29.4.08


Donas de outro tempo

Donas do outro tempo
Vejo-as neste retrato amarelado:
Como estranhas flores desabrochadas
Negras, no ar, soltas, as quindumbas.

Panos garridos nobremente postos
E a posição hierática dos corpos.
São três sobre as esteiras assentadas
Numa longínqua tarde de festejo.
(Tinha ancorado barco lá no rio?
Havia bom negócio com o gentio?
Celebrava-se a santa milagrosa
Tosca, tornada cúmplice de pragas
Carregada de ofertas, da capela?)
A seu lado, sentados em cadeiras,
Três homens de chapéu, colete e laço.
Botinas altas, botas de cheviote.

Donas do tempo antigo, que perguntas
Poderia fazer aos vossos olhos
Abertos para o obturador da fotográfica?
Senhoras de moleques e discípulas
Promotoras de negócios e quitandas
Rendilheiras de jinjiquita e lavarindo
Donas que percebíeis a unidade
Íntima, obscura, do mistério e do desígnio
Atentas ao acaso que é a vida
(Há sopros maus no vento! Gritos maus
No rio, na noite, no arvoredo!)
E que, porque sabíeis que a vida é larga e vária
E vários e largos os caminhos possíveis
A nova fé vos destes, confiantes,

O que ficou de vós, donas do outro tempo?
Como encontrar em vossas filhas de hoje
A vossa intrepidez, a vossa sabedoria?

Os tempos são bem outros e mudados.
A tarde da fotografia, irrepetível.
Água do rio Cuanza não pára de correr
Sempre outra e renovada.
E dessa fotografia talvez hoje só exista
Na vilória onde as casas são baixas e fechadas
E têm corpo, pesam, as sombras e o calor
A sombra farfalhante da mulemba
Que vos deu sombra e fresco nesse domingo antigo.


Mário António (poeta angolano)