O tempo, o passado, o que está para trás
e vem, involuntário de cada vez que o não queremos:
é isto tudo que urge esquecer, apagar da vida presente
como a uma sombra no dia luminoso de inverno. Faz-se,
então, uma outra luz. Aceitamo-la, sem remorsos,
como se a merecêssemos por tudo o que a memória
rejeitou: apesar desse rosto de uma rapariga
que, num acaso, encontrámos; ou de palavras
que não deveríamos ter ousado; ou, ainda, desse gesto
que nos empurra para uma obscura margem
de sentimentos encalhados. De vez em quando, alguém
que há muito não via traz-me de volta estas imagens
sonâmbulas. Tenho o trabalho de as receber,
indesejadas, e de as empurrar até à porta de mim
para recuperar o dia presente, limpo destes
restos do que não cheguei a ser. A poesia
define-se nestes instantes de recusa, ocupa sem esforço
o lugar vago das inquietações antigas,
preenche o vazio com o ritmo necessário a que se retome
a respiração.
Nuno Júdice