9.11.08

Respigos

Ilha de Moçambique, praia


Descidos os degraus da fantasia
de lá dos píncaros do dirigir
olhar distante a desbravar os sonhos
um vale de pudores a desfingir

de cada patamar os grãos de mágoa
escoam a estender-se num remanso
uma praia de pedras a marcar
saber de experiência em que descanso

esse descanso vai valer coragem
gelar temores conservar a calma
nos nervos a boiar em mil mensagens

Há ironias no amansar da alma:
o embarcar na cor d'outra miragem
o fresco ressoar de velhas palmas

O caos que variou a nossa margem
e abriu-a em curvas para o mar ingente
trouxe-nos mil abraços e chantagem
e cacos de vidro na areia ardente

São tantas enseadas que interagem
tão funda a introspecção e o olhar dolente
que a guerra quando se abre na paisagem
capricha no ferir que se consente
É neste variar de realidades
no calar de desgostos e verdades
que a gente amadurece o seu olhar

E no saber mestiço de vontades
os ódios se travestem de irmandade
e as armas se transferem p'ro bazar

Há uma nave de ontem encalhada
no recife da nossa independência
retém-se na saudade decantada
que a História apressa com impaciência

As pedras enegrecem na toada
que o vento lança com sua incidência
um riquexó prostrado na calçada
esvai-se na tortura da abstinência

Nos ares moles do amplo amanhecer
nas paredes de ócios a escorrer
jamais ressoam mandos de alvorada

Há muita cerimónia por fazer
nos quartos sombrios do entardecer
para tirar do encalhe a nau cambada
Adormecido nos blocos das ameias
que denteiam a linha do horizonte
o tempo espera erguer-se um novo trono
que a era dos odores de desdém
nas raízes de uma imensa mangueira
se retêm

Ninguém sonda o horizonte
ninguém meneia a cabeça
porque o transe é um ficar
ficar de costas para a terra
a repetir o mar
todas as noites
as manhãs inteiras
As pedras olham-nos
nas brisas a varrer detritos
com uma música a elas me ligando
com elas me deixando em harmonia
A parada dos dias só nos vem
da terra
numa vela a varar o fosso azul:
guarda-a um cântico com braços leves
deste novo ócio a desenhar
labirintos de gente acantonada
a Sul

Estranha forma de engolir subúrbios
de dar sobranceria à urbe nobre
não só com cal não só com traça forte
para afastar o olhar do bairro pobre

As gentes simples que fazem lembranças
que as fundem finas as tecem em prata
pintaram seus sorrisos de brancura
cercando-se de beijos de mulata

Se ateiam lares no fundo rochoso
regados de suor antepassado
na superfície incerta de pedreira
impera o tufo pelo maticado

É este o Sul que eu abro nos meus livros
nas ilhas ou nas terras adornadas
que teimam em subir com o mar desperto
e garrir-se de cor e gargalhadas

Dói sempre a indiferença
Face ao pedido de palavra
Das ruínas.
Mas doíam também as diferenças
Com que elas dividiam
Nossas sinas


Júlio Carrilho
Moçambique