30.4.10

A vida negra




Paguei bastante, esqueço quanto.
contei estrelas e estrelas até esquecer,
dei tudo, mas não a lua eo vento,
vi a lua, vi o sol e tudo até aquecer.

A vida é negra, na rua dormo pronto,
no mar pesco, mas não para ser,
viajei, não chego o distino é distinto,
nos meus olhos está o distino, é vencer.

Na vida está a luta, é dar peito,
na sombra escore a vida, não é crescer,
na vida cresce a vitoria, é dar o espirito.

Voar só, sozinho nos mansos gritos,
rir, riso duma criança como uma flor a nascer,
mimando, alegrando como a caricia leve dos ventos.


Adilson Augosto Nancassa
Guiné

Mão Frágil



em mão frágil de amarelo
se quebra o galho de gajajeira
pela tardinha vermelha em flor
sussurrar de vento
não é voz de capim crescendo
é murmúrio impaciente
de gentes
no azul de parte alguma
em mão frágil de amarelo
se quebra o galho da gajajeira
pela tardinha vermelha em flor

(Angola, angolê, angolêma)

Arlindo Barbeitos
Angola

As armadilhas foram apresentadas




As armadilhas foram apresentadas depois de terem
escrito num ofício os epitáfios, porque o declínio não se pode
suportar só com as promessas dos irmãos. Os irmãos sabem
que só podem estar de costas dadas uns para os outros
na direcção cuja geometria só os poetas conhecem,
porque a direcção do sabre tem a sua força na perfeição
da sombra que foi preparada pelos que foram escolhidos
para serem heróis depois de passarem acordados
sete dias na escuridão para pensarem com fundo suficiente
de vidas humanas como se impedem
os editais.

Adriano Botelho
Angola

Arte poética



Como um pequeno rebanho
as palavras alinharam-se
em meus lábios
tendo a tua boca
como seu pastor.


Gonçalo Salvado

Romance de Tomasinho Cara-Feia


Farto de sol e de areia
Que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destinho.
Só nha Fortunata, a mãe,
Que é velha e não tem ninguém,
Chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
Deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?),
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

— E nunca mais voltará!


Daniel Filipe (Cabo Verde)

29.4.10

Soneto da Fidelidade



De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes (Brasil)


A Ilha e a Solidão



E já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta!)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
- subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.

Daniel Filipe
Cabo Verde

A primeira vez que entendi



A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.

Affonso Romano de Sant'Anna (Brasil)

28.4.10

A árvore


Chegaste
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram…
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.

Yvette Centeno

Abro a porta do armário


Abro a porta do armário; na janela
há um reflexo bom de lua esguia;
com patas firmes vou à sala, espreito
o teu corpo dourado que dormita
diante da tv; ainda não sabes
que vim de viagem, dentro de uma mala.
Ver-te dá-me prazer; és todo feito
de fibra hipersensível, e elegante;
assim distante é que melhor contemplo
a dura forma que desenham ossos,
a mansa luz que brilha nos sentidos.
Mas, de repente, dás uma palmada
num secreto mosquito impertinente,
que descreve no ar uma parábola, e cai
diante de mim. Está cheio do teu sangue,
açucarado e quente, ainda vibrante, denso
e espesso como os sonhos mais profundos.
É triste ser vampiro, mas
está-me na natureza o apetite;
vou-me esquecer agora do limite
que me impus noutra hora mais discreta,
dar-me todo à fome, e devorar-te
sem teia, nem fio, nem arte.

António Franco Alexandre

Para L. F. Lindley Cintra



Na noite a voz cristal a voz macia
de um jogral
para a vertigem antiga:
- um novo olhar barco
para a vida
nesta ilha de névoa
e maresias já esquecida.

Tua fronteira no meu braço
que te contorna: evidente
oceano. E me navega
pelas ruas da cidade
entorpecida:
- certeza na espada e na chama
da aliança
em sangue consentida.

J. David Pinto Correia

Canela e gengibre

Has-de sentir-me assim
canela e gengibre
no mesmo copo
que te embebeda..

Tânia Tomé



Em Torno da Minha Baía



Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruinas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruinas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições
HUMANIDADE.

Alda do Espírito Santo
S. Tomé e Príncipe

Uma incisão



Uma incisão,
um golpe – tatuagem ou cicatriz, depois –
na casca do tronco: e a seiva
escorre,
em toda a sua espessura branca,
de leite – para o onde
a recolhem as crianças.

Que a levam
ao lume vagaroso das fogueiras,
até ferver.

Levantando fervura,
a seiva das mulembas é como:
o fúnji de bombó: vai-se mexendo,
batendo, mexendo – sem deixar
granular – até ser
essa massa compacta e maleável,
a que se chama visgo.

*

Com o visgo se apanham, vivos, os pássaros:
nos ramos mais gulosos de frutos – à sombra,
e seiva, das suas árvores – quando poisam.


Zeto Cunha Gonçalves
Angola

27.4.10

Maternidade



Dentro de mim,
é que trago
a voz que se não cala,
e a força
que não mais se apaga...

Dentro de mim
é que o caudal-anseio alaga,
e correndo
há-de ir, de mar em mar,
levar
ao fim da terra,
um sinal de infinito...

Dentro de mim,
do meu sangue nutrida,
e sustentada,
é que a voz não é soluço
mas grito!

Dentro de mim,
eco de paz ou de alerta,
dentro de mim,
é que a eternidade é certa!...

Alda Lara (Angola)


Um vento - erosão do tempo

Sangha Market Art Print

A palavra dorme
no flanco das serras
faz nuvens de tempo
e cava ribeiros
com os caudais do som.

A palavra medra
no fundo das covas
exala vapores
desfaz-se em poeira
de cáustica cor
adere às camadas
mais finas da pele
desfaz as mãos dadas
do amor indeciso
e embala crianças
negras que arrefecem.

A palavra invade
o pudor das grutas
as veias dos bosques
o céu das lagoas.
A palavra esculpe
nas furnas de grés
a fresca ventura
de meninos nus.

A palavra está
na cama dos fósseis:
dorme há milhões de anos
nas asas do raio
que petrificou
a aurora dos dias.

A palavra roda
no selim da infância:
marítima luz
ladrilho de sal
um disco que disca
com o centro na cinta
e amputa a paisagem
ao nível da idade.

Ruy Duarte de Carvalho (Angola)

Quando eu morrer


Quando eu morrer, Amor, quero que venhas ao pé de mim
e te sentes na cama como fazias antigamente.
Afasta-me os cabelos e olha-me nos olhos. Não me beijes
porque beijar um morto causa repugnância
e eu não quero que o nosso último encontro seja amargurado.

Depois, hás-de falar. Como outrora o fazias,
ao morrer melancólico da tarde,
quando vinhas e ficávamos a fitar-nos fixamente,
como se a Vida parasse para além dos nossos olhos,
e o mundo fosse o quarto e nós dois a humanidade inteira.

Hás-de falar, Amor. Não importa de quê
desde que o faças carinhosamente baixo...
Dir-me-ás qualquer coisa. Qualquer coisa, mas que sejas tu a dizê-la,
e eu possa ouvir-te, como outrora, extático e feliz,
mudamente, inexplicàvelmente deslumbrado...

E ouve, Amor, não chores. Que eu quero que no último encontro
o teu rosto conserve a beleza dos encontros antigos.
Olha-me nos olhos e lastima-me interiormente.
Eu estarei presente e, de algum modo, ouvirei a prece
que hás-de rezar no silêncio cálido do quarto.

Daniel Filipe, 1946

26.4.10

Alegoria floral



Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus
seios de flor: seguirei o caminho da água nos
canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei
pela terra em busca da raíz.

Nesse dia em que os cabelos da mulher se
confundirem com os fios luminosos que o sol
faz passar pela folhagem; e em que um perfume
de pólen se derramar no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre
uma tranparência de ribeiro.

Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu
da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e
empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.

Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como
um botão de rosa, esperando que a nuvem desça
do céu para a roubar ao sonho da flor.

Nuno Júdice

Única Dávida



Os engajadores levaram
a nossa única dádiva
e já ninguém devolve
o que nos foi roubado.

Longa è a ladeira que a fome alonga.

Enquanto eu vivo
as perguntas duram
E eu vivo da fome
interrogativamente.

Longa è a ladeira que a fome alonga.

Como podem ladrões
rondar meus olhos
se amor só
meus olhos tem?

Longa è a ladeira que a fome alonga
terralonginquamente.

Gabriel Mariano
Cabo Verde

O mundo completo


Estes gestos de vento,
estas palavras duras como a noite,
estes silêncios falsos,
estes olhares de raiva a apertarem as mãos,
estas sombras de ódio a morderem os lábios,
estes corpos marcados pelas unhas!. . .

Esta ternura inventando desejos na distância,
esta lembrança a projectar caminhos,
este cansaço a retratar as horas!...

Amamo-nos. Sem lírios
sobre os braços,
sem riachos na voz,
sem miragens nos olhos.

Amamo-nos no arame farpado,
no fumo dos cigarros,
na luz dos candeeiros públicos.

O nosso amor anda pela rua
misturado ao buzinar dos carros,
ao relento e à chuva.

O nosso amor é que brilha na noite
quando as estrelas morrem no céu dos aviões.

António Rebordão Navarro

25.4.10

Todo o poeta quando preso



Todo o poeta quando preso
é um refugiado livre no universo
de cada coração
na rua.

O chefe da polícia
de defesa da segurança do estado
sabe como se prende um suspeito
mas quanto ao resto
não sabe nada.

E nem desconfia.

José Craveirinha
Moçambique

Uma chama não se prende



Rodeado de paredes
rodeadas de muros altos
que foram depois muralhas
um preso encarcerado
ao longo da terrível década de 50
inteira
Não cedeu.

Levado a tribunal
em 3 e 10 de Maio de 1950
só então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele torturados não «falaram»
não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo greve da fome foi morto
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o seu Partido a sua acção
e a sua orientação política

Ponto a ponto responde às calúnias
que são os porcos argumentos do ódio
e do terror de estado Ponto a ponto
responde com o orgulho do homem livre
e o vigor da inteligência Responde por si
e pelos seus como quem acusa
e ameaça Ameaça o inimigo que o tem preso
Dos 11 anos seguidos, preso,
14 meses incomunicável,
8 anos em isolamento
E não cedeu Nunca cedeu
Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/e grita/contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
este homem livre é uma chama
uma lâmpara marina

Não cede lê e desenha lê
e estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada pelo vento e pelo silêncio
numa cela
Não cede e escreve
A Questão Agrária
As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma tradução do Rei Lear
e escreve
Até Amanhã, camaradas

o homem livre encarcerado
fugiu enfim
colectivamente
a 3 de Janeiro de 1960
e nunca mais foi apanhado


Manuel Gusmão

24.4.10

Carregados de anos de silêncio



Carregados de anos de silêncio
e cólera mil vezes reprimida
eis-nos enfim saciados do mar
confinante com as terras do exílio,
golfos, areias desconhecidas,
tanta e mortífera guerra:
morte feroz exercida com o ferro
e fogo da conquista, os barcos
carregados de desastres, a ira
de quem, indefeso, via partir
as árvores, madeiras africanas
privadas das suas aves.


Manuel G. Simões

23.4.10

A Leitora


A leitora abre espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.

António Ramos Rosa

22.4.10

Vento

Little Words II Art Print

As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.



Carlos de Oliveira

21.4.10

Descrição da Guerra em Guernica




I

Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.


II

As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do tecto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio; e assim,
por toda parte,
a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.


III

Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros; sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele; inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.


IV

Em baixo, contra o chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,
barro, sestas pobres? quem
tentou salvar o dia,
o seu resíduo
de gente e poucos bens? opor
à química da guerra,
aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,
este gládio,
esta palavra arcaica?


V

Mesa, madeira posta
próximo dos homens: pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o betume, os nós;
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amor
do carpinteiro ao objecto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,
uma criança da família.


VI

O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros vôos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atônito, abra as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.


VII

Cavalo; reprodutor
de luz nos prados; quando
respira, os brônquios;
dois frêmitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano, ao furor.


VIII

Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar; e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.


IX

Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.


X

O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa.

Carlos de Oliveira

A palavra que toca


A Palavra que sou
Vem do teu eco

A flauta que faço
Com a cana que corto
É som e és signo
Na tua boca

Itinerário de estrelas
É verdade de mim

Antonio Dacosta

20.4.10

A morte do vale dos perdidos


Na “falecida” taberna
Do Sô Zé
Frequentavam
Bêbados inseguros,
Casados infelizes,
Fumadores inveterados,
Profissionais frustrados,
Prostitutas sedentas de euros,
Solteiros sem auto-estima,
E um cão vadio e solitário.
Lá dentro,
Sentia-se
Um cheiro fedorento
E uma atmosfera única
Qual Vale
Dos Perdidos.
Foi decretada
A sua “Morte”
E eu assisti
Ao seu cortejo fúnebre.

Delmar Maia Gonçalves

Canto e lamentação na cidade ocupada


5.

É preciso cantar, é preciso sorrir,
encher a escuridão com árvores sem nome.

Estamos sós no mistério dos nossos quinze anos.
A tormenta passou. A comida arrefece.

A viagem sem história concede-nos a calma:
serenos existimos, ocultos, dominados.

Só o navio de fogo navega sobre as águas
(ponto negro no mapa que não teremos nunca).

No silêncio da espera, murmuramos palavras,
desfraldamos bandeiras, corrompemos o sonho.

Desejamos o amor, completo e derradeiro
como o cheiro do mosto nos lagares de Setembro

— mas olhamos o sexo e não compreendemos
a noite preenchendo um corpo de mulher.

E pura que ela fosse! Desfar-se-ia em bruma...
De mãos vazias vamos para o sono comum.

Um cavalo na estepe, o nosso vago anseio
marcando-nos temores na impúbera face.

Recolhemos o gesto, a flor primaveril,
o canal dos sentidos debruado de escombros

— e rígidos a planície inútil
com nervuras de sal no rosto imaginado.


Daniel Filipe (Cabo Verde)

19.4.10

Reza, Maria




1ª versão

Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem á míngua de pão
vermes na rua estendem a mão a caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança

Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!

José Craveirinha
Moçambique

Canto as veias




a. as cores da terra

fomentava sementes da concórdia
hinos à longitude. cantava
veias ateadas no ventre
içava o sangue das bandeiras
rumo às violetas dissimulando
um mundo ardido na cor rubra
dos velhos panos.

b. o hino nacional

da língua orvalhada
um som ressalta
o sangue nacional.
tomo-lhe o fio arvora
palavra em parto.

e são já as sílabas
um pergaminho do
corpo cantado na
povoação.

João Tala
Angola

Um campo batido pela brisa



Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho um «pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
iluminado, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.

Fernando Assis Pacheco

18.4.10

Carta



Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo, meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Tenho corpo p'ra sofrer
Boca para gritar
E comer o que comer
Os meus pés que vão
No chão
Minhas mãos são de trabalho
Em coisas que eu não sei
E não tenho nem apalpo
Trabalho que fica feito
Para o branco me dizer
"Obra de preto sem jeito"
E minha cubata ficou
Aberta à chuva e ao vento
Vivo ali tão nu e pobre
Magrinho como o pirão
Meus fios saltam na rua
Joga o rapa sai ladrão
Preto ladrão sem imposto
Leva porrada nas mãos
Vai na rusga trabalhar
Se é da terra vai para o mar
Larga a lavra deixa os bois
Morre os bois... e depois?
Se é caçador de palanca
Se é caçador de leão
Isso não faz mal nenhum
Lança as redes no mar
Não sai leão sai atum...
Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Um pouco de coração
De coração e perdão
Jesus Cristo meu irmão.

Alexandre Dáskalos
Angola

Desgostosa



O seu riso gentil que ainda me arrasta,
Como quem vai seguindo no deserto
Os raios dum clarão que julga perto,
Mas que a segui-lo toda a vida gasta;

Sua voz, seu olhar, sua alma casta
Todo esse altivo e festival concerto
— Brancas formas de luz que ao seio aperto
Sonhadamente, numa dor nefasta...

Esse porte de brilho e majestade
E o seu modo sincero, doce e honesto,
Tudo a sombra da Mágoa, sem piedade,

Velou, tocando-a com seu ar funesto!
Nunca eu sonhasse, ó íntima saudade,
Seu riso, voz, olhar e alma e gesto!...


António Fogaça

17.4.10

A Boca



Jucunda boca
deslabiada a ferozes
júbilos de lâmina
afiada.

Alva dentadura
antónima do riso
às escâncaras desde a cilada.

Exotismo de povo flagelado
esse atroz formato
da fala.

José Craveirinha
Moçambique

Anoitece



Anoitece. Sou um caminho
sentado sobre o sentir-me
pedra, oiro e sangue.
Os dias regressam à sombra
do meu verso afiado.
Velhas de panos riscados
esquecem tabaco na esteira
branca do meu coração.
Anoitece sobre o sentir-me
pedra, oiro e sangue.

José Luís Mendonça
Angola

16.4.10

Esta palavra saudade



Junto de um catre vil, grosseiro e feio,
por uma noite de luar saudoso,
Camões, pendida a fronte sobre o seio,
cisma, embebido num pesar lutuoso…

Eis que na rua um cântico amoroso
subitâneo se ouviu da noite em meio:
Já se abrem as adufas com receio…
Noites de amores! Que trovar mimoso!

Camões acorda e à gelosia assoma;
e aquele canto, como um antigo aroma,
ressuscita-lhe os risos do passado.

Viu-se moço e feliz, e ah! nesse instante,
no azul viu perpassar, claro e distante,
de Natércia gentil o vulto amado…

Gonçalves Crespo
Brasil

Poema Pial


Toda a gente que tem as mãos frias
Deve metê-las dentro das pias.

Pia número UM,
Para quem mexe as orelhas em jejum.

Pia número DOIS,
Para quem bebe bifes de bois.

Pia número TRÊS,
Para quem espirra só meia vez.

Pia número QUATRO,
Para quem manda as ventas ao teatro.

Pia número CINCO,
Para quem come a chave do trinco.

Pia número SEIS,
Para quem se penteia com bolos-reis.

Pia número SETE,
Para quem canta até que o telhado se derrete.

Pia número OITO,
Para quem parte nozes quando é afoito.

Pia número NOVE,
Para quem se parece com uma couve.

Pia número DEZ,
Para quem cola selos nas unhas dos pés.

E, como as mãos já não estão frias,
Tampa nas pias!


Fernando Pessoa

15.4.10

Pena



Zangado
acreditas no insulto
e chamas-me negro.

Mas não me chames negro.

Assim não te odeio.
Porque se me chamas negro
encolho os meus elásticos ombros
e com pena de ti sorrio.

José Craveirinha
Moçambique

Barbearia



Na barbearia às escuras
Júlio Chaúque foi barbeado
quando voltava da machamba de milho.
Os que viram
dizem que Júlio foi escanhoado
até às carótidas do colarinho
em requintes de gilete
dos facões de mato.

Os barbeiros do Chaúque
deixaram em toalhas de folhas secas
congruentes nódoas roxas.

José Craveirinha
Moçambique

O salvamento do filho



Vejo o filho levado pela mosca
e estremeço de horror!
Tirado do berço pela mosca,
aprende,aos ziguezagues,a ser vítima da mosca,
mas não chora: um homem nunca chora.

A mosca agiganta-se,o filho diminui.
Um ruído de ventoínha invade o quarto.
Passa por mim a mosca,passa em tromba.
Vi com estes que a terra há-de comer
meu róseo filho que sorria!

Ó meu filho arrebatado que inocência a tua!
Essa fera peluda vai sugar-te
e tu sorris fininho,entre divertido e assustado,
como se a tripulasses num carrocel de feira!

E eu para aqui,tão caçador de moscas
numa infância tão aferroada,
sem um gesto,sequer uma palavra...

Mas de repente a mão disparo
no mesmo assomo de colegial
perseguidor de moscas (era nas aulas de moral...)
e enquanto na direita a mosca se interroga,
na concha da mão esquerda o filho cai - e chora!

Alexandre O'Neill

Aeroporto




É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.


Rui Knopfli
Moçambique

14.4.10

Conquista


Trás!...
Explodiu a Verdade,

Agora sou capaz
De tudo
Indiferente e quedo e mudo
Deixarei escangalhar o brinquedo
Que temi na Infância,
Rasgou-se o céu em mil fatias lindas,

Ricos
Fanicos
Que recolhi na mão.

Desilusão!
Cristal, cristal, cristal!

E eu a namorar o mal...

Pedro Corsino Azevedo
Cabo Verde

Poesia Verde

para Carlos Drummond de Andrade


No meio do caminho nunca houve uma só pedra
As pedras nascem na boca e a boca é o seu caminho
Das pedras que comemos as cidades ainda falam
pelos cotovelos da noite Não eram pedras eram pedras
com cabeça tronco e sexo Pariram fábricas
de pedras montadas sobre a língua E as pedras comeram
a pedra que restou no meio do caminho

José Luís Mendonça
Angola

13.4.10

Além da Terra, além do Céu,



Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.

Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)

Ofício




Ocupo o espaço que não é meu, mas do universo.
Espaço do tamanho do meu corpo aqui,
enchendo inúteis quilos de um metro e setenta
e dois centímetros, o humano de quebra.
Vozes me dizem: eh, tu aí! E me mandam bater
serviços de excrementos em papéis caídos
numa máquina Remington, ou outra qualquer.
E me mandam pro inferno, se inferno houvesse
pior que este inumano existir burocrático.
E depois há o escárnio da minha província.
E a minha vida para cima e para baixo,
para baixo sem cima, ponte umbilical
partida, raiz viva de morta inocência.
Estranhos uns aos outros, que faço eu aqui?
E depois ninguém sabe mesmo do espaço
que ocupo, desnecessário espaço de pernas
e de braços preenchendo o vazio que eu sou.
E o mundo, triste bronze de um sino rachado,
o mundo restará o mesmo sem minha quota
de angústia e sem minha parcela de nada.

Nauro Machado
Brasil

O tocador de clarineta




Quando ouvires o pássaro
Cantar em frente do teu quarto,
Naturalmente em vão,
não penses
que sou eu que aí vim tocar,
não.

Quando o vento disser,
ao teu ouvido de mulher
uma palavra
branca e fria como a cerração,
não penses que o vento fui eu,
não.

Quando receberes
uma carta anônima, trazida
por secreta mão
- quem será que assim me acusa? -
eu é que não serei,
não.

Quando ouvires, porém, no escuro,
a goteira caindo
sobre o triste chão, aí, então,
serei eu que estou batendo
na pedra
do teu coração.

Cassiano Ricardo (Brasil)

Arte poética




Ser a raiz das coisas
dentro na terra mergulhar
não por ser raiz
- prosápia dos tiranos -
mas curiosa
primordial volúpia
de conhecer
o que não se pode e é;
armar entre os trâmites da terra
- seca, fera e estéril -
uma sementeira próspera,
escolher um a um os grãos
que hão-de guiar os olhos,
vigias da alma
mais que olhos,
felizes arquivadas folhas
de servir
aos dedos impacientes
- mesmo deus tem dentro um deus profundo -
com que o poeta traça
o seu destino cego,
quando os dedos penetram,
rasgam, dentro da terra
enterram, e se enterram
talvez sonhando das coisas ser
a raiz,
a última razão.


António Mega Ferreira

Se pelo menos para mim olhasses



Se pelo menos para mim olhasses
outra vez com a tua forma de cor diferente.

Se outra vez!, mais um vez...
me desses as mãos com nós em cada dedo.

Se meu amor me untasses o corpo com óleo
do teu amor depois de um banho quente...

Se meu amor me amasses por ti e por mim
antes de me despedir deste corpo da caneta para o papel.


A verdade meu amor, é que o frio que sinto
é a ausencia do teu olhar
quando as tuas mãos
não me estão ligadas e
como não
as encontro
a tinta não sente
o calor que sai dos meus lábios entreabertos.

São variações de temperaturas
que a caneta procura suster
entre o teu olhar e amor
e o frio ligado ao corpo.


Ana Maria Costa

Bendito sejas


Bendito sejas
serviçal cabo-verdiano
que teimas em ver
para além da prisão
Sabes bem
que para lá dos teus olhos
há a terra de Cabo Verde
que espera por ti
Se tu cansas
É que ainda te abraça
a esperança
e não morreu dentro de ti
o desejo de matar a morte

Bendito sejas
serviçal cabo-verdiano
Não deixes que tuas pálpebras
amorteçam na dor
É preciso enrijá-las
para o dia do regresso
Que voltarás
não numa manhã de nevoeiro
de morbidez alquebrada
mas num dia de sol quente
ébrio de saudade
da terra que ficou
sedento do perdão
da terra que entregaste
sozinha quase nas mãos dos Cains


Ovídio Martins
Cabo Verde