1.1.11

Quando imaginei que podias partir


Quando imaginei que podias partir
senti no corpo o gosto de uma voz distante.
Era voz de pinheiro negra como as estrelas
desprendia do acaso de um frio rarefeito
e já perdida na sua inexistência
como a pedra mais côncava
do mais profundo silêncio da terra.

Era uma voz de hora profunda e rouca
vinda dos ventres espumosos do tempo
ressoando como o rumo incerto de aves negras
crepusculares vértices tristes
sobre campos ausentes.

Vivi um pranto de fadiga indecisa
em lenta pausa de violências ocultas
e a tempestade apagou-se em círculos de brandura
nos rios de ondas pálidas do olhar de inverno
como uma velha nostalgia perdida
adormecida em sabor de ameixa triste.

Era uma fadiga de deuses errantes
vinda da hora perdida da canção de um naufrágio
espalhando-se na alma das árvores doridas
solta na vastidão de planícies de vidro
em entardecer áspero de sal.

Num abraço delgado e transparente
encostei a cabeça ao ombro da parede
marquei o limite da minha boca vacilante.
Era boca sem raiz ou fim de tarde
murmúrio arrastado ou sonolento
orvalho perseguido no país dos naufrágios
lucidez de riso afogado num cais.

Um riso a completar na tua inexistência
na ausência de quem não pode partir.
Um riso a completar na transgressão da incerteza
na despedida inventada por inventar
amanhã
ou hoje
devagar
em silêncio.


Ana Margarida Falcão