30.4.08


Nunca mais


Passa um dia,
e outro a correr atrás dele
e outro e outro...
O tempo a todos impele,
tal o vento
levando, em doida correria,
revoadas de folhas outonais,
folhas de calendários sempre iguais,
uma a uma arrancadas,
perdidas nas estradas...
Nunca mais... Nunca mais...


Saúl Dias


Quatro mil soldados


Ra ta plá ta plá
quatro mil soldados
vão mecanizados
pela estrada fora.

Sereninha a hora,
manhã linda, linda,
mas os quatro mil
marcham indiferentes.

Ra ta plá ta plá
que bonito é!
Mas à volta há flores
e nenhum as vê.

Passam andorinhas,
dizem-lhes recados.
De olhos encantados,
passam raparigas.

Ondas lhes acenam.
Melros e pardais
fazem-lhes sinais
pela estrada fora.

Mas os quatro mil
vão mecanizados.
Passos acertados
pelo rataplã;

os ouvidos dados
só ao rataplã;
olhos cegos, cegos,
coração entregue

só ao rataplã
(Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá)

Que monotonia!
Que enfadonha letra!
Entretanto os melros
trinam de alegria.

Trinam, trinam, troçam.
Quatro mil soldados,
todos combinados,
negam a manhã!

Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá


Sebastião da Gama


O ventre da onda brava


Se eu fosse pintor pintava
De verde, verde e cinzento,
O ventre da onda brava
E os olhos cegos do vento
Só com essas duas cores
Talvez que a tinta ocultasse
Meu prazer, as minhas dores...
Tudo que me lês na face!
E, sob o feltro dos dedos
Poisando nas tuas ancas,
As ondas dos teus cabelos
De loiras ficavam brancas.
Nem sequer falas de gente!
Nem alegria nem mágoa.
Ou luar ou sol poente.
Corpo de cristal com água...
Em vez de carne, cerejas.
Legumes, em vez de peixe,
Antes que os meus lábios vejas
E, presos, um beijo os deixe.
Quem se lembraria então
Do poeta (ou do pecado)
Atirado para o chão
Como um fósforo apagado?


Pedro Homem de Mello


Por mais frutos que ele traga


Vem aí a Primavera
diz-me sempre a tua boca
depois do mais que me dera
o que vem é coisa pouca

Olha o Verão que já não tarda
diz-me à tarde o teu peito
por mais frutos que ele traga
não há nenhum tão perfeito

Oiço os passos do Outono
dizem-me à noite os teus braços
o que mais ambiciono
é ouvir só os teus passos

O Inverno há-de chegar
diz-me à noite a tua mão
quanto mais a mão esfriar
mais calor no coração

E dia a dia por nós
passam as quatro estações
têm sempre a tua voz
eu respondo-lhes depois


David Mourão-Ferreira



O Pardalzinho


O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim: a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!


Manuel Bandeira (poeta brasileiro)







A onda



a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda

Manuel Bandeira (poeta brasileiro)






Alma luz


Minha alma tem o peso da luz
Tem o peso da música
Tem o peso da palavra nunca dita
Tem o peso de uma lembrança
Tem o peso de uma saudade
Tem o peso de um olhar.

Pesa como pesa uma ausência e a lágrima que não se chorou
Tem o imaterial peso de uma solidão no meio de outras.


Clarice Lispector (poetisa brasileira)



Gargalhada


Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah!
Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah!
Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje essa música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)


O luar


O luar,
é a luz do Sol que está sonhando
O tempo não pára!
A saudade é que faz as coisas pararem no tempo...
...os verdadeiros versos não são para embalar,
mas para abalar...
A grande tristeza dos rios é não poderem levar a tua imagem...


Mário Quintana (poeta brasileiro)

29.4.08


Canção na morte de nga-Caxombo


Olho nga-Caxombo ali
na esteira
deitado morto
a todo comprimento

Vejo-o caminhar sem descanso
do Amboim ao Seles
do Seles ao quipeio
outra vez ao Seles
rotas sem rota mato longe
quem que sabia?

Tipoia o ombro pesava que pesava
duramente Zua
e voz de Kalandu
voz serena do sertão
ele a escutava
através do fogo
através da água
o geito sem raizes
de amar o coração das coisas.

Olho-o pela vez última
na luz rasante desse dez de Julho
a barba à monangamba
cavada sua negra face
morto
deitado morto
a todo o comprimento.


João Maria Vilanova (poeta angolano)



Donas de outro tempo

Donas do outro tempo
Vejo-as neste retrato amarelado:
Como estranhas flores desabrochadas
Negras, no ar, soltas, as quindumbas.

Panos garridos nobremente postos
E a posição hierática dos corpos.
São três sobre as esteiras assentadas
Numa longínqua tarde de festejo.
(Tinha ancorado barco lá no rio?
Havia bom negócio com o gentio?
Celebrava-se a santa milagrosa
Tosca, tornada cúmplice de pragas
Carregada de ofertas, da capela?)
A seu lado, sentados em cadeiras,
Três homens de chapéu, colete e laço.
Botinas altas, botas de cheviote.

Donas do tempo antigo, que perguntas
Poderia fazer aos vossos olhos
Abertos para o obturador da fotográfica?
Senhoras de moleques e discípulas
Promotoras de negócios e quitandas
Rendilheiras de jinjiquita e lavarindo
Donas que percebíeis a unidade
Íntima, obscura, do mistério e do desígnio
Atentas ao acaso que é a vida
(Há sopros maus no vento! Gritos maus
No rio, na noite, no arvoredo!)
E que, porque sabíeis que a vida é larga e vária
E vários e largos os caminhos possíveis
A nova fé vos destes, confiantes,

O que ficou de vós, donas do outro tempo?
Como encontrar em vossas filhas de hoje
A vossa intrepidez, a vossa sabedoria?

Os tempos são bem outros e mudados.
A tarde da fotografia, irrepetível.
Água do rio Cuanza não pára de correr
Sempre outra e renovada.
E dessa fotografia talvez hoje só exista
Na vilória onde as casas são baixas e fechadas
E têm corpo, pesam, as sombras e o calor
A sombra farfalhante da mulemba
Que vos deu sombra e fresco nesse domingo antigo.


Mário António (poeta angolano)



Lamento da Maricota


- "Bom dia, senhor José.
Como passou? Passou bem?"

Mas o senhor José virou a cara,
rudemente, com desdém.
E a pobre Maricota, que passara
mesmo ao lado,
a Maricota ficou
a cismar, a dizer com ar banzado:

-"Aiué, senhor José!
Para quê fazer assim?
Não se recorda de mim?
Pois, então, eu vou ser franca.
Agora tem mulher branca,
a senhora dona Rosa,
a sua mulher casada,
a quem chama "minha esposa";
já não quer saber da preta,
desprezada, abandonada,
a Maricota, coitada!

Agora veste bom fato,
estreia lindo sapato;
não se lembra do passado,
quando usava calça rota
e casaco remendado,
e sapato esburacado
mostrando os dedos do pé...

Aiué, senhor José!

Hoje está forte e contente,
a passear na avenida;
não lembra que esteve doente,
muito mal, quase morrendo,
e lhe dei jula de dendo,
para lhe salvar a vida,
pois nem doutor em Luanda,
nem quimbanda no muceque,
ninguém o curou, ninguém,
senão eu, pobre moleque!

Agora já cheira bem,
com boa perfumaria,
quer de noite quer de dia;
não se recorda, afinal,
da catinga, do chulé,
no tempo em que lhe dizia:
- José, voçê cheira mal,
vá tomar banho, José!

Veio agora de Lisboa,
comprou uma casa grande,
dorme numa cama boa;
nós tínhamos, lá no Dande,
a cubata de capim,
e dormíamos no luando.

Agora tem dona Rosa,
já não se lembra de mim!

Aiué, senhor José,
para quê fazer assim!?...

Geraldo Bessa Victor (poeta angolano)



A Porta

Eu sou feita de madeira

Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.

Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão.

Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa...)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.

Eu sou muito inteligente!
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!

Vinicius de Moraes (poeta brasileiro)


Poente



há oiro derramado sobre o campo


quantas árvores cantam

quantas quantas

sob a luz que as envolve
e que me envolve
sob um fulgente manto

e eu rio
e estendo as mãos pra todo o oiro
que se desfaz em estrelas

e semeia
meu coração inteiro
sobre a terra

esta terra tão estranha
que não amo


Glória de Sant'Anna



Lembranças do futuro


Traz-me lembranças tristes o porvir,
mais do que as débeis luzes a jusante
acesas por consentidas saudades.

O pranto do homem é o menino perdido,
mas a criança que chora na margem
não se chora. Chora o homem:

só os poetas têm lembranças do futuro.


Rui Knopfli



O Luar


O luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas ...

Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?

Alberto Caeiro





Cartas de Amor


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)



Fernando Pessoa





Elegia a uma pequena borboleta


Como chegavas do casulo,
inacabada seda viva
tuas antenas fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,
como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,
minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.

Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.
Ó bordado do véu do dia,
transparente anémona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!(...)

Pudeste a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!
E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
os espelhos que reflectissem
voo e silêncio
os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!


Cecília de Meireles (poetisa brasileira)





Balada das Dez Bailarinas do Cassino



Dez bailarinas deslizam
por um chão de espelho.
Têm corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras azuis e dedos vermelhos.
Levantam véus brancos, de ingénuos aromas,
e dobram amarelos joelhos.

Andam as dez bailarinas
sem voz, em redor das mesas.
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores,
e com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e dança escorre
uma sedosa escada de vileza.

As dez bailarinas avançam
como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta
empurrando olhares e arranhando o ruído.
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
de imaginários, chorosos vestidos.

As dez bailarinas escondem
nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
passa uma faixa de morte tranqüila.
Como quem leva para a terra um filho morto,
levam seu próprio corpo, que baila e cintila.

Os homens gordos olham com um tédio enorme
as dez bailarinas tão frias.
Pobres serpentes sem luxúria,
que são crianças, durante o dia.
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados de melancolia.


Vão perpassando como dez múmias,
as bailarinas fatigadas.
Ramo de nardos inclinando flores
azuis, brancas, verdes, douradas.
Dez mães chorariam, se vissem
as bailarinas de mãos dadas.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)






Canteiros



Quando penso em você fecho os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa, menos a felicidade
Correm os meus dedos longos
em versos tristes que invento
Nem aquilo a que me entrego já me traz contentamento.

Pode ser até amanhã, cedo claro feito dia
mas nada do que me dizem me faz sentir alegria
Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa
Para correr entre os canteiros e esconder minha tristeza.

Que eu ainda sou bem moço para tanta tristeza
E deixemos de coisa, cuidemos da vida,
Pois se não chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta moço, sem ter visto a vida.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)







As sem razões do amor


Eu te amo porque te amo.
Não precisa ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)






Passos furtivos na escada


Passos furtivos na escada
Da minha imaginação.
Sabendo-os frutos de nada
São reais como os que o são.

Basta que os oiça e provocam
A minha insónia de assalto.
Se fujo, seguem-me, voam…
Se grito, gritam mais alto.

Por favor, bom senso - Não!
E resposta que eu não posso.
De que me serve a razão
Se não existe o que eu ouço?


Reinaldo Ferreira



Um anjo erra (o amor confuso)


Um anjo erra
nos teus olhos diurnos

humedecido do véu
(ao fundo, a íris entardece)
seguiu de cor a revoada das pombas

místico
um arroubo ascende a prumo
do plano em que me fitas

cisnes desaguam
do teu olhar em fio
e vogam ao redor, pelo estuário da sala

ao sol-poente
os vitrais das janelas
ardem na catedral assim erguida

colocamos um sonho
em cada nicho

e no círculo formado pelas nossas bocas
subentende-se com verve
a língua.

Sebastião Alba


Não sei que luzes


Não sei que luzes a bordo
escurecem de sentido a noite larga
e em mim perfilam solenes
as sensações na sombra

flébeis costas
devolvem o mar disperso
e nos flancos do casco
um monótono som singra

só minhas ânsias embaladas
fremem
a cada indefinido promontório
se resignam hirtas
na amurada
ou, se volve um farol,
são nucleares e brancas

mas amanhece
vagam flocos de círios
um sol de adolescência e de novela
descobre a amante insulada

e um sino toca para o pequeno almoço.


Sebastião Alba


28.4.08

Já não é...


Já não é a noite que promete algum desejo
e o amanhecer não reflecte mais quimeras

no olhar.

Aquilo que era sol em cada verso
são os caídos,

é a queda

de cada pedra companheira

movida ainda sabe-se lá por que impulsão
após a morte!

As palavras que prometem
vêm depois que silvam balas
e a decisão dos homens.

Restamos nós rochedos brutos da montanha

face voltada ao amanhã que sempre nos guiou.

Cairemos não importa.

Nós somos o carvão da luz futura.

Costa Andrade (poeta angolano)



A Quinta Década


Faz muitos anos que me oculto,
quedo, estendido ao longo desta muralha.
Infectas as feridas são vivas
e secam em falso oblongas crostas.
Estendido em silêncio e torpor:
Vinte e tantos anos de idade
e outros tantos de medo.

O medo da palavra e do gesto,
medo na aba do chapéu e na gabardina,
medo de ti que me olhas na avenida,
medo escorrido ao longo da fachada,
mergulhado nas poças brilhantes do asfalto.
Não tenho culpa de ter medo,
nasci no tempo impreciso do medo.

Não temo o rosto diverso da morte,
não temo a ameaça da nuvem atómica,
não temo o suceptível de ser temido
há dois mil e tantos anos.
Temo a disfarçada ameaça indisfarçada,
temo o honor da angústia a todo a hora,
temo o temor do tempo do medo.

O medo infla, cresce e avoluma-se.
Impregna-se na carne, no cerne das unhas,
veste a tepidez da epiderme e o frio dos ossos.
Total, domina, obstrui, materializa-se em suor.
Pela calada sombria vireis na hora próxima.
Prevenido de medo, farto de medo,
tremo, e este modo é uma ameaça

que se oblitera e volta contra vós.


Rui Knopfli


A quem se interesse


A quem se interesse
por tecidos, peles
sistemas de ocultação

lembro Bartolomeu
santo, mártir, manequim

o que há séculos passeia
sobre os ombros
ou dependurada no braço
feita capa
a sua pele escorchada

adereços:
os pés e as mãos,
a murcha máscara
da cara.

Luiza Neto Jorge

Castigo pró comboio malandro


Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-que-tem te-quem-tem

o comboio malandro
passa

Nas janelas muita gente
ai bo viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender

hii hii hii

aquele vagon de grades tem bois
múu múu múu
tem outro
igual como este de bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança
"Mulonde iá késsua uádibalé
uádibalé uádibalé...'"

esse comboio malandro
sòzinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem


António Jacinto (poeta angolano)

Epula


à chuva do caju

reboando a galope
vestida de trovões
e de sedas azuis
sobre o matope

não é

esta chuvinha fina
que se deixa cair como cristais
sobre todas as faces
e
não tem a força
dos grandes densos matos

em que se grita EPULA
e em que se ri
com o corpo molhado
Glória de Sant'Anna




Lobo Calabouço e Crown Mines


Uma vez era um lobo
disfarçado nas pupilas de um homem
com música de rins palpitando harpas
changanas nos flancos das raparigas
sem elas darem por isso na técnica
rural da sua cidadania aonde uma corja
de garras ao natural indo e vindo
no prenúncio mágico das mãos hasteadas
nos vagões da South African Railway
com restos de pés nos pedais das bicicletas
a todo o urânio da Crown Mines rápidas
e persuasivas no melaço das vozes
National nos rádios de aldeia em aldeia
retransmitindo os nervos
de cadeia em cadeia.

Mais um minuto magaízas
não se acidentem agora por favor
que uma libra de gritos na porta mortal
da sua casa de oiro algema o mineiro
e de repente leva-o no seu calabouço
alvo de pernas por meia-dúzia de xelins.

Sóum minuto mais magaízas
só um minuto mais magaízas enquanto volta
da Eloff Street o poeta com chapéu de plástico
uma velha perna boa e uma nova de madeira
exibindo um rádio portátil a tiracolo
para acabar de vez este poema!


José Craveirinha



Quadro


tanto oiro na tarde
escorrendo do poente

as silhuetas das árvores
são fímbrias de poemas

e quantos horizontes
me esqueceram?


Glória de Sant'Anna



Poema



Os gritos da menina
são como espadas.

Lucilam na transparência
inesperados,
e trespassam-me.

Mas por toda a parte
há flores azuis
e bonecas e pássaros

que a menina traz
e deposita nos meus braços.


Glória de Sant'Anna



Espera


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


Eugénio de Andrade


27.4.08


Gente a trouxe-mouxe


Gente à trouxe-mouxe da má sorte
calcorreia a pátria asilando-se onde
não cheira a bafo
de bazucadas.

Gente que gastronomiza
desapetitosos bifes de cascas
guisados de raízes ao natural
e sobremesas de capim seco.

Gente dessedentando martírios
nos charcos se chover.
...
ou a pé descalço dançando.
A castiça folia.
Das minas.


José Craveirinha

26.4.08


Epitáfio


Eu um dia serei uma poalha de vento
pousando inadvertidamente em tua face

e me sacudirás

Eu um dia serei uma réstea de chuva
caída por acaso em tua fronte

e me sacudirás

E eu um dia serei a última lembrança
imponderável já na tua mente

e então me esquecerás


Glória de Sant'Anna