ROMANCE I
OU DA REVELAÇÃO DO OURO
OU DA REVELAÇÃO DO OURO
Nos sertões americanos,
anda um povo desgrenhado:
gritam pássaros em fuga
sobre fugitivos riachos;
desenrolam-se os novelos
das cobras, sarapintados;
espreitam, de olhos luzentes,
os satíricos macacos.
Súbito, brilha um chão de ouro:
corre-se - é luz sobre um charco.
A zoeira dos insetos
cresce, nos vales fechados,
com o perfume das resinas
e desss mel delicado
que se acumula nas flores
em grãos de veludo e orvalho.
(Por onde é que andas, ribeiro,
descoberto por acaso?)
Grossos pés firmam-se em pedras:
sob os chapéus desabados,
O olhar galopa no abismo,
vai revolvendo o planalto;
descobre os índios desnudos,
que se escondem, timoratos;
calcula ventos e chuvas;
mede os montes, de alto a baixo;
em rios a muitas léguas
vai desmontando o cascalho;
em cada mancha de terra,
desagrega barro e quartzo.
Lá vão pelo tempo a dentro
esses homens desgrenhados:
duro vestido de couro
enfrenta espinhos e galhos;
em sua cara curtida
não pousa vespa ou moscardo;
comem larvas, passarinhos,
palmitos e papagaíos;
sua fome verdadeira
é de rios muito largos,
com franjas de prata e de ouro,
de esmeraldas e topázios.
(Que é feito de ti, montanha,
que A face escondes no espaço?)
E é por isso que investigam
toda a brenha, palmo a palmo;
é por isso que se entreolham
com duras pupilas de aço;
que uns aos outros se destroçam
com seus facões e machados:
companheiros e parentes
são rivais e amigos falsos.
(Que é feito de ti, caminho,
em teu segredo enrolado?)
Por isso, descem as aves
de distantes céus intactos
sobre corpos sem socorro,
pela sombra apunhalados;
por isso, nascem capelas
no mudo espanto dos matos,
onde rudes homens duros
depositam seus pecados.
Por isso, o vento que gira
assombra as onças e os veados:
que seu sopro, antigamente,
era perfume tão grato,
e, agora, é cheiro de morte,
de feridos e enforcados...
(Que é feito de ti, remoto
Verbo Divino Encarnado?)
Selvas, montanhas e rios
estão transidos de pasmo.
É que avançam, terra a dentro,
os homens alucinados.
Levam guampas, levam cuias,
levam flechas, levam arcos;
atolam-se em lama negra,
escorregam por penhascos,
morrem de audácia e miséria,
nesse temerário assalto,
ambiciosos e avarentos,
abomináveis e bravos,
para fortuitas riquezas
estendendo inquietos braços,
- os olhos já sem clareza,
- os lábios secos e amargos.
(Que é feito de vós, ó sombras
que o tempo leva de rastos?)
E, atrás deles, filhos, netos,
seguindo os antepassados,
vêm deixar a sua vida,
caindo nos mesmos laços,
perdidos na mesma sede,
teimosos, desesperados,
por minas de prata e de ouro
curtindo destino ingrato,
emaranhando seus nomes
para a glória e o desbarato,
quando, dos perigos de hoje,
outros nascerem, mais altos.
Que a sede de ouro é sem cura,
e, por ela subjugados,
os homens matam-se e morrem,
ficam mortos, mas não fartos.
( Ai, Ouro Preto, Ouro Preto,
e assim foste revelado!)
Cecília Meireles (poetisa brasileira)