30.11.09

Havemos de Cantar



havemos de cantar,
no solo triste,
na floresta sangrenta,
sobre o mar virgem
com os nossos olhos atados.

Havemos de cantar
nas vilas e nas cidades
da nossa terra, terra.
vibrando como os homens
no caminho da liberdade.

Havemos de cantar,
nos rios e nos lagos
como um marinheiro perdido
a procura da paz e liberdade
dum povo escravizado.

Cantando um hino vibrante
no caminho da liberdade
com os nossos olhos atados,
no solo triste e sangrento
havemos de cantar.


Adilson Augosto Nancassa
Guiné

Só uma vez agarrei esse momento



Só uma vez agarrei esse momento
em que alguma coisa começa
mesmo, ao centésimo de segundo.
O meu coração parou por um
centésimo de segundo, as veias
todas pararam e um cabelo
rompeu, primaveril, na cabeça.

Alguém fugira num labirinto
sem saber que era labirinto
e por todo o tempo da vida
se enganou sem remédio, era
um daqueles casos em que o tempo
era espaço. E o amor era miragem.

E deixo eu o que estou a fazer,
por mais importante que seja,
para ir completar o que falta
num poema? Pois deixo, imagine-se:
o que falta num poema. Sem juízo
não se faz o que antes se fazia.

Esse centésimo de segundo demorou
uma eternidade, aproveitei
para cantar um hino à imortalidade
dos grandes poetas, dentro desse segundo
depois te amei desalmadamente.


Helder Moura Pereira

Desencanto



Teus olhos, cuja luz
Já me envolveu d'amor o coração
E doirou minha cruz
Do seu divino e mágico clarão...

Teus olhos, cuja graça
Já em risos passou por sobre mim,
Como pelo ermo passa
A Luz a desfolhar-se, - alvo jasmim...

Teus olhos, cujo pranto
Por mim já derramaste, quando ausente,
Cheia de dor e encanto,
Choravas de saudade, aflitamente...

Teus olhos, esses sóis
que eu adorava como o persa adora
O sol entre arrebois...
- O meu Norte, o meu Dia, a minha Aurora!

Teus olhos... porque os vi
Fitando uns outros que não são os meus,
De todo os esqueci...
E assim manchaste tu esses dois céus!...


Bernardo de Passos

A palavra


Só conheço, talvez, uma palavra.
Só quero dizer uma palavra.
A vida inteira para dizer uma palavra.
Felizes os que chegam a dizer uma palavra!


Saul Dias

Os Dois Sonetos de Amor da Hora Triste



I

Quando eu morrer — e hei de morrer primeiro
Do que tu — não deixes de fechar-me os olhos
Meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
E ver-te-ás de corpo inteiro.

Como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
Dentro de mim, se, então, tiveres coragem,
Fecha-me os olhos com um beijo.

(Eu, Marco Póli)


Farei a nebulosa travessia
E o rastro da minha barca
Segui-los-á em pensamento. Abarca

Nele o mar inteiro, o porto, a ria...
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
Ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus,



II

Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar. Um adeus de até já,
Como a alguém que se espera a cada instante.

Que eu voltarei. Eu sei que hei de voltar
De novo para ti, no mesmo barco
Sem remos e sem velas, pelo charco
Azul do céu, cansado de lá estar.

E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora

Assim, mente. E, se quiseres partir e o coração
To peça, diz-mo. A travessia é longa... Não atino
Talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino?


Alvaro Feijó


29.11.09

Cântico de alforria

ontheroadtosantiago.jpg image by joannboma_2007

Vem, segura a minha mão
iniciemos um roteiro amargo de peregrinação:
pelo trilho batido do fundo da floresta
partamos até ao mar cruel
o mar sem fim, veículo da nossa servidão.

Não, não feches os olhos à tragédia
olha os negreiros ancorados na baía da nossa desgraça
os nossos irmãos acorrentados
como gado, sorvidos pelo negrume dos bojos insaciáveis
semelhando ventres de deuses bárbaros.
Virgínia, Alabama
Mississipi
sangue vermelho
suor de negro branqueando algodão
Cuba, Brasil
Martinica
mais sangue vermelho
suor de negro movendo engenhos de açúcar.

Eis o nosso povo sacrificado
eis a nossa gente
a nossa gente transportando mares e mares
carne da nossa carne
sangue do nosso sangue disperso pelo Mundo.

Vem, segura a minha mão serena
em passo firme caminhemos até à orla do mar algoz
escutemos as vozes perdidas na profundeza dos abismos
os ecos dos gritos abafados
congelados em pedaços de nossa carne ensangüentada
congelados em miríades de búzios abandonados ao sabor das ondas.

Vem, irmão, seca as lágrimas nas pupilas
toma a minha mão amiga
percorramos o mesmo trilho batido do fundo da floresta
na jornada de regresso que nosso povo não caminhou
e à volta da árvore milenar à beira do caminho
saudemos a alforria ansiada pela nossa geração.

Joffre Rocha (poeta angolano)

A Délia


Cuidas tu que a rosa chora,
Que é tamanha a sua dor,
Quando, já passada a aurora,
O Sol, ardente de amor,
Com seus beijos a devora?
- Feche virgíneo pudor
O que inda é botão agora
E amanhã há-de ser flor;
Mas ela é rosa nesta hora,
Rosa no aroma e na cor.

- Para amanhã o prazer
Deixe o que amanhã viver.
Hoje, Délia, é nossa a vida;
Amanhã... o que há-de ser?
A hora de amor perdida
Quem sabe se há-de volver?
Não desperdices, querida,
A duvidar e a sofrer
O que é mal gasto da vida
Quando o não gasta o prazer.

Almeida Garrett

28.11.09

A verdade é que fomos


A verdade é que fomos
feitos do mesmo sangue
violento e humilde

A verdade é que temos
ambos a graça de compreender
todos os homens e todas as estrelas

A verdade é que Deus
nos ensinou
que este é o tempo da razão ardente.

Deus hoje deu-me um pouco
do que toda a vida lhe pedi
foi esta calma e simples aceitação
de que é preciso que estejas
longe de mim
para que amando eu possa conservar
o meu coração puro.

As ruas hoje pareciam mais largas
e mais claras

As casas e as pessoas
pareciam diferentes

Foi só o tempo de pedir a Deus
que prolongasse o generoso engano.

Tu ensinaste-me as palavras simples
as palavras belas
as palavras justas

E fizeste com que eu já não saiba
falar de outra maneira.

O amor substitui
o Sol - que tudo ilumina.

Sonhar contigo é quase como
saber que existo para além de mim.

Se basta que de mim te lembres
para que o sono facilmente venha
porque não hás-de dar-me amor a paz
com que o meu coração de há tanto tempo sonha

Vês como é tão simples
ter o coração
tão perto da terra
e os olhos nos olhos
e a alma tão perto
da tua alma

Por que será
que quanto mais repartimos
o coração
maior e mais nosso ele fica?

Raul de Carvalho

Quadro



Abri os cortinados de par a par para que o sol
Entre em cena como nos quadros surrealistas
Em que o céu é devorado por um azul
Sem o ruído das nuvens


Chagas Levene
Moçambique

27.11.09

Canção do navio negreiro



Depois da chuva
os meninos em bando
largavam a lagoa
vinham brincar a navegação
Do pequeno porto
saíam então gasolinas dongos
navios de grande calado até
feitos uns de bimba
mafumeira
outros de tampa
de cartão.
Vovô Bartolomeu
gostava de parar
a olhar esses navios
como que em maravilha
estivesse vendo
sei lá
um mar todinho verdade.
Um dia Juca Mulato
lhe procurou
que barco era esse
navegando ao largo
com formigões na proa
e grandes velas
pandas.
«Esse - disse o velho coçando
o queixo - é mesmo
navio negreiro.

João Maria Vilanova (poeta angolano)

O Medo das Sombras




Rondam sombras pelas telhas:
Não é vento são andanças
De bruxas! As bruxas velhas
Chupam o sangue às crianças.

A mãe dorme, a filha ao pé,
Em casa de telha vã
Onde nem há chaminé;

E de interiores deserta
É toda uma casa aberta
A chuva e sol da manhã.

E a filha diz para a mãe,
Como a mãe responde à filha,
Porque este drama não tem
A mais do que mãe e filha:

— Mãezinha, que é, que é?
— Não luz vidro no soalho,
Nem há lume de tição;
Está a gatinha ao borralho.

Oh! dorme, meu coração,
Susto, filha, não te dê:
A água do bebedouro
Espelha luz que se vê.

Longe vá o mau agouro,
Benza-me a luz que nos olha:
Quem não existe não é.

O pucarinho de folha
Lá está no mesmo pé.

— Pela telha destelhada,
Minha mãe, minha mãezinha,
Voar negro de andorinha
Com risos de gargalhada!

— Água da bica, lá fora,
Corre, corre, que se chora:
Filha minha, não tens sede?

— Como peixinhos na rede,
Sombras, ó mãe, na parede!

Não é nada não é nada:
Buraco da fechadura,
Em rosa de luz coada
Será a luz da madrugada
Que vem em nossa procura.

Afonso Duarte

Regresso



Andam no ar
Poemas negros
De cor amarga
Misturados à voz rouca
Dos camiões.
Desertas
Frias
Despidas
As cubatas esperam:
Mulheres e homens,
Nas cubatas,
Vozes
Riem
Escutam
Choram
Histórias iguais a muitas.

Nalgumas
O pranto
Inda é maior.

Costa Andrade (poeta angolano)

Minha ilha, minha prisão



Minha ilha, meu paraíso imaginário, meu mundo
Minha ilha tão bela com o seu solo seco, imundo
Minha ilha sem ribeiros sem chuva sem Inverno
Minha ilha que me enclausura como num inferno

Minha ilha de fortes tentáculos tão imprevisíveis
Como sórdidos, também sabidos, imperceptíveis.
Ilha que segurou definitivamente o meu coração
Que não me doou uma alternativa ou compaixão

Ilha com as colinas e o seu Monte que é de Cara
Sua gente dedicada e resignada que nunca pára
O seu Porto que foi Grande e muito frequentado
Eu, meu corpo aqui meu espírito lá acorrentado.

Ilha com as praias de areia branca de rara beleza
Com seu céu azul e o mar límpido de anil e pureza
Das tamareiras e coqueiros mirrados por esse sol
Tropical, abrasador mas salutar, sem outro igual.

Minha ilha de terra vermelha que gera animação
De múltiplos sortilégios, de actividade de vulcão
Minha ilha que favorece bom convívio e evasão.
É assim a minha ilha, minha sempiterna prisão.


Valdemar Pereira
Cabo Verde

26.11.09

Poema panfletário



Duras serão as pedras no chão que pisaremos.
Por serem duras é que abandonei
Os caminhos movediços
Deste mundo em agonia...

Suaves serão as palavras que falaremos.
Por serem suaves é que abandonei
Os caminhos movediços
Deste mundo em agonia...

Pedras e palavras: certas, necessárias
Duras, suaves e seguras.
E uma casa nova.
E caminhos novos de alegria...


António Cardoso (poeta angolano)




Não um adeus distante


Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar. Um adeus de até já ,
Como a alguém que se espera a cada instante.

Que eu voltarei. Eu sei que hei-de voltar
De novo para ti, no mesmo barco
Sem remos e sem velas, pelo charco
Azul do céu, cansado de lá estar.

E viverei sem ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora

Assim, mente. E, se quiseres partir e o coração
To peça, diz-mo. A travessia é longa... Não atino
Talvez na rota, Que nos importa, aos dois, ir sem destino?


Álvaro Feijó

25.11.09

O poema que te não sei fazer



Tenho um poema todo negro no cérebro.
Um sabor a sangue
Do poema vermelho da boca.
Uma ânsia louca e branca
Do poema róseo
Que me ofereces sôfrega e eterna
Ao artista que sou.

A!, fora eu mágico
E com esta sinfónica paleta
Musicar-te-ia o poema
Que fizesse de ti a rainha
De um tão pobre escravo-poeta.



António Cardoso (poeta angolano)

Assim sou assim pau-pretam-me




I
sou josefina mulher-pau-preto
assim sou assim pau-pretam-me
bem sabem como estou em todo o lado
aeroportos passeios galerias plásticos
nunca mudo nunca poderei mudar
sou corpo sou capulana sou sida
sou tradição sou mamana do imutável

refrão
sou josefina mulher-pau-preto
assim sou assim pau-pretam-me

II
sou filha do escopro de um dia qualquer
sou mercadoria fácil de todo o mundo
qualquer moeda me compra logo
patrão bom preço patrão compra barato
filhos produzo áfrica trago no ventre
sou o pilão sem rugas de qualquer foto
estou definitiva na sala de qualquer turista

refrão
sou josefina mulher-pau-preto
assim sou assim pau-pretam-me

III
nasço em cada dia numa consultoria
saio relatório de montes de cientistas
nos momentos mais solenes viro tese
e descrevem-me em meus hábitos ancestrais
e decoram-me com regras impolutas
e se de manhã acordo tradicional
é porque de pau-preto é a minha alma

refrão
sou josefina mulher-pau-preto
assim sou assim pau-pretam-me

IV
se visto tchuna não sou africana
se canto se pulo se ponho mecha
se saio uma só vez do pau-preto
de falsa vestem-me de europeia podam-me
e se por fim português falo e escrevo
é apenas graças à gentileza deste poema
porque eu josefina apenas sou natureza

refrão
sou josefina mulher-pau-preto
assim sou assim pau-pretam-me

Carlos Serra

Quando a pátria que é nossa



Quando a pátria que é nossa
É assim esgravatada e repilhada
Até aos limites do seu interior
Por gente nossa e despudorada

Quando a pátria que é nossa
É assim regateada ao preço da gula
E ganância, por gente que jurou
Defendê-la com bravura e valentia

Quando a pátria que é nossa
É assim extorquida e ameaçada
Por gente sem dó e auto-esconjurada
Que não olha a meios senão a fins

Quando a pátria que é nossa
É assim leiloada em praças obscuras
À taxa diária do sangue, suor e lágrimas
De milhões de braços, e uma só força
Por gente ilustre e de colarinho branco

Quando a pátria que é nossa
É assim assaltada pelos flancos da sua
Beleza e contornos da sua geografia
Por gente forasteira de si própria

Quando a pátria que é nossa
É assim deixada à deriva e ao relento
E à mercê dos párias do nosso maior
Descontentamento colectivo

Quando a pátria que é nossa
É assim atraiçoada por essa gente sem
Nome, que se aliança com mercadores
De insónias e arautos do caos e do mal
Em troca do fútil e do asco
Todo silêncio e todo exílio serão

Sempre iguais a pátria que é nossa!


Armando Artur


Cantata à morte de Inês de Castro



Longe do caro Esposo Inês formosa
Na margem do Mondego
As amorosas faces aljofrava
De mavioso pranto.
Os melindrosos, cândidos penhores
Do tálamo furtivo,
Os filhinhos gentis, imagem dela,
No regaço da mãe serenos gozam
O sono da inocência.
Coro subtil de alígeros Favónios
Que os ares embrandece,
Ora enlevado afaga
Com as plumas azuis o par mimoso,
Ora solto, inquieto,
Em leda travessura, em doce brinco,
Pela amante saudosa,
Pelos ternos meninos se reparte,
E com ténue murmúrio vai prender-se
Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia
Da ternura e das flores,
Que à bela Natureza o seio esmaltas,
Que no prazer de Amor ao mundo apuras
O prazer da existência,
Tu de Inês lacrimosa
As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Nos versos naturais os sons varia;
O límpido Mondego em vão serpeia
Co'um benigno sussurro, entre boninas
De lustroso matiz, almo perfume;
Em vão se doira o Sol de luz mais viva,
Os céus de mais pureza em vão se adornam
Por divertir-te, ó Castro;
Objectos de alegria Amor enjoam,
Se Amor é desgraçado.
A meiga voz dos Zéfiros, do rio,
Não te convida o sono:
Só de já fatigada
Na luta de amargosos pensamentos
Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes
Sono plácido e mudo;
Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Assomando na ideia, espertam, rompem
O silêncio da Morte.
Ah!, que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espectáculo assombroso
A paixão lhe afigura aos olhos d'alma!
Em marmóreo salão de altas colunas,
A sólio majestoso e rutilante
Junto ao régio amador se crê subida;
Graças de neve a púrpura lhe envolve,
Pende augusto dossel do tecto de oiro,
Rico diadema de radioso esmalte
Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
Nos luzentes degraus do trono excelso
Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios;
O monstro da política se aterra
E, se Inês perseguia, Inês adora.
Ela escuta os extremos,
Os vivas populares; vê o amante
Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
O prazer a transporta, amor a encanta;
Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
Magnânima confere;
Rainha esquece o que sofreu vassala:
De sublimes acções orna a grandeza,
Felicita os mortais; do ceptro é digna,
Impera em corações... Mas, Céus! Que estrondo
O sonho encantador lhe desvanece!
Inês sobressaltada
Desperta, e de repente aos olhos turvos
Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do Furor, três vis algozes,
De buídos punhais a dextra armada,
Contra a bela infeliz, bramando, avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora;
Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os Céus, o amante;
Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
À suave atracção da formosura,
Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte
A vítima de Amor lavada em sangue;
As rosas, os jasmins da face amena
Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume;
E no fatal momento
Balbucia, arquejando: «Esposo! Esposo!»

Os tristes inocentes
À triste mãe se abraçam,
E soltam de agonia inútil choro.
Ao suspiro exalado,
Final suspiro da formosa extinta,
Os amores acodem.
Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus,
Igual consternação e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos
Só nas asas diferem
(Que jazem pelo campo em mil pedaços
Carcases de marfim, virotes de oiro).
Súbito voam dois do coro alado:
Este, raivoso, a demandar vingança
No tribunal de Jove;
Aquele a conduzir o infausto anúncio
Ao descuidado amante.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre
Irá pelo Universo.
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres;
No torrado sertão da Líbia fera,
As serpes, os leões hão-de chorar-te.
Do Mondego, que atónito recua,
Do sentido Mondego as alvas filhas
Em tropel doloroso
Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
Eis, atentas no horror do caso infando,
Terríveis maldições dos lábios vibram
Aos monstros infernais, que vão fugindo,
Já c'roam de cipreste a malfadada,
E, arrepelando as nítidas madeixas,
Lhe urdem saudosas, lúgubres endeixas.
Tu, Eco, as decoraste,
E, cortadas dos ais, assim ressoam
Nos côncavos penedos, que magoam:

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

«Mísero esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já não é teu.

«Sua alma pura
Nos Céus se encerra;
Triste da Terra,
Porque a perdeu.

«Contra a cruenta
Raiva íerina,
Face divina
Não lhe valeu.

«Tem roto o seio
Tesoiro oculto,
Bárbaro insulto
Se lhe atreveu.

«De dor e espanto
No carro de oiro
O Númen loiro
Desfaleceu.

«Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.»

Bocage


Ex-voto da Paisagem de Coimbra ao Pôr-do-Sol




Sangue de Inês, Coimbra, é o teu ex-voto.
Ah, quem o crime estranha, a morte chora?
Inês, ó miséria, teu nome invoco
Ao rito da paisagem que o memora.

Em teu perfil de magoada ausente
Que Coimbra de lágrimas incensa,
Teu sangue, à mártir, exilou em Poente,
Doou-te o amor espiritual presença.

Teu infortúnio, aos meus lábios, timbra,
Sanguínea a golpes na hora do sol-pôr,
Que aos outonais poentes de Coimbra
O sol é em sacrifício do teu amor,

E em teu lago, cismátíco paúl,
Olho as nuvens do Céu cor de martírios:
Anda tua Alma poluindo o Azul,
Dorida luz viática de círios.

E ao que esta luz fatídica delira
E ao que a paisagem tem de insatisfeito,
Com meus dedos em febre, as mãos na Lira,
Soluçarei cuidados do teu peito.

Teu vulto de "Mors-amor" recomponho
Quando cai em delíquio a tarde exangue:
— E é a paisagem minha Ágora de sonho ,
— E é o poente a Legenda do teu sangue.

"Mors-amor", sinto! é a expressão do Outono
Que vem dos choupos ao cair da folha!
"Mors-amor", ouço! em ritos de abandono
É o olor das pétalas que o vento esfolha!

Desígnio de algum choupo ou cedro velho
Quando o Sol abre o cálice vermelho
Da imensa flor da tarde, eu sinto, eu sei!

Oh!, mãos em holocausto, eu quero vê-los,
Ao Poente, libando os teus cabelos,
Como se fossem áulicos de El-Rei.


Afonso Duarte

Papoilas


estou opiada de ti
e percorres-me os nervos todos
com papoilas borboletas vermelhas

o meu corpo entrança-se de sonhos
e sente-se caminhando por dentro

aspiro-te
como se me faltasse o ar
e os perfumes dançam-me

qualquer coisa como uma droga bem forte
corpo e alma
rezam pequenas orações
gestos ritmados ao abraçar-te como que abraça
sonhos

coisa estranha

opiada me preciso ou apenas vestida de papoilas e
muito sol com luas por dentro

para poder mastigar estes sonhos
reais como mandrágoras


Ana Mafalda Leite
Moçambique

Nossa Senhora da Apresentação

senhora
O altar as vagas
o dossel a espuma!
Missas rezadas pelo vento,
ora pelos fiéis defuntos que se foram
noutras vagas.
Ora pelas barcaças que, uma a uma,
buscaram as sereias na distância
e se foram com elas.
Sobre o altar, entre círios, que não são
os círios murchos das igrejas velhas
mas o lume de estrelas,
ELA,
Nossa Senhora da Apresentação.
Aquela
que não tem mantos da cor do céu,
nem fios d'oiro nos cabelos,
nem anéis nos dedos;
aquela
que não traz um menino nos seus braços
porque os seios mirraram
e já não têm pão para lhe dar;
aquela
que tem o corpo negro e sujo
e os ossos a saltar
da pele
e dos rasgões da saia e do corpete;
Nossa Senhora da Apresentação
da Beira-Mar,
que tem capelas
em cada peito de marinheiro,
que morre e, num instante,
se renova
e que anda
quer nos engaços do sargaceiro
ou nas gamelas do pilado
e palhabotes da Terra Nova.
Aquela
a quem todos adoram.
Dos meninos
feitos nos intervalos das campanhas,
aos bichanos que limpam de cabeças
e tripas de pescado
as muralhas do cais.

O dossel a espuma.
O altar das vagas
— e que altar enorme! —
Entre círios de estrelas,
Nossa Senhora da Apresentação
e Justificação
— a Fome!

Álvaro Feijó


Quanto, quanto me queres



Quanto, quanto me queres? – perguntaste
Numa voz de lamento diluída;
E quando nos meus olhos demoraste
A luz dos teus senti a luz da vida.

Nas tuas mãos as minhas apertaste;
Lá fora da luz do Sol já combalida
Era uma sorriso aberto num contraste
Com a sombra da posse proibida...

Beijamo-nos, então, a latejar
No infinito e pálido vaivém
Dos corpos que se entregavam sem pensar...

Não perguntes, não sei – não sei dizer:
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.

António Botto

24.11.09

Oh Calcutá



Teus pássaros
oh Calcutá

voam dos beirais em bandos
voláteis num alvoroço
de gritos roucos quase

humanos
contra a vidraça

Teus pássaros
oh Calcutá

um deus búdico nu
e sentado nos devolveu
num gesto vago

ausente solto
do nada

David Mestre (poeta angolano)

Para que se possa salvar a Literatura



Gosto das personagens que morrem
antes do fim das histórias. É a vida.
As que sobrevivem estão condenadas
a um purgatório do qual
nenhuma ficção as resgatará.
As personagens devem ser como os remédios:
devem ter um prazo de validade.
Não gosto que se pergunte:
o que terá acontecido a Bernardo
e a Luísa depois daquele drama?
Há questões que a literatura não pode
nem deve deixar em suspenso. É fatal.

Hoje escreve-se já para a segunda edição,
para a cinta que proclama o êxito,
para a entrevista na revista do semanário,
para o império da banalidade.
A sofreguidão do novo leva o mercado
a chamar escritores a alguns transeuntes
que acidentalmente decidiram
fazer da literatura um rendimento fixo,
uma escada em espiral para a glória
dos consultórios de dentista.

Nestes casos particulares deviam ser as personagens
a exterminar os autores. Para quê?
Para que se possa ainda salvar a literatura.


José Jorge Letria

23.11.09

A rosa branca



Não me inquieta se o caminho
que me coube - por secreto
desí­gnio - jamais floresce.
Dentro de mim, sei que existe,
oculta, uma rosa branca.
Incólume rosa. E branca.

Não pude colhê-la: mal
nascera e logo perdi-me
nos labirintos do tempo,
onde desde então pervago
apenas entressonhando
aquilo que sou - e vive
no recí´ncavo da rosa.

Sem conhecer-me, padeço
o mistério de existir
em amargo desencontro
comigo mesmo. No entanto,
pesar tão largo se apaga
quando pressinto: na rosa,
mistério não há. Nenhum.
Sem medo de trair-me a face,
posso morrer amanhã.
Extinto o jugo do tempo,
olhos nem boca haverá
- para a queixa e para a lágrima -
se em vez de rosa, de pétala
cinza de pétala, apenas
existir a escuridão.
O vazio. Nada mais.


Thiago de Mello
Brasil

Entrevista




Um homem do mundo me perguntou:
o que você pensa do sexo?
Uma das maravilhas da criação eu respondi.
Ele ficou atrapalhado, porque confunde as coisas
e esperava que eu dissesse maldição,
só porque antes lhe confiara:
o destino do homem é a santidade.

A mulher que me perguntou cheia de ódio:
você raspa lá? Perguntou sorrindo,
achando que assim melhor me assassinava.
Magníficos são o cálice e a vara que ele contém,
peludo ou não.
Santo, santo, santo é o amor que vem de Deus,
não porque uso luva ou navalha.
Que pode contra ele o excremento?
Mesmo a rosa, que pode a seu favor?
Se "cobre a multidão dos pecados e é benigno,
como a morte duro, como o inferno tenaz",
descansa em teu amor, que bem estás.


Adélia Prado
Brasil

Solidão



Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo


Mia Couto
Moçambique

22.11.09

Nada o silêncio da manhã perturbava



Nada o silêncio da manhã perturbava
nos velhos lugares que da antiga casa
eram a parte mais distante. Distintas torres,
que ao longe pareciam quase intactas,
de perto arruinadas se viam e cobertas
das plantas todas que até ali pudessem chegar.

Parecia que às antigas lajes música mais antiga
se havia sobreposto e que era essa, assim, a mais visível:
podia-a tocar quem, atento à natureza, por ali caminhasse
cuidado e silencioso; era também silêncio, mais secreta
conciliação do silêncio consigo mesmo.

Tão estranha música, como aos meus ouvidos
não poderia chegar? Pois o invisível, que a todos toca,
nesse dia eu vi-o realmente.


Paulo Tunhas

Eu vi o tédio atravessar o tempo

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Alberto Caeiro


Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo afora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos.
E o sol é sempre pontual todos os dias.


Alberto Caeiro
Heterônimo de Fernando Pessoa (poeta português)

Fernanda Guimarães


Deixa-me amar-te em meus silêncios
Na calmaria do teu coração que me acolhe
E de onde se desprendem meus sonhos
Em vôos etéreos de plena liberdade

Deixa-me amar-te em minha solidão
Ainda que meus labirintos te confundam
E que teus fios generosos de compreensão
Emaranhem-se no tapete dos meus enigmas

Deixa-me amar-te sem qualquer explicação
Na ternura das tuas mãos que me sorriem
Escrevendo desejos em versos despidos
Na minha alva tez que te cobre e descobre

Deixa-me amar-te em meus segredos
Para que desvendes o que também desconheço
A alma dos meus abismos onde anoiteço
E meus olhos adormecem embalados pelo mistério

Deixa-me amar-te em tuas demoras, longas horas
Em que meu corpo se veste de céu à tua espera
E minhas mãos em frenesim acendem estrelas
Para alumiar-te, ainda que ausente estejas…

Fernanda Guimarães (poetisa portuguesa)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Manuela Amaral


É urgente que as pessoas se amem
sem vergonha e sem tristeza
Que se amem com orgulho
Com a alegria pagã da joie grega

É urgente que as pessoas não se escondam
por detrás das outras pessoas
das idéias das outras pessoas
dos muros espessos do medo

É urgente que as pessoas se amem

É urgente partilhar o pão e o corpo
com a claridade da terra molhada
nas manhãs de sol

É urgente assumir a verdade.

Manuela Amaral (poetisa portuguesa)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Alberto Lacerda


Visto que
Você não quer que as coisas continuem
Assim
Nesse caso
Falemos de miosótis
Flor sobre a qual não sabemos
Nada...

Alberto Lacerda (poeta moçambicano)

Marco Rodrigues - Bruma Do Cais -

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Tomaz Kim


Fugir! Furgir..., fugir para além do mundo,
do caos, da morte ou do futuro...

Fugir de matar aquele poeta
que fala uma língua diferente da minha
mas que vive a mesma poesia!

Fugir do sangue, da morte, do pavor!...

- Eu ainda quero conhecer
o amor da donzela que desperta...

- Eu ainda quero escrever
o poema que há em mim... e que é belo!

Senhor!
Eu não quero matar... Quero viver!

E cantar os que esqueceste...

Tomaz Kim (poeta angolano)

Saul Dias


No sonho de hoje
era a nuvem,
doirada, sobre as messes...

(A nuvem que me foge!...)

Quisera
dormir eternamente,
embalado nos sonhos em que me aparecesses.

Saul Dias (poeta português)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011



Eu vi o tédio atravessar o tempo
atribulado da infância
e espelhar-se naquele rosto

ainda de menino. A cicuta,
o medo, tanto desamor
submerso na água de olhar.

Não tem memória. É de outros
a vontade, o apelo, a boca
acesa ao interdito. Vertigem

alguma o perturba. Mãos rudes
fixam-lhe o perímetro da pele,
secreto desígnio.

Imobiliza-se lentamente na claridade
líquida da cidade
e fosforesce em contraluz.


Eduardo Pitta

Certezas do Tempo



Foi de uma colina obscena que viemos,
no dia se esconde o dedo, nascemos.
Deste caminho, só o hálito
não serve aos mortos. E a recompensa,
a tua vida, quando entra
na casa e, rápido cheiro, apodrece.
Também eu propus o estrangulamento,
que o corpo ficasse fora das muralhas,
no ar
qual bule ardido.


Gil de Carvalho

21.11.09

Rua de Camões

A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe



Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva.

Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto

E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão

A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

Não olhes para os rapazes
que é feio.


Inês Lourenço

Blues




Tua voz desliza como um pássaro aberto na lâmina do dia
ilha que se levanta e voa a partir do Sol
lamento gritado da floresta por sua gazela perdida
choro grande do vento nas montanhas
ao nascimento de um escravo mais na história do vale

Tua voz vem de dentro da cidade
de todas as ruas bairros e leitos da cidade onde houver
um calor de pernas
contar o silêncio das horas guardadas a soco no sarilho
dos ventres
com um jazzman a assobiar na escuridão dos pares
a memória ácida do chicote
nos porões do Mundo

David Mestre (poeta angolano)

20.11.09

Arte poética



Que erosão
no choque genésico das marés
de encontro às pedras habitadas.

Cai areia na areia.

Assim o gasto da palavra
limando os duros conformismos
libertando as verdades mais remotas
tão necessárias ao fruir dos gestos.


João Maimona (poeta angolano)

Do conhecido Deus

a Rute Maria Chaves Pires


De repente, o homem sabe desmerecer
O Deus que conhece. Ao que, no escuro,
Em prece ou meditação lhe convirá ser
Horda pura, hora fugaz, trivial deidade.

Senão, ignaro flato seja, tão profano,
Quão de sábio, falseando ora de poeta,
Ora de profeta, sua palavra derramada
E crase, de soletrada sintaxe, acidental.

Haverá, no primeiro verbo, a dialéctica
De Epicuro e, em seu maldito sussurro,
As entrelinhas com que a metáfora se cose.

Nos demais verbos, como aos seus versos,
Assintomáticos uns, febris outros, em ardis
De frases feitas desse Deus que se conhece…


Filinto Elísio
Cabo Verde