30.5.11

Esse mar revisitado



(A palavra mar morreu há muito.
Esse mar, quem sentiu mar?
Mas tu, de acreditares em fénix e
nas cinzas dos caminhos, profanas.
Impiamente, profanas esta quietude)

Quando pronuncias a palavra mar
Este ilhéu diante de ti se liquefaz
E vira ele próprio metáfora e parte
Como onda para o abraço das terras...

Só de o teres ementado, os peixes
Saltitam no assombro das pedras
E as sereias saem, loucas das lendas,
E aproximam-se ao cio das marés...

As algas, limos, areias, espumas -, tudo
Soletra-lhe ali em maresia e de tão longe
Estará ele navio na solidão do mundo...

Nesse surrealismo tão bizarro e vão
Quão poemas de longe e de saudade
De repente, substantivos de quem os ouve...


Filinto Elísio
Cabo Verde

Ratoeira



Marcar pódios têm incursões do Sol
Por sala esta. Alimentar UMA Esperança
solar. Mas como São Indomáveis Estações
e UMA casa e Um Jogo de Janelas
que é FÉCHAM. NAS Mosca vidraças inertes
Sobre a mesa laranja que apodrece:
EIS OS Pequenos Ratoeira nd Seres.


Carlos Poças Falcão

A pessoa de Josefane


A PESSOA DE JOSEFANE FICOU NO MASSACRE DE MALUANE, MAS SEU CORPO VEIO A MAPUTO PARA POR VELAS

Uma rajada de metralhadora
e ele caiu do camião.
Rachou-se o cóccix.
Coaxaram as rãs do rio vizinho.
Cócegas no sangue dele.
O primeiro grito foi
o canto plangente do cisne.

As árvores deliravam
ruídos de harpa. A morte,
com a sua foice aguerrida,
saqueou-lhe todo o sangue baboso
e levou-lhe a cruz ao calvário
doloroso da fossa comum.

O rio de lágrimas secou
na roda dentada da vida.
A moagem do coração parou.
Os açudes que represam o sangue
das veias desmoronaram-se.

No seu organismo
só ficaram gemidos de grilo,
primeiro;
piares de coruja,
depois;
e o silêncio sepulcral dos vermes,
por último.

A morte encafuou-se no seu ninho.
E lá, dentro do Josefane madrugador,
ficou quentinha e satisfeita
a pôr seus ovos de cotovia.

E um louva-a-deus
foi o primeiro ser vivo
a pousar no seu corpo morto.

Eu vi!, com o coração aos pirilampos...


José Pastor
Moçambique

Que se passa?



Claro que não, de maneira nenhuma.
Estava sentada ao meu lado, o desejo
agitava-lhe o ventre, ela semicerrava
os olhos. De maneira nenhuma, assim não,
ainda não. Debrucei-me sobre o seu rosto
e beijei-a. Pousei a cabeça no seu peito
e esperei pelas suas mãos. Continuava,
lento, a ir devagar ao encontro do desejo.
Não tinha pressa. Ela apertava-me
contra si silenciosamente, parecia
dormir e repousava o seu corpo como
se a morte ou uma hibernação o tivessem
ocupado. A televisão passava um filme
de John Ford. Ela ergueu-se subitamente,
afastou-me. Que se passa, perguntei-lhe,
surpreendido. Nada, respondeu ela, mas não é
o filme de John Ford que acaba de começar?
Não o quero perder. De acordo, pensei eu.
Levantei-me, fui sentar-me na cadeira do outro
lado da sala. Acendi um cigarro. Lá fora
caíra a noite há muito tempo. Mas quem
tinha vontade de pensar no que se passava
lá fora? Um filme de John Ford, repeti em voz
baixa. Apaguei o cigarro e concentrei-me
na aventura irreal, nas cores magníficas do deserto.


João Camilo

27.5.11

Amar é mesmo assim



ela tem uma ave nos contornos de mulher
e me vê com as escleróticas em fuga.
deixa-se ir ao tempo com um corpo de navio
enche a embala com o seu todo.
ela emergiu da “casa inabalável”
e victoriosa depôs o soba.
rendo-me à vassalagem quero-a solta e rica.
certo ou incerto os sonhos errados
tornam-se vivos: como um compêndio de
mil escrituras no amor que gesticulo.

João Tala
Angola

25.5.11

Gumes de névoa


Lágrimas?

Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?

José Craveirinha
Moçambique

24.5.11

Canção de Salabu



nosso filho caçula
mandaram-no p’ra s. tomé
não tinha documentos
aiué!
nosso filho chorou
mamã enlouqueceu
aiué!
Mandaram-no p’ra s. tomé

nosso filho já partiu
partiu no porão deles
aiué!
mandaram-no p’ra s. tomé

cortaram-lhe os cabelos
não puderam amarrá-lo
aiué!
mandaram-no p’ra s. tomé

nosso filho está a pensar
na sua terra, na sua casa
mandaram-no trabalhar
estão a mirá-lo, a mirá-lo

- mamã, ele há-de voltar
Ah! a nossa sorte há-de virar
Aiué!
mandaram-no p’ra s. tomé

nosso filho não voltou
a morte levou-o
aiué!
mandaram-no p’ra s. Tomé


Mário Pinto de Andrade
Angola

23.5.11

Crateras na noite


Queres o beijo da lua
enquanto na terra bebes o mar
em vagas de esperança
deitadas sobre as dunas
de areias finas à luz crua
e fria do teu olhar.

Ergues o tronco
como quem quer ser de novo,
fitas um horizonte qualquer
que julgas perceber,
mas não te vês descalço,
a areia entranhada
entre os dedos dos pés,
colada em ti.

Lá em cima a lua ri-se
e as gargalhadas redondas
abrem crateras na noite.


Isabel Solano

22.5.11

Redondel



O Coração está acrescenta
AO Coração está acrescenta
Outro tem um soluço e senta Árvore
- Nuvem Tão Tudo entre
Coração hum e outro -
Redondos óssea desenhos, vaos óssea,
uma concha nd Noite
do Coração, o pampa
e Os Corações sentados
Coração e voando um.

Mudando, Tudo e Possível
Recomeçar.


Carlos Nejar
Brasil

Não quero saber


não quero saber
dos teus segredos
nem da tua história

de ti
me basta o mistério
daqueles que desembarcam
dos sonhos
das madrugadas furtivas
e se lançam ao mar
sem medo da tempestade


Ademir Antonio Bacca
Brasil

Rebeldia



Soltem-me
as algemas

Quero
a minha alma livre
meu corpo livre
meu pensamento livre

Esbofetear o mundo
e cuspir
na vida


Manuela Amaral

21.5.11

Sei lá...


O relógio marca
quarenta e oito horas sem te ver
sei lá quantas para te esquecer.


Alice Ruiz
Brasil

Agonia



Encho de nada
A concha
Das mãos vazias...
Que me pedias,
Que não posso dar-te,
Desespero?
Água de que nascente?
Pão de que sementeira?
Queira ou não queira
A esperança,
A hora é de secura
E de miséria
Por toda a parte...
Enganar-te?
Inventar
Miragens de frescura
E de fartura
No deserto da vida?
De que valia
Mais essa ilusão?
O cálix de amargura
Tem amargura,
Seja bebida
Ou não...

Miguel Torga

19.5.11

Ode à palavra



O tempo jamais conseguirá desfazer
a essência de tua fortaleza,
já que és do cosmo absoluto

e
da troca de ideias entre os homens,
o fundamento.
E, ainda que,
bastando-se,
e,
infinitamente sendo tu,
realidade,
verdade,
ciência,
alma,
corpo,
dogma,
mito,
e,
não tendo infinito,
ocupas lugar primeiro,
na VIDA


Ada Ciocci
Brasil

18.5.11

Primavera do corpo


Movo-me nas nubladas praias
onde a amplitude se renova
num gesto salgado:
as ondas alargam-se
num abraço apaixonado
revelando a embriaguez
da noite que beija
a transparente nudez
da matéria envolta em música.

Era a primavera do corpo
restaurando a claridade
do amor
sem ornamentos de leviandade
ou roupagens de pudor...


Jorge Arrimar
Angola

Salmo de uma noite de solidão



O vento
é harpa
sob os negros dedos
desta negra noite

é música fúnebre
em meus versos partidos
amortalhados na noite
é sinfonia macabra
nesta selva espessa de negrume e silêncio
nem rubros contornos
nem cânticos de aves
— apenas o vento na harpa e na selva!

A noite
é fantasma vagueando na noite
e o vento
a harpa
e o som e o salmo
deste negro cântico
nos nervos partidos
no leito vazio
neste poema
que
chora na noite
grita na selva
contorce na dor
agoniza no desespero
e suplica no estertor:

— Mata-me
noite homicida
e sepulta-me
no abismo desta solidão!


João Rodrigues
(Cabo Verde)

Ergo uma rosa, e tudo se ilumina


Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou ventos de cabelos que sacode.
Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontua de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.
Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me doi de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.


José Saramago

17.5.11

A alienação e as horas


A alienação e as horas
por aqui andamos como folhas secas
não sabemos bem se vivos ou se mortos
por aqui andamos
cumprindo o fado que não entendemos
uma vida que não é nossa
como um fato que pomos sobre o corpo nu
por aqui andamos submissos
subindo e descendo a rua
nós ou outros não importa
é como se fôssemos outros
tão longe que estamos de nós
indo para as repartições
vindos das máquinas de escrever
dos papéis dos tornos ou das enxós
por aqui andamos
regressando por vezes
com a consciência do dever cumprido
o dever cumprido
ópio que se inventou para
nos escondermos desta torpe existência
por aqui andamos
ai horas de desespero que são tão lúcidas
em que vemos que o que estamos é atrás do espelho
por aqui andamos como jornais velhos
que virão percorrendo as ruas
e acabam nas sarjetas
ou dão novos jornais
que farão a mesma coisa
por aqui andamos
por aqui andamos
que triste ser poeta ou lá o que se é
sejamos prosaicos ao diabo tudo isto
dá vontade de lançar uma
bomba de s. João
e pensar que se mandou o mundo aos ares
dá vontade de ir descobrir o Brasil
como se não estivesse descoberto há
quatrocentos e tal anos
é certo que há uma esperança
sabe-se que isto não será sempre assim
felizmente que não será sempre assim
felizmente que isto não será sempre assim
mas por aqui andamos
por ora aqui estamos
vestidos de
fantasmas entre fantasmas a fingir de gente…


Antero Abreu
Angola

Sanzala morta


erguem-se monstros na noite
como elefantes
de formas que não suas
mas enormes como sombras
de elefantes solitários.

erguem-se esquinas
na noite
vidas que quebrassem
tivessem cristalizado
em gemidos
e caprichos
de casas abandonadas.

erguem-se esquinas
na noite
vozes de rios secos
sobre as pedras
que os beberam
com suas bocas de musgo.

e a cada passo inseguro
somam-se esquinas
e areias
e pedras
formas conseguidas pelo tempo
entre gargalhadas de fuga
e do negrume.

só quando sob os muxitos
choram hienas
e assobiam serpentes
e aparecem
feridas
de lua cheia
se descobre nesse drama
como retratos da morte
sanzalas abandonadas.


Costa Andrade
Angola

16.5.11

Casa


Das casas sobram sempre lamentos,
a languidez do amor nos rios dum lençol, a mão
disforme nos lábios húmidos duma palavra;
das casas restam sempre nomes, vozes

das casas cresce uma alma
que esmaga o tecto minúsculo das mariposas
do Verão; das casas sempre um cheiro de nascer;
das casas sempre o roçar das asas da morte.

Nascer e morrer na mesma casa é privilégio,
sabedoria, ou sublime instante de passagem,
apenas.


Ivo Machado

Angola


Angola
não nasci do teu ventre
mas amei-te em cada primavera
com a exuberância de semente…

não nasci do teu ventre
mas foi em ti que sepultei
as minhas saudades
e sofri as tempestades
de flor transplantada
prematuramente…

não nasci do teu ventre
mas bebi o teu sortilégio
em noites de poesia
transparente…

não nasci do teu ventre
mas foi à tua sombra
que fecundei rebentos novos
e abri os braços
para um destino transcendente…

angola,
não eras terra do meu berço
mas és terra do meu ventre!


Amélia Veiga
Angola

14.5.11

Gravitação universal



De novo o mar que espero
sentada à janela que dá para as rosas.
Que dá para todas as ruas que passei
com os teus passos. Para a estrada
onde virámos a cabeça para não ver
o homem esvaído no chão.
Depois comemos na casa de um amigo,
bebemos e falámos como se a vida fosse eterna.
À volta a estrada estava limpa, sem sinais
de sangue. As luzes sobre o mar nas duas margens
e a tua mão na minha perna. Lá no céu
um homem esventrado procura as suas asas.
Nada sei de anjos. Eu que espero o mar todos os dias
acredito na rotação da terra e na lei da gravidade.
Mas quando chegas o corpo não tem peso
e as palavras voam em redor de nós
alagadas em suor. E vem o mar.


Rosa Alice Branco

Revolta


De palavras que doam. De palavras
arrancadas ao ventre da ternura,
mas que entretanto rasguem a espessura
deste silêncio cheio de rosas bravas.

De palavras que digam a revolta
ante o clima de medo e de mentira
que se instalou e vai deixar a ira
crescer e andar como um cavalo à solta.

É dessas que preciso - e me interessam.
As outras, por favor, desapareçam.


Torquato da Luz

Gostaria



Queria compartilhar contigo os momentos mais simples
e sem importância.
Por exemplo:
sair contigo para passear, sentir-te apoiada em meu braço,
ver-te feliz ao meu lado
alheia a todo mundo que passasse.

Gostaria de sair contigo para ouvir música, ir ao cinema,
tomar sorvete, sentar num restaurante
diante do mar,
olhar as coisas, olhar a vida, olhar o mundo
despreocupadamente,
e conversar sobre "nós" – esse "nós" clandestino
que se divide em "tu e eu"
quando chega gente.

Encontrar alguém que perguntasse: "Então, como vão vocês?"
E me chamasse pelo nome, e te chamasse pelo nome
e juntasse assim nossos nomes, naturalmente,
na mesma preocupação.

Gostaria de poder de repente te dizer:
Vamos voltar pra casa...
( Como se felicidade pudesse ser uma coisa
a que tivéssemos direito como toda gente)
Queria partilhar contigo os momentos menores
da minha vida,
porque os grandes já são teus.


JG de Araujo Jorge
Brasil

10.5.11

Os grandes amores



Os grandes amores só são grandes porque são cegos
Nenhum ser amaria se realmente visse
Os corpos e as almas deturpadas dentro de anjos

As mulheres que me diziam sobejamente belas
Vi-as naturalmente em leitos imundos
E as mais feias tinham requintes de deusas

Não falo daquelas que colhi nas têmporas das nuvens
Nem em verdes silvados de amoras
Senão com quem troquei beijos de saliva e carne
Escritos com a tinta húmida dos cabelos

Os quais descongelaram estátuas de mármore
E nos prenderam com as mãos voando em aves
Numa ilha inacessível de condenados!


Manuel Feliciano

Deste único arvoredo



Deste único arvoredo vejo uma
Ilha suspensa: vou com ela
Pelo universo adentro talvez
Nalgum porto o meu espírito há-de acostar


Vasco Martins
Cabo Verde

7.5.11

Recorde



À mesa dos cafés, a carne.
Quase nua, palpita dentro
De pequenos cronómetros.
Recorda, dia e noite, que
Afinal os obstáculos perduram
Sempre no interior da chama.
Que o Eterno vacila sobre a cama
Destes animais litúrgicos, votados
Que somos - ao amor, à morte, ao abandono.


Gil de Carvalho

Por teus olhos negros


Por teus olhos negros, negros,
Trago eu negro o coração,
De tanto pedir-lhe amores...
E eles a dizer que não.

E mais não quero outros olhos,
Negros, negros como são;
Que os azuis dão muita esp'rança,
Mas fiar-me eu neles, não.

Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim...
Nunca mais dizem que não.


Almeida Garrett

O teu amor absoluto



O teu amor absoluto
é como a hera que envolve as paredes da casa.
Quero ser a casa
e que arranhes a cal da minha pele
e te aninhes nos meus ouvidos fendas
e perturbes a porta minha boca.
E por fim
procures o perigo das janelas
e enfrentes os meus olhos
infinitos de mágoa
noite e assombração.


Rosa Lobato de Faria

6.5.11

Casa em ruínas



O xisto das paredes acolheu
os poucos desejos. O telhado
cortou os grandes frios da geada,
desviou a chuva das enxergas.
Pelos postigos entrou alguma luz.
Rezou-se e morreu-se nessa casa.

Hoje as paredes vão-se aos poucos derruindo:
aproximam-se do chão de que nasceram.
Como se se executasse nela
um antigo memento: quia petra es
et in petram reverteris.

Há muito que o vento derrubou
a derradeira telha. Caíram de podres
as vigas do telhado, e há já alguns invernos
que deram achas para arder no lume.
Quase não há vestígios de postigos –
salvo uma floreira que parece ali
um capricho escarninho.

Cumpriu-se na casa um ciclo.
Hoje não tem serventia,
salvo para alguns animais furtivos
que a ocupam e lhe pedem afinal
as mesmas funções simples
que aquele que a edificou pediu outrora.

Na sua decadência persistente,
a casa mete pena, como todos
os sonhos que algum dia floresceram
e depois se foram esfarelando.

Está visto: as casas não têm
a mesma estouvada vocação
de eternidade
que atormenta os seus donos.


A. M. Pires Cabral

4.5.11

Janelas



Fechei todas as janelas
não deixo entrar a dor
porque na vida
quero mesmo só amor.

Cerrei a última
que minh‘alma permitia.

De lá só sobrevinha escuridão;
meu coração enfraquecia
navegando em marés de
decepção.

Bloqueei sentimentos negativos
palavras destrutivas.

No arco-íris da existência
entro pela porta da esperança.

Ilusões floridas, coração aberto.
Na alegria da Vida,
sorrindo-lhe.


Otília Matel

3.5.11

Nunca te esqueci – é este um amor maior


Nunca te esqueci – é este um amor maior
que atravessa a vida e resiste à cicatriz
do tempo. O que ontem me disseste agora
o ouço, como se nada tivesse interrompido
a magia do instante em que as nossas bocas
se aguardavam na distância de um beijo e
o olhar tocava o corpo antes da mão. Se

hoje vieres por esse livro que deixaste (e cuja
lombada acariciei todos os dias que durou a tua
ausência como uma nesga de sol acaricia um
rosto no Inverno), encontrarás a sopa a fumegar
na mesa, e a camisa engomada no cabide, e os
lençóis da cama imaculados, e um corpo pronto
para qualquer aventura – e ainda o cão deitado
à porta, à tua espera, como na véspera de partires.

Porque os anos não contam para quem assim ama.


Maria do Rosário Pedreira

Assumamos o corpo e o prazer


Assumamos o corpo e o
prazer, bebamos no elmo
de bronze o vinho e os
cheiros do fogo.

*

E o desejo de amar e o desejo de mar
no seu mais belo canto Safo cantava.
Oh, quanto no meu coração tarda
o que o seu canto louvava.

*

Se contigo ardo, Safo,
se todas as coisas provêm
da noite, seremos a chama
da eterna beleza.

*

Como funda gota de cera no flanco
do lesto gamo,
sequestra-me, Safo, no teu rijo seio.

*

Ser a pomba ou o cavalo no bosque
de macieiras onde espera e anoitece
O teu terso corpo de deusa rara.

*

Oh, apagar-me no teu peito suavemente
enquanto nos teus olhos leio
a respiração do tigre.

*

Nada é glorioso, nem a solidão
absurda. Só a memória permanece,
para, em cada carícia,
ser outra.


Orlando Neves

Augúrio



Sabias ser o augúrio a adivinhação do futuro pelo voo das aves?
Sob que promessa faremos então discorrer as nossas penas?
Acalentarás o adulto milhafre, serpejando a vazante,
ou pretendes me detenha na venerável contemplação do corvo?
Minuciosa é a travessia para o coração sereno, sem lástima;
pois anda e comigo reparte o ofício do condutor de cotovias.
Pelos quintais seguiremos o seu trilho na erva molhada,
também com ele formaremos um cortejo, pobres
aprendizes por chegarem os anos e o que vivemos, um
dia, indiferentes, sem perguntarmos que só isso podia importar.


Rui Cóias

Solidão


Detrás da parede de vidro
vozes
olhares
errâncias.

Bocas pisciformes
soltam bolhas de som
que se cruzam e rebentam
ao burilarem sentidos.

Olhos cúpidos
ou agrestes
rasgam abismos perenes
onde a alma
não consegue caminhar.

Redemoinhos sem norte
transportam nas suas garras
corpos hirtos ou curvados
que se tocam, lado a lado,
e se ignoram
no perpetuo voltear.
É assim, assim será.
Quebrar a parede, para quê?


Maria Isabel Sampaio

2.5.11

Quinto poema do pescador


Eu não sei de oração senão perguntas
ou silêncios ou gestos ou ficar
de noite frente ao mar não de mãos juntas
mas a pescar.

Não pesco só nas águas mas nos céus
e a minha pesca é quase uma oração
porque dou graças sem saber se Deus
é sim ou não.


Manuel Alegre

Onde está a mãe?



A Mãe está onde está a camisa púrpura
e onde a tempestade sacode a espuma dos gerânios.
Onde se apagou a lareira e esse fogo bom
na parede dos ossos. Está no musgo que cresce
nos velhos pinheiros de onde a noite pende.
A Mãe está nas arestas do corpo onde
o toiro respira e se espreguiça a andorinha.
Onde a ansiedade apoquenta, onde resvala
o coração sujo de melancolia, negro,
negro como o motor de um corvo. Está
no Livro da Morfina, nos tocadores de viola
com grandes pés de anjo e nos operários construindo
paredes de lume em andaimes de cinza.
A Mãe está onde o moinho escondido
trabalha no peito com a roda do olhar.
Onde ainda arde a madeira verde das estrelas.
Onde o tiro parte e se agita o vento. A Mãe
está na noite que vaza as veias por uma ferida
no ventre. No parto dos pássaros. No som
dos ossos quando partem. A Mãe está nua
interrogando-se como um navegador sem sexo
onde o cão lambe o medo desses peixes azuis.
Na insatisfação e no martírio de uma água inteira.
Nas margens da minha cabeça. No aroma fixo
dos espelhos. A Mãe está na viagem das semanas.
No pólen e na rede. Na pedra parada. Na pedra que voa.
Está na paixão dos olhos. Nos bosques do sangue, nas
clareiras do sangue, na chuva em catedral.
A Mãe está no crime dos heróis. Nos joelhos
do rio. Na cama, na doce cama dos salgueiros.
Nos riachos do orvalho. No lume da cebola.
A Mãe está nos ombros de cada um dos meus instantes.
Onde a emoção se diz e se suspende. Onde
a noite e a língua se observam. Onde nascem
equilíbrios. Onde os crânios e as lâmpadas arriscam.
A Mãe está nos pulmões do meu abismo. Está
no lenço rasgado das roseiras. E na ira do frio.
No chicote das palavras. No silvo. No sítio
do poema. Onde tudo é brusco e arde. Aí,
nessa carne da dúvida, sem dúvida, está a Mãe.


Joaquim Pessoa

No sorriso louco das mães


No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e orgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo.
São silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos. Porque
os filhos são como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado
por dentro do amor.


Herberto Helder




1.5.11

Quase



Quase não sei esperar o inesperado,
a rede que se parte e a outra rede
que se reparte: o não saber esperar
com a paciência antiga do silêncio
sentado mansamente ao nosso lado.

Quase não sei sonhar o amargo espanto
de estar aqui à porta de uma lua
que dá para um jardim que deu outrora
para um caminho que não finda nunca
tão pura e simplesmente ao fim da rua.

Maria Alberta Meneres

As mães


Chegou.
Vinha da noite escura.
Sentou-se à mesa connosco
pediu o pão
e o vinho.

Não disse mais,
só um pouco de luz,
um Anjo que nos guarde.

Assim como chegou
assim partiu.


Yvette K. Centeno

Primeiro amor



Ó Mãe... de minha mãe!
Explica-me o segredo
Que eu mesmo a Deus sem medo
Não ia confessar:
Aquele seu olhar
Persegue-me, e receio,
Pressinto no meu seio
Ergue-se-me outro altar!

Eu em o vendo aspiro
Um ar mais puro, e tremo...
Não sei que abismo temo
Ou que inefável bem...
Oh! e como eu suspiro
Em êxtase o seu nome!...
Que enigma me consome,
Ó Mãe de minha mãe!


João de Deus