Só tintas claras Delicadas
gradações de riso aberto e de frescura
clareza de mim mesmo agora mesmo vista
noutros olhos suspensa e repetida
nos olhos todos que a desejam sem procura
como se um bem o maior bem pudesse haver na vida
sem conquista
Tintas claras que sonho se me furtam sem remédio
Outra vez roxo e negro as vão cobrindo
e com elas quem amo e todo o resto
Ao branco se mistura um sujo breu que não é tédio
ou indiferença mas tristeza dum tempo em que se morre
em caves de tortura e esquecimento
as palavras de fogo só as ouve o vento
e os amantes se perdem no caminho
contra fantasmas que eles mesmos vão urdindo
Pintura escura negra pegajosa faço e a detesto
em raiva cega transformando o meu carinho
e de raiva criando um vão tormento
que tudo diz e diz tão pouco ou pouco mais que nada
Pintura negra e feia suja cujo visco de mim mesmo escorre
ao arrepio de cada pincelada
que minha mão por mão desconhecida vai pousando
e não posso apagar nem evitar nem acusar desventuradamente
ou iludir sequer com desespero amando e rebuscando e só traindo
a claridade impenitente
que em mim também já mal distingo e bem distingo estrebuchando
lá mais fundo até ao fundo ferida
e amordaçada
Mário Dionísio