá na casa da Reclusão
(desesperado deu com duas chapadas na cara
do senhor chefe
naquele dia em que lhe prendeu e lhe disparatou a mãe);
- O Velhinho vive com a Ingrata
drama de todos os dias
A Ingrata vai nos brancos receber dinheiro
E traz pro Velhinho beber;
- E o Mascote? Que é feito do Mascote?
- Ouvi dizer que foi lá em S. Tomé como contratado.

É verdade, e o Zé?
Que é feito, que é feito?
Aquele rapaz tinha cada finta!
Hum... deixa só!
Quando ele pegava com a bola ninguém lhe agarrava
vertiginosamente até na baliza.

E o Venâncio? O meio-homem pequenino
que roubava mangas e os lápis nas carteiras?
Fraquito da fome constante
quando apanhava um pinhão chorava logo!
Agora parece que anda lixado
Lixado com doença no peito.
Nunca mais! Nunca mais!
Tempo da minha descuidada meninice, nunca mais!...
Era bom aquele tempo
era boa a vida a fugir da escola a trepar aos cajueiros
a roubar os doceiros e as quitandeiras
às caçambulas:
Atresa! Ninguém! Ninguém!
tinha sabor emocionante de aventura
as fugas aos polícias
às velhas dos quintais que pulávamos

Vamos fazer escolha, vamos fazer escolha
... e a gente fazia um desafio...

Oh, como eu gostava!
Eu gostava qualquer dia
de voltar a fazer medição com o Zeca
o guarda-redes da Baixa que não conhece mais a gente
escolhia o Velhinho, o Mascote, o Kamauindo, o Zé
o Venâncio, e o António até
e íamos fazer um desafio como antigamente!

Ah, como eu gostava...

Mas talvez um dia
quando as buganvílias alegremente florirem
quando as bimbas entoarem hinos de madrugada nos capinzais
quando a sombra das mulembeiras for mais boa
quando todos os que isoladamente padecemos
nos encontrarmos iguais como antigamente
talvez a gente ponha
as dores, as humilhações , os medos
desesperadamente no chão
no largo - areal batido de caminhos passados
os mesmos trilhos de escravidões
onde passa a avenida que ao sol ardente alcatroamos
e unidos nas ânsia, nas aventuras, nas esperanças
vamos então fazer um grande desafio...


António Jacinto (poeta angolano)

Amo-te todos os dias


Eu quero olhar-te nos olhos,
E ver-te afastar delicadamente o cabelo da cara
Enquanto encostas a cabeça à ombreira da janela da sala,
E agarrar as tuas mãos febris
Com as minhas mãos geladas
E dizer-te que as nossas mãos
São asas com que podemos voar
Para lá da pequenez desta prisão crepuscular,
E mergulhar na magnitude do mistério.
E ouvir-te dizer que voar é impossível
E dizer-te que entre nós não há impossíveis,
E ver-te procurar a serenidade num cigarro
E esconder-te o isqueiro debaixo da manta
Cor-de-fogo que cobre o sofá velho,
E ver-te ir à última gaveta do móvel de carvalho
E acender o teu cigarro com um dos infindáveis
Isqueiros que lá guardas,
E ir à última gaveta da tua alma
E de lá arrancar o teu enigmático sorriso.
E fingir que não percebo que enquanto nos beijamos
Me roubas, maquiavelicamente, o comando da televisão,
E falar-te acerca da rapariga das tranças ruivas
Que aparece, na magia dos meus sonhos,
Sentada no banco do jardim da lua,
E sorrir aos teus ciúmes de alguém que não existe,
E fingir que estou a tossir mais que aflito
E ver-te esmagar bruscamente o cigarro contra o cinzeiro
E refugiares-te no chá de cereja,
E ouvir-te elogiar as chávenas rubro incandescente,
Que trouxeste da viagem ao México,
Só porque sabes que não gosto daquelas chávenas,
E ver-te despir para tomar banho
E tocar-te como quem lê um poema em braille,
Como se o teu corpo fosse, simultaneamente,
Uma encruzilhada onde me perco
E um mapa onde me volto a encontrar,
E reter-te por séculos nos meus braços,
E fugir quando alcanças o chuveiro ameaçador,
E esperar ansiosamente que termines o teu banho
E beijar o calor da tua pele húmida quando regressas,
E sorrir ao olhar falsamente ressentido
Que lanças desde o sofá onde estás deitada
Com o cabelo molhado,
E ver-te ceder ao peso das pálpebras
Quando as horas pesam séculos sobre os olhos,
E adormecer junto a mim,
E ser percorrido pela profunda paz
Que emerge da perfeição daquele momento,
Perfeição que, felizmente, não tens:
Gosto de ti, não apesar dos teus defeitos,
Mas com os teus defeitos. Todos.
E tocar-te uma vez mais,
Mas querer também deixar-te dormir,
E acordar antes de ti,
E ir à padaria buscar pasteis de nata
E ver-te deliciar com eles
Sem te importares de semear a cama com migalhas
Enquanto eu me delicio com o teu sorriso,
E ver-te beber sumo de laranja
Segurando o copo com as duas mãos,
E pressentir que te conheço há sete vidas
E que afinal tudo isto faz sentido
Porque tu existes,
E perceber a sorte que tive em te encontrar
No meio de seis biliões de seres humanos.
Eu quero olhar-te nos olhos,
E…


Nuno Gonçalo Martins
Já não Escreverei Romances


Já não escreverei romances
Nem contos da fada e o rei.
Vão-se-me todas as chances
De grande escritor. Parei.
Mas na chispa do verso,
Com Marga a aquecer-me,
Já não serei disperso
Nem poderei perder-me.
Tudo nela é verbo e vida;
Xale, cílio, tosse, joelho,
Tudo respinga e acalma.
Passo, óculos, nada é velho:
Quase corpo, menos que alma.
Já não lavrarei novelas,
Ultrapassado de ficto:
A vida dá-me janelas
A toda a extensão do dicto.
Mas sem elas, mas sem elas
(As suas mãos) fico aflito.

Vitorino Nemésio

26.2.09

Aparecida




Aparecida
Parecida
Com a vida que a pariu
Fugiu no rasto da luz
Que luziu
Onde o sol se apaga
Nesta vaga
Que deflagra
No rosto de um poeta
Alfa e beta
De cometa
Perdido no universo
De um verso
Branco e preto
Assim rezo por vós
Com os laços e os nós
Que afundam meu barco


Ângela Marques

Praia



O mar trouxe-me escombros,
Mastros, velas,
Farrapos de coisas belas,
Fantasias, assombros...

Tudo o mar me trouxe
Até uma lágrima de mulher
Guardada em desgastado relicário!

...........................................................

Vinde coisas corroídas,
Vinde à minha praia
Que eu vos esperarei alvoroçado.

João Fonseca Amaral
Moçambique

Momento decisivo


O Sol descia ao poente,
E florente estava o prado;
Ouviam-se auras suaves
E das aves o trinado.

Tu sentada ao pé da fonte
O horizonte contemplavas
Vias o Sol declinando
E, corando, suspiravas.

E depois... seria acaso?
Do ocaso a vista ergueste,
E, ao olhar-me, mais coraste,
Suspiraste e emudeceste.

Foi bem rápido o momento
Dum alento repentino;
Porém nesse olhar de fogo
Eu li logo o meu destino.

Nesse olhar, no rubor vivo
No furtivo respirar...
Diz, tu mesma nessas letras
Não soletras já: amar?


Júlio Dinis

25.2.09

Sou habitante da cidade


Sou habitante da cidade, como os pombos
que esvoaçam a esperança de lés a lés.
Sou habitante da cidade,
como todos os sobreviventes
do cansaço ritmado dos horários.
As ruas esvaziam-se.
Um som sufocado de baladas protege
os culpados das ruínas do outono.
Em vão me iludo com a claridade da cidade desperta.
Ninguém chora a noite
depois da passagem dos barcos
pelo olhar das pessoas desprevenidas.


Graça Pires

24.2.09

Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos


E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa -
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça:
"Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei.

Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa
em que Fernando Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens,
imagem muito minha do eterno,
porque és real e tens forma, vida, ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!

Adolfo Casais Monteiro

e desde já perante vós me penitencio


e desde já perante vós me penitencio
oh poetas e amantes
que meus versos decantarão
para que saibam agora todos
nos limites deste poema ainda
que nada falece da minha lavra
que minhas ideias e meus escritos
mais vos pertencem que a mim próprio

e ainda vos digo ora também
que lúcido e pleno me devolvo
nesta humilde entrega total

para que libertem os meus poemas
em milhões de outros poetas


Rui Nogar
Moçambique

22.2.09

Acrobata da Dor



Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço. . .

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.


Cruz e Sousa
Brasil

O que eu te diria




O que eu te diria tem o nome dos instantes suspensos
como há depois da música, nas flores,
e no começo da noite...

O que eu te diria só podias ouvi-lo com a última nudez;
minhas palavras têm a claridade dos corpos que se dão
sem pertencerem.

O que eu te diria tem-te esperado muito.
Por isso te sabe de cor e te perco tanto;
e dos longos diálogos que é não chegares
vais morrendo, excessiva, de ti mesma.

Se nalgum lugar do destino nos encontrarmos
olharás em mim o teu rosto com os olhos brancos,
como se olhasses tua morte mais pura.


Victor Matos e Sá
Moçambique

21.2.09

Amanhecer na Katumbela



Kukiou o dia
no canto de um passarinho do muxitu
Ouvi
e sem depressa
como quem sonha inda

vi
no Katumbela rio-sacarino
minha mangonha
canoa nas águas lentas
A sensação
de nenhum tempo
Estar

E olhei a planície o vale
lugar onde o canavial é dono
é posse
o seu silêncio
coisas homens
numa canção de abandono

E não ouvi demais
que o canto da madrugada
tinha a voz do murmúrio de kaxexe

Apenas e
lentamente
renascia em mim um novo sono

Então com de repente
despertei


Arnaldo Santos (poeta angolano)

Donde terá saído?




Donde terá saído
donde terá saído
mas donde vieste
ventania de S. Bartolomeu
que me separou
dos meus


Odete Costa Semedo
Guiné

19.2.09

O velho poeta



O seu desejo era que plantassem
um espinheiro numa nesga de

terra frente ao mar e ao rio
e que ele florisse nem

que fosse uma única vez
Esse espinheiro protegê-lo-ia

mais do frio que um edredão
A nesga de terra continua lá

e o mar e o rio e a manhã
Só o espinheiro e o poeta

é que não


Jorge de Sousa Braga

18.2.09

Ezuvi



canto-te toda, ó sombra feita ser,
ó corpo feito flor, ó flor da raça!
eu canto ao mundo, ao mundo inteiro, a graça
nativa do teu corpo de mulher.

canto teus lábios – sedutora taça
por onde o teu amor hei-de beber.
e canto o perturbante rosicler
do teu olhar de sonho que me enlaça…

canto mais a tua alma, lindo abismo,
para que o mundo saiba todo o heroísmo
em que tua alma vívida se integra;

para que o mundo inteiro se confunda
perante o teu orgulho de bailunda,
o teu orgulho altivo de ser negra!


Geraldo Bessa Victor
Angola


O Cerimonial das Mãos

Femme Enfant (c.1920) Art Print

Mãe, onde foi que deixaste a outra metade,
a que anunciava o sol na turvação das noites,
a que iluminava a sombra no cerimonial das mãos?
Em que côncavo de rochas buscava abrigo
essa outra metade que eu via projectada
para fora de mim como um sonho evadindo-se
do círculo de medos em que a fúria se jogava?
Eu era gémeo de todos os assombros
e os meus segredos era com essa outra metade
que os partilhava à revelia das bocas
que em surdina me traçavam o destino.
Quanto de mim se perdia nessa metade
que me furtava o riso e me deixava a culpa,
que me feria o ventre e me fustigava a pele?
Quanto de mim me flagelava
sem que eu lhe conhecesse morada ou nome?
Mãe, eu pedia uma trégua ao vento
e um punhal à chuva e com ambos queria
separar de mim a metade incandescente
que à beira dos meus gestos
ganhava altura de nuvem e fulgor de estrela.
Mãe, eu vejo-me outro nesta cama
que guarda os instrumentos liquefeitos da insónia
e sei que não sou eu quem lá está,
que não sou eu que lá quero estar.

José Jorge Letria
Revolucionando



meu corpo suspenso da gávea
meu corpo
meu corpo colhido sob o látego
meu corpo
meu corpo levado no portão do negreiro
meu corpo
meu corpo linchado no Alabama
meu corpo
meu corpo despedaçado em Guernica
meu corpo
meu corpo despedaçado em Auschwitz
meu corpo
meu corpo mutilado em Hiroxima
meu corpo
meu corpo tombado n’água em Bate-pa
meu corpo
meu corpo aprisionado em Kasanji
meu corpo
meu corpo segredado em Shaperville
meu corpo
meu corpo baleado em Attica
meu corpo
meu corpo trespassado em My Lai
meu corpo
meu corpo metralhado em Siglo Veinte
meu corpo
meu corpo massacrado em Wiriyamu
meu corpo
meu corpo torturado em Santiago
meu corpo
meu corpo inviolável na voz do vento

João Maria Vilanova (poeta angolano)
Inverno



Zefa, chegou o inverno!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa,
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojés,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar, tudo,
moça e viúva!
Chegou o inverno
Covas bem fundas
pra enterrar cana:
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nelas se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa...
E mais gostoso
que tudo isso:
noites de frio,
lá fora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras caídas,
córgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha d'água,
café, cigarro,
cachaça, Zefa...
...rede gemendo...
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora a chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Mas tudo isso, Zefa,
vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

17.2.09

História



Entre o sonho que me tem
E as palavras necessárias,
O desespero e o desencanto
Nestes músculos que ponho
Na caneta
Das emoções várias,
Sempre ,em letra, aquém
Do que ficou pensando... Fugaz combate
Entre o desejar
E o ser ,bravio,
Sem fonte que mate
O desejo, e rio
Que me saiba nascer...
Irrealizado
Aqui deixo o esboço
Destas palavras,
Como o camponês
De que me queixo
com esforço
Nesta história:
Tanto no sonho fez e desfez
E tão pouco foi acabado!...

António Cardoso (poeta angolano)

Que Este Amor Não Me Cegue



Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.


Hilda Hist
Brasil
O Artista Inconfessável



Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre o fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.


João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)
Balada de Lisboa

Skyline of City from the Santa Justa Lift, Lisbon, Portugal Photographic Print by Yadid Levy

Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais
A cidade onde desenho
Teu rosto com sol e Tejo

Caravelas te levaram
Caravelas te perderam
Esta é a cidade onde chegas
Nas manhãs de tua ausência
Tão perto de mim tão longe
Tão fora de seres presente

Esta e a cidade onde estás
Como quem não volta mais
Tão dentro de mim tão que
Nunca ninguém por ninguém
Em cada dia regressas
Em cada dia te vais

Em cada rua me foges
Em cada rua te vejo
Tão doente da viagem
Teu rosto de sol e Tejo
Esta é a cidade onde moras
Como quem está de passagem

Às vezes pergunto se
Às vezes pergunto quem
Esta é a cidade onde estás
Com quem nunca mais vem
Tão longe de mim tão perto
Ninguém assim por ninguém

Manuel Alegre


16.2.09

Foram 7 anos



Foram milhas de percurso
Limbo a limbo
Verso a verso
Na carestia com que se busca tal ousadia,
Foram 7 anos,
Milhas de percurso,
Verso a verso
Em Cada texto um rosto
Perdulários do nada mesmo
Viemos do nada
Do Ocidente não podemos...
Só de Matanato nossa terra natal
Em 7 anos!
Endividamos a nossa própria desgraça
E morreremos assim mesmo
Caiporas do além e do confim
Nossos barcos de papel,
Ainda temos de volta
Não aportamos em limbos
Porque sabemos onde vamos
Aqui, ali e acolá
Buscamos o retiro
Para mais um suspiro
Uuff!...
Foram 7 anos!
Em 7 anos
Quantas vezes depomos as faces irmão,
Ante miragem com que desfaleciam nossos sonhos?
Quantas vezes cruzava em seus olhos
Aquele sorriso fingido meu irmão?
Quantas vezes cruzava em seus olhos
Uma lágrima que desfalecia num arco íris?
Quantas vezes irmão? Em 7 anos!... Quantas vezes?
Foram 10 anos caramba!
Em 10 anos
Quantas vezes vergamos nossas pupilas meu irmão
Ante o brilho candente das nossas estrelas?
Quantas vezes enterramos nossos passos
Só porque construíam um mundo a lodo?
Quantas vezes irmão?... Quantas vezes?
Na ironia dos nossos versos!
Foram 7 anos!
9 anos?
Afinal quantos anos foram irmão?
7 anos
Encarnando em nós mesmos
A sinfonia das cigarras em cada solidão sofrida
O cantarolar húmido dos galos em cada amanhecer sentido
O grito inoportuno do nosso vizinho espinhado
Na nossa cidade extremamente violenta!
Foram 7 anos!
Em 7 anos,
Quantos espelhos deixaram de reflectir nas nossas faces?
Quanto brilho não vislumbrou na cor dos nossos cabelos?
Quantas bolsas não encaixaram nas bocas das nossas axilas
E quantas algas semeamos no jardim das nossas flores?
Quantos anos foram 7+7?
Na antítese dos nossos versos
Foram 7 anos irmão!
7 anos
Ao silêncio cru da luz que está por vir
Aos passos erráticos num ermo extremamente enfermo
Foram 7 anos
Ao paraíso onde o caipora nos trouxe o consolo
Mas 7 anos
Do sabor acre das palavras anatomopatológicas
Do doce da esperança que ainda está aí por vir
Mas 7 anos,
Do punho que já nos ergue irmão
Foram 7 anos
Mastigados pedra e cal
Ao sabor acre das nossas palavras sem sal
7 anos
E em cada sulco da vida que se abre irmão
Arrumaram-se os anos devagar,
Foram-se os versos irmão!
Foi se a nossa idade na ânsia
E hoje,
Estamos aqui
Do olhar já se juntam as cores
Na sombra da noite sobre as flores
Nenhuma pétala murcha nos mostram irmão
Nenhuma alga murcha nos mostram irmão
Quem não colherá de nós uma rosa?
Quem não colherá de nós uma esperança?
Foram 7 anos irmão!
7 anos!


Noé Filimão Massango
Moçambique
Borboletas de luz



borboletas de luz

esvoaçando
de cadáver em cadáver
colhem
o fedor dos mortos em
vão

e
pelos buracos da renda
dos dias
passam alacres
do mundo do esquecimento
ao país da indiferença
levando consigo
o pólen fatal
das flores da guerra

borboletas de luz

Arlindo Barbeitos (poeta angolano)
Testamento



O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!


Manuel Bandeira (poeta brasileiro)

15.2.09


Nossa Senhora de Paris




Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...
Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar...
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos...
Mas o Oiro não perdura
E a noite cresce agora a desabar catedrais...
Fico sepulto sob círios,
Escureço-me em delírios
Mas ressurjo de Ideais...
– Os meus sentidos a escoarem-se...
Altares e velas...
Orgulho... Estrelas...
Vitrais! Vitrais!
Flores de Lis...
Manchas de cor a ogivarem-se...
As grandes naves a sagrarem-se...
– Nossa Senhora de Paris!...


Mário de Sá-Carneiro
Paris, 15-6-1913

14.2.09

Teresa Mulata!


Essa mulata Teresa
Tirada lá do sobrado
Por um preto d'Ambaca
Bem vestido,
Bem falante,
Escrevendo que nem nos livros!

Teresa Mulata
- alumbramento de muito moço -
Pegada por um pobre d'Ambaca
Fez passar muitas conversas
Andou na boca de donos e donas...

Quê da mulata Teresa?

A história da Teresa mulata...
Hum...
Vôvô Bartolomé enlanguescido em carcomida cadeira adormeceu
O sol coando das mulembeiras veio brincar com as moscas nos
[lábios
Ressequidos que sorriem
Chiu! Vôvô tá dormindo!
O moço d'Ambaca sonhando...

António Jacinto (poeta angolano)


Perspectiva


Tua passagem se fez por distâncias antigas.
O silêncio dos desertos pesava-lhe nas asas
e, juntamente com ele, o volume das montanhas e do mar.

Tua velocidade desloca mundos e almas.
Por isso, quando passaste, caiu sobre mim tua violência
e desde então alguma coisa se aboliu.

Guardo uma sensação de drama sombrio, com vozes de ondas
lamentando-me.
E a multidão das estrelas avermelhadas fugindo com o céu para longe
de mim.

Os dias que vêm são feitos de vento plácido e apagam tudo.
Dispensam a sombra dos gestos sobre os cenários.
Levam dos lábios cada palavra que desponta.
Gastam o contorno da minha síntese.
Acumulam ausência em minha vida...

Oh! um pouco de neve matando, docemente, folha a folha...

Mas a seiva lá dentro continua, sufocada,
nutrindo de sonho a morte.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

13.2.09

Livros e Flores


Teus olhos são meu livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?


Machado de Assis
Brasil
A Nossa Inteligência as Está Vendo

Words to Live By: Truth Art Print by Debbie DeWitt

A nossa inteligência as está vendo
quando, da luz da sua rodeadas,
criam a brisa pelo movimento
com que entram para o espaço das palavras.
Por ora irem mensura ainda o tempo
de aparecerem zonas sombreadas
conforme vinca músculos o lento
vaivém de luzes que organiza a marcha.
Mas caminham de fora para dentro.
Dentro de brisas diáfanas
onde, enigmático, se esconde esse silêncio
de que surdem figuras entrando nas palavras.

Fernando Echevarría (poeta timorense)

12.2.09


KAAP DIE GOEIE HOOP




Verdes vinhas de entre dois oceanos,
na lança antártica da rosa-dos-ventos,
ao limite extremo do Cabo Fim.
Luxuriento, o leito azul do Mostrengo

adormecido, ásperas, duras falésias
e abismos, fractura de altos sonhos
imperiais. Na lívida sepultura
da areia, perdido o Setestrelo,

o cego navegante deitou sortes
à Ventura relutante. Na escuma
do Tempo, oxidado e estrangeiro,

o timbre da voz remanescente. Erecta
lápide roída de sal e de remorso,
na bruma, só o Padrão é português.


Rui Knopfli

Porque te amo


Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.


Joaquim Pessoa
À Minha Terra



(No momento de avista-la depois de uma viagem.)
De leite o mar - lá desponta
Entre as vagas susurrando
A terra em que scismando
Vejo ao longe branquejar!
É baça e proeminente,
Tem d'Africa o sol ardente,
Que sobre a areia fervente
Vem-me a mente acalentar.

Debaixo do fogo intenso,
Onde só brilha formosa,
Sinto n'alma fervorosa
O desejo de a abraçar:
É a minha terra querida,
Toda d'alma, - toda - vida, -
Qu'entre gozos foi fruida
Sem temores, nem pesar.

Bem vinda sejas ó terra,
Minha terra primorosa,
Despe as galas - que vaidosa
Ante mim queres mostrar:
Mesmo simples teus fulgores,
Os teus montes tem primores,
Que às vezes falam de amores
A quem os sabe adorar!

Navega pois, meu madeiro
Nestas aguas d'esmeraldas,
Vai junto do monte ás faldas
Nessas praias a brilhar!
Vae mirar a natureza,
Da minha terra a belleza,
Que é singella, e sem fereza
Nesses plainos d'alem-mar!

De leite o mar, - eis desponta
Lá na extrema do horizonte,
Entre as vagas - alto monte
Da minha terra natal;
É pobre, - mas tão formosa
Em alcantis primorosa,
Quando brilha radiosa,
No mundo não tem igual!


José da Silva Maia Ferreira (poeta angolano)



Taciturno

Autumn Glade Art Print by Robert Wood

Há Ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais -
Joia profunda a minha Alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais.

No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
Toda uma estirpe rial de herois d'Outras bravuras
Em mim se despojou dos seus brazões e presas.

Heraldicas-luar sobre ímpetos de rubro,
Humilhações a liz, desforços de brocado;
Bazilicas de tédio, arnezes de crispado,
Insignias de Ilusão, troféus de jaspe e Outubro...

A ponte levadiça e baça de Eu-ter-sido
Enferrujou - embalde a tentarão descer...
Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer -
Manhãs de armas ainda em arraiais de olvido...

Percorro-me em salões sem janelas nem portas,
Longas salas de trôno a espessas densidades,
Onde os pânos de Arrás são esgarçadas saudades,
E os divans, em redór, ansias lassas, absortas...

Ha rôxos fins de Imperio em meu renunciar -
Caprichos de setim do meu desdem Astral...
Ha exéquias de herois na minha dôr feudal -
E os meus remorsos são terraços sobre o Mar...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'

Joanesburgo




A solidão emprego ao galopar as cidades
desutilizo-a ao atravessar as ruas. O medo
nunca é o melhor dispositivo para decifrar
os estranhos e vagos nomes que as identificam.
Bastam-me as mãos nos bolsos para combater
o inesperado na esquina desconhecida.

Na Europa dizia-me amante das grandes cidades,
desafiava-as de peito aberto. Nem os atalhos
das prostitutas dos proxenetas e outros da espécie
me obrigavam a vestir os agasalhos do medo.

Tão longe de Lisboa, Madrid ou Londres.
Sem sair desta minha tão maternal África.
Assalta-me o medo da cidade. Eu que me
julguei urbano desde o minuto primeiro
que Maputo, com outro nome, de mim deu conta.

Nelson Saúte
Moçambique

Desde quando alguma vez anoiteceu



Desde quando alguma vez anoiteceu
E à angústia de que a terra se cobriu
Só pasmo nas esferas respondeu;
Desde quando alguma flor emurcheceu
E a criança que válida se ria
De repente calada apodreceu;
Desde quando a algum estio sucedeu
Um outro outono e a árvore se despiu
E a primeira cabeça encaneceu;
Desde quando alguma coisa que nasceu
Sem que o pedisse, sem remédio se degrada
E acaba, sob a terra que a comeu,
Dispersa entre os átomos dispersos,
Se acumula a tristeza deste dia
E a razão destes versos.


Reinaldo Ferreira


Escavação



Numa ânsia de ter alguma coisa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar;
E a minh'alma perdida não repousa.
Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à força de sonhar...
Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez de togo...
– Onde existo que não existo em mim?
............................................................
............................................................
Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bocas esmagadas –
Tudo outro espasmo que princípio ou fim....


Mário de Sá-Carneiro
Paris, 3-5-1913
A gaivota



«Quantas vezes já viajei
à roda do mundo? Cinco?
Seis? Sete?
Sim, foram sete!
Fascinante vida
Fascinante aventura!
Agora estou velha
e doente.

No topo deste guindaste
na Ribeira
contemplo
quem sabe pela última
vez
a Ponte de D. Luís
e o Mosteiro da Serra
do Pilar.

Será este o meu último
sono? O sono da morte?»

Depois
quando acordou
ei-la voando
veloz sobre a Meia Laranja
a Cantareira e a Foz.
Ia em busca
do Grande-Mar-Oceano
para enfim descansar.


Papiniano Carlos



Lucidez Desnecessária


Diante das estrelas
E do sol
Sabendo a morte
E a vida aranha
Disconforme
E concordante
Pronta a parar na teia
Envelheci
Mas posso olhar ainda
Ainda
Cravos de sangue e rosas da estrada
Como se eterna fosse
Mas tão tarde.

Matilde Rosa Araújo

11.2.09

Motivo




Um poema é sempre
uma qualquer angústia que transborda.

(E eu posso cantá-lo de amor
posso cantá-lo de ódio
posso cantá-lo de roda...)

Um poema é sempre
como um rebento novo que se desdobra.

(E eu posso cantá-lo ao sol
posso cantá-lo de água
posso cantá-lo de sombra...)

Um poema é sempre
como uma lágrima que se solta.

(E eu posso cantá-lo como quiser:
há sempre uma palavra que me esconda...)


Glória de Sant'Anna

Por muito tempo achei que a ausência é falta.



Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)



Epígrafe




A sala do castelo é deserta e espelhada.
Tenho medo de Mim. Quem sou? De onde cheguei?...
Aqui, tudo já foi... Em sombra estilizada,
A cor morreu – e até o ar é uma ruma...
Vem de Outro tempo a luz que me ilumina –
Um som opaco me dilui em Rei...

Mário de Sá-Carneiro



10.2.09

Música de fim de dia




Volto aos velhos livros de antigamente
no quarto comprido e vazio.
Com um silêncio sem estrelas
toco-lhes amargurado.
Para lá da poeira e da alteração
aparente
nem tudo está mudado.
A cadeira em que te sentavas
ali está, Rui Guerra. E tu onde estarás?
Não faço ideia. Tanto me ressoam
teus passos à cadência do boulevard
como ao pisar duro do planalto de Castela.
Não importam, este abandono e esta secura.
O sentido da vida anda por detrás
do eco das nossas palavras. Tu com ele.
(Outros tomam estupefacientes e emborracham-se
de cabotinismos.) Aqui um papel
amachucado com a tua letra:
Estudos para um ensaio de composição plástica dinâmica.
Além, outro do Lagarto-pintado (Onde andará ele?
Olhando o manso Tejo dos poetas?
Amando as prostitutas da rua do Mundo?)
É um poema para Eluard morto:
Deixem-lhe nos lábios
uma asa nervosa de cigarra...
Embora de vós nada saiba
e os livros, os papéis e as conversas,
sejam antigos como a adolescência,
não esqueço a história dos dedos
da mão. Nem vós.
Assim arrasto a minha inutilidade
e lembranças como feridas.
São o que de melhor tenho
com o sonho esboroado daquilo que não fui.
Morcegos desprendem-se dos telhados
com a chegada da noite.
Comovido,
no quarto comprido e vazio,
volto aos velhos livros de antigamente.


Rui Knopfli

Amor é isto



você está tão longe
que às vezes penso
que nem existo

nem fale em amor
que amor é isto


Paulo Leminski
Brasil
Poema para Carlos
Drummond de Andrade



No meio do caminho tinha uma pedra.


C.D.A.
É útil redizer as coisas
as coisas que tu não viste
no caminho das coisas
no meio de teu caminho.

João Maimona (poeta angolano)