28.2.10

Sonhalto



Procuro-me
no teu sonho
No mais recôndito
de ti
Para encontrar
a asa
Que me alevanta

Tânia Tomé

E Eu sou Eu



Aqui estou eu
Mestiço de negro e branco
Severo e brando
Obstinado e ocioso
Modesto e orgulhoso
Obsessivo e sereno
Manso e prudente
Agradável e egocêntrico
Talvez a lei dos contrários
Impere em mim
Ou talvez haja apenas
Uma simbiose de antíteses
O que faz de mim indivíduo
Pois é…
Eu sou eu.

Delmar Maia Gonçalves

A poesia é tudo



haverá descanso para uma nuvem
as nuvens
abraçadas
em entrelaçado?
água
vento
um desalinho
desconcertante
certeza nos movimentos?
não conformada a Terra é o pão
as nuvens a água
e o sol
o centro
total e universal.
os frutos nascem por amor
no quintal
do Éden
e Deus
com as nuvens
sempre
sempre impelindo o pólen
o pólen é o abraço.
diga-se o nome das forças e das coisas
escreva-se o testamento dos frutos
o nome e destino da cor dos peixes
por fim
pergunte-se:
haverá descanso para a Terra?
indelevelmente escreva-se a palavra
as palavras
enquanto as nuvens tocam o pólen
o fermento engenha o pão
pois a Terra não descansa
gira
dança como peão na palma da tua
da nossa mão.


Ivo Machado

27.2.10

Não há estátua que preste na minha cidade

Para Léo Ferre, em saudação a todos os anarcos-surrealistas


Quando um homem pega numa fruta e a leva à boca
Há sempre um polícia que diz “alto aí!, pois essa é do patrão”
O malefício de algumas víboras é mesmo isso:
Fuzilam-te com o olho direito.

Mas a desgraça não pára aqui:
Sempre que um homem tenta dizer uma certa palavra
Morre enquanto pronuncia a letra A
(uma bomba explode no meio do alfabeto).

E porque não havia de ser assim
Se o mínimo que de uma barata se ouve dizer num parlamento
É que ela vai ser a cantora eleita?

Por isso continuo a jurar que de todos os músicos
Prefiro aquele que se senta ao piano e diz que é surdo.

E quando me dão a escolher entre um cavalo e uma bicicleta
Fecho os olhos e escolho um caracol.
E depois, como não sei que fazer desse animal,
Fico parvo a olhar para ele.

Pois é: um caracol (assim como um soneto)
Será sempre uma máquina estupidamente lenta
No meio d’automóveis que dão tantos à hora.

O olhar de Deus contempla a minha cidade.
Porém, não há estátua que preste na minha cidade


Arménio Vieira
Cabo Verde

A minha casa



A minha casa
...É fácil de localizar
É fácil de encontrar,
Basta ires sempre em frente
Para além da linha do horizonte
É fácil concerteza

Primeiro encontras lixo
Lixo e pessoas em convivência
E em harmonia,
Lixo na parte de baixo
E na parte de cima
Lixo e pessoas em convivência íntima

Mais adiante
E com o mau cheiro crescente
Encontras uma lagoa
E nela, crianças a banharem
Crianças a brincarem
Na maior, numa boa

Mais a frente
Entras em becos estreitos
Becos pequenos e apertaditos
É fácil, é só teres isto em mente
Becos e suas enxurradas
Becos e suas águas estagnadas

Sempre em frente
Para além da linha do horizonte
Lá onde a água corrente
Lá onde a água potável
Passa muito distante
E da cor do invisível!

Sempre em frente
Para além da linha do horizonte
Lá onde a luz eléctrica
Connosco brinca
Qual nuvem passageira
Que ora vai, ora vem zombateira!

Sempre em frente
Para além da linha do horizonte
Cheiro de kaporroto no ar
Cheiro de kimbombo a vibrar
Nossas bebidas do dia-a-dia
Nossas bebidas nossa companhia

E no quintal da minha casa
Há jovens a falar alto bêbedos
Jovens cansados, frustrados e arrebentados
São os meus kambas
Kambas das bebedeiras e das malambas
É fácil de localizar concerteza,

Sempre em frente
Para além da linha do horizonte!

Décio Bettencourt Mateus
Angola

O nome do teu ombro

(Dedico este poema a uma mulher especial que sabe perfeitamente que Kama-sutra é muito mais do que umas tantas posições para o ano todo e uma nova marca de preservativos.)

De repente
uma fenda se ajoelha no gemido da rocha

Entre a seda dos nossos templos de medo
dos nossos juramentos
ao peso do carimbo vergados
esta carícia dos caracóis
atravessando o porto das manhãs

Estremeço

Nos idílios da Catembe
somente uma tabuleta com letras de cacimba
na doca
incrustado num gomo de lua
o nome do teu ombro

Abrigas-me do granizo
da fome
da sede que tenho das tuas lianas

Aprendo a tecer a minha sombra
no ciúme da brisa
as velas excitadas pela nortada
a ansiedade índia das âncoras
os mamilos da tua timbila bem chope

E no aroma do teu silêncio, amor
uma pauta
uma escrita na língua das flores
ou um velho cântico de pingos tamborilando
tamborilando
tamborilando os seus dedos
no secreto telhado dos nossos desejos.

Daniel da Costa
Moçambique

26.2.10

Diogo Cão às Portas do Zaire



Deste lado da história
o rio morre aqui.
Do mar sabemos nós e aos capitães
a fama da conquista.

Faço-me ao Sul
porque pertenço ao Norte
e a costa só me serve p'ra cumprir
tarefas de abandono.

Meu fim é circular, ir mais além.
Por isso eu sei de estrelas
direcções
e nada sei de fruto
que se projecta e espera.

Cumpro tarefas, sim, porque viajo.
Assim nasci
sabendo o que me aguarda após a descoberta.
Fronteiras
só conheço as do meu lar
e sei amá-lo, só,
noutras distâncias.

De Deus, empreendi que mora aqui no mar,
porque sou eu
quem lhe constrói a face.
Ao Rei e a Vós
apenas dou noticias do rumo horizontal.
Pois que sabeis da vertical sagueza?

Ruy Duarte de Carvalho
Angola

Pia, pia, pia



Pia, pia, pia
O mocho
Que pertencia
a um coxo.

Zangou-se o coxo
Um dia,
E meteu o mocho
Na pia, pia, pia.


Fernando Pessoa

Minha mãe


Da pátria distante e saudoso,
Chorando e gemendo meus cantos de dor,
Eu guardo no peito a imagem querida
Do mais verdadeiro, do mais santo amor:
- Minha mãe! -

Nas horas caladas das noites de estio,
Sentado sozinho com a face na mão,
Eu choro e soluço por quem me chamava
O filho querido do seu coração:
- Minha mãe! -

No berço, pendente dos ramos floridos,
Em que eu pequenino feliz dormitava,
Quem é que esse berço com todo o cuidado
cantando cantigas alegres embalava?
- Minha mãe! -

De noite, alta noite, quando eu já dormia,
Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Quem é que meus lábios dormentes roçava,
Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?
- Minha mãe! -

Feliz bom filho, que pode contente
Na casa paterna, de noite e de dia,
Sentir as carícias do anjo de amores,
Da estrela brilhante que a vida nos guia:
- Uma mãe! -

Por isso eu agora, na terra do exílio,
Sentado sozinho com a face na mão,
Suspiro e soluço por quem me chamava:
«Oh filho querido do meu coração!»
- Minha mãe! -

Casimiro de Abreu

A universalidade do crente


Sou Cristão
Vou a Roma ou a Belém
Vou à Igreja
Ajoelho-me e oro
Leio a Bíblia Sagrada
Invoco Jesus Cristo
Rezo a Deus
Cumpro o meu dever
Retorno.

Sou Muçulmano
Vou à Meca ou Medina
Vou à Mesquita
Leio o Alcorão
Oro
Invoco Muahmmad
Rezo a Allah
Cumpro o meu dever
Retorno.

Sou Judeu
Vou à Telavive ou Jerusalém
Vou à Sinagoga
Leio o Torá
Oro
Faço a Tahanum
Invoco David e Salomão
Rezo a Adona
Cumpro o meu dever
Retorno.

Sou Hindu
Vou à Benares ou ao Ganges
Vou ao Templo
Leio o Gita
Medito e oro
Purifico-me
Invoco Krishna
Rezo a Om e Brahma
Cumpro o meu dever
Retorno.

Sou homem global
Crente de deus
E estou
Em sua busca.

Delmar Maia Gonçalves

Rapaz



Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja peleol surge antes do o fazer no céu.

Luís Miguel Nava

Amor combate


Meu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo.
Teus braços são a flor do aloendro.
Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo.
Teus olhos são da cor do sofrimento.

Amor-país.
Quero cantar-te. Como quem diz:

O nosso amor é sangue. É seiva. É sol. É Primavera.
Amor intenso. amor imenso. amor instante.
O nosso amor é uma arma. É uma espera.
O nosso amor é um cavalo alucinante.

O nosso amor é pássaro voando. Mas à toa.
Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa.
Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo.
O nosso amor é como a flor do aloendro.

Deixa-me soltar estas palavras amarradas
para escrever com sangue o nome que inventei.
Romper. Ganhar a voz duma assentada.
Dizer de ti as coisas que eu não sei.

Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.
Amor-verdade. Amor-cidade.
Amor-combate. Amor-abril.
Este amor de liberdade.

Joaquim Pessoa

Indiferença

Tu desconheces ignoras este atrás tormento
que dilacera-me a alma e, n'ela só, escondido
vive, como um segredo no corpo lento
escrinal de uma altar Sagrado e enobrecido!

Ignoras, sim, a minha dor, o sofrimento
que me devasta, o amor que traz, bela, ai, rendido
meu coração aos teus pés, virgem, sem alento
de uma esperança, sem, sequer, p'ra mim perdido,

volver o teu olhar de esmola e compaixão!...
Irás assim seguindo teu caminho em rezas...
pisando alcatifas douradas, em seu chão...

'stendidas «sem pensar que existe...» e és causadora
d'este amor. Talvez diga ao ler estas dorosas
endeixas: - «Quem será a mulher que o doido adora?»

Augusto Conrado



Amar


Amar é um prazer, se nós amamos
Alguém que pode amar-nos e nos ama.
Amar é um prazer, se por nós chama
Continuamente alguém que nós chamamos.

Então a vida inteira a rir levamos,
O mesmo fogo ardente nos inflama,
E os ideais da vida, o bem, a fama,
Mãos dadas pelo mundo procuramos.

No encapeladp mar desta existência,
O amor é compassiva indulgência
A culpa original dos nosso pais.

Que resta ao homem, suprimido o amor?
Buscar a morte p'ra fugir a dor,
Tristeza, indiferença - e nada mais.

Rui de Noronha
Moçambique

25.2.10

A flor



Meu tão doce amor de mais ninguém,
Imaginado neste deserto
Destes dias, como único bem
Do caminhante que segue incerto

– Onde o meu distante oásis te tem
Tão escondida, se foi desperto
Que sempre andei nesta vida sem
Nunca o encontrar para mim aberto?!...

Meu tão doce amor de mais ninguém,
Construí-te na dura memória
Como flor mais rara que se tem,

Como a flor mais doce e mais madura,
Que jamais alguém um dia viu,
Mas só amargura em mim floriu!...


António Cardoso (poeta angolano)

Saudade



Acordei no desespero de te ter
te embalar no compasso do vento
como se fosses um menino
que adormece descalço para renascer
no utópico que existe
quando amar é possivel
Acordei de estômago vazio
esperando que do meu estado mórfico
resulte a sede que me vai nos ossos


Tânia Tomé
Moçambique

24.2.10

O meu caderno de folhas




Tenho folhas lanceoladas,
lobadas, lineares
redondas, sagitadas,
elípticas, ovalares,
pilosas ou ciliadas,
filiformes, triangulares,
inteiriças, espatuladas,
em forma de coração.
E folhas A4 e A5,
lisas ou quadriculadas.
Mas estas não são
para aqui chamadas.
- Ou serão?

Jorge de Sousa Braga

Soneto


Se, para possuir o que me é dado,
Tudo perdi e eu própio andei perdido,
Se, para ver o que hoje é realizado,
Cheguei a ser negado e combatido.

Se, para estar agora apaixonado,
Foi necessário andar desiludido,
Alegra-me sentir que fui odiado
Na certeza imortal de ter vencido!

Porque, depois de tantas cicatrizes,
Só se encontra sabor apetecido
Àquilo que nos fez ser infelizes!

E assim cheguei à luz de um pensamento
De que afinal um roseiral florido
Vive de um triste e oculto movimento


in Aves de Um Parque Real
As Canções de António Botto

23.2.10

Ciranda



Segundos e milímetros
do tempo que nos resta
a festa que foi ontem
é hoje a mesma festa.


Maria de Lourdes Hortas

Natureza morta de Josefa de Óbidos


Talvez sustentes o que do tempo os frutos
nos vinham entregar, se os vemos próximos
do calor encontrado nestas salas
tão longas que se fecham e consomem

uma minúcia clara, agora extinta
na polpa que se adoça, e em tua fronte
pousou e se adelgaça a transparência
de recortes simétricos, nas rugas

de panos – as verónicas – que exalam
a humidade pura, que das folhas
chegasse, quando as vemos desprendidas

noutras colchas mais fundas que sustentem
as molduras que cercam o sentido
de estar ausente a face que nos olha.


Fernando Guimarães

21.2.10

Vénus

Venus and Cupid Art Print

Subleva-se no verbo uma brancura
onde sucumbem subtis
trampolins de alvaiade com que a espuma
se exalta na penumbra e nos quadris.

E impugna o púbis. O assusta quase
no aperto da sua tumidez
batida pelo mar feliz da frase
que se ergue do triunfo do que fez

com Vénus firme a resistir ao meio
da onda aonde se debate a trança.
E de onde o desafio do seu seio

emerge, enquanto o justo ritmo avança
na só brancura duma espuma escrita
que ambas instrui e que uma só visita.

Fernando Echevarria (1929)

Poema


Para o Mário Cesariny


Moveu-se o automóvel - mas não devia mover-se
não devia!

Ontem à meia-noite três relógios distintos bateram:
primeiro um, depois outro e outro:
o eco do primeiro, o eco do segundo, eu sou o eco do terceiro

Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começam
Pregões de varina sem peixe
- o peixe morreu ao sair da água
e assim já não é peixe

Assim como eu que vivo uma VIDA EXTREMA.


António Maria Lisboa

Rio





As águas vêm de longe,
trazem o mundo,
os montes a terra as pedras
os bichos e o pólen
as folhas e a luz
a chuva o granizo
e a sede dos homens
o rumor das noites e dos dias.
Rio vivo, quase mudo,
cheio de água
cheio de terra
cheio de tudo.

João Pedro Mésseder

20.2.10

Manhã


Erguida do fundo das águas plácidas
dum lago surge Mulher.
Limos na pasta dos cabelos
escondem o mistério dos olhos
olhando a curva do seu ventre.
Flutuando
entre sombras e reflexos
duma luz longínqua,
a forma dos braços
ganha o mais e mais fundo das águas.
Os seios erguidos
apontam ao longe
a aurora que vem.
Em volta,
musgos, líquens, algas,
em fosforescências arbóreas
de constelações que lembram
os recessos da vida.
Em plantas aquáticas, marítimas,
chegam-lhe da floresta
lutas de homens, desesperos e cansaços,
feras e povos divididos, misturados
confundidos
para a sua criação.
E tudo esquecido ou ignorado,
só no lago
o corpo erguido,
jovem,
abrindo nas sombras o seu perfil que nasce
o seu perfil de Mãe
dos Homens do futuro.

Alexandre Dáskalos
Angola

Depois de tudo



Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.

Cassiano Ricardo (Brasil)

19.2.10

Sinais de saliva



Sulco a terra
ouço
estalar
a som
bra das
palavras

Cavo
e des
cubro
raízes
adormeci
das

Procuram a
superfície
e dela
recebem
sinais de sal
iva

David Mestre (poeta angolano)

Amor – pois que é palavra essencial



Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da prórpia vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)

Mãe


Se queres ouvir
a mãe
em tua memória
arcaica
deixa as palavras verem.
Aceita o colo
vivo
a álgida solidão
e ultrapassa o poema.

Ana Marques Gastão

O errante



Um dia, tínhamos decidido
faltar às aulas, perguntou-me:
«o que fazes de noite
para estares sempre tão triste de manhã?»

A noite: ruas que retemos na memória:
a distracção para tudo o que não seja
o que lábios vêem
ou nada existir para lá do limite rugoso das

palavras, incessantes fulgores
mas que nada restituem
quando estrela alguma cinge o errante.


Jorge Gomes Miranda

18.2.10

Makezú



- "Kuakiè!!!... Makèzú, Makèzú..."
...................................

O pregão da avó Ximinha
É mesmo como os seus panos,
Já não tem a cor berrante
Que tinha nos outros anos.

Avó Xima está velhinha,
Mas de manhã, manhazinha,
Pede licença ao reumâtico
E num passo nada prático
Rasga estradinhas na areia...

Lá vai para um cajueiro
Que se levanta altaneiro
No cruzeiro dos caminhos
Das gentes que vão pà Baixa.

Nem criados, nem pedreiros
Nem alegres lavadeiras
Dessa nova geração
Das "venidas de alcatrão"
Ouvem o fraco pregão
Da velhinha quitandeira.

- "Kuakiè... Makèzú... Makèzú..."
- "Antão, véia, hoje nada?"
- "Nada, mano Filisberto...
Hoje os tempo tá mudado..."

- "Mas tá passá gente perto...
Como é aqui tás fazendo isso?"
- "Não sabe?! Todo esse povo
Pegó um costume novo
Qui diz qué civrização:
Come só pão com chouriço
Ou toma café com pão...

E diz ainda pru cima
(Hum... mbundo kène muxima...)
Qui o nosso bom makèzú
É pra veios como tu".

- "Eles não sabe o que diz...
Pru qué qui vivi filiz
E tem cem ano eu e tu?"

- "É pruquê nossas raiz
Tem força do makèzu!..."

Viriato da Cruz
Angola

Soneto de Mal Amar



Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.

Ary dos Santos

O Húmus do Homem Novo

A Cláudio, meu filho

Não quero que vejas
nem sintas
a dor que me amargura;
Não quero que vejas
nem virtas
as lágrimas do meu pranto.
Deixa que eu chore
as mágoas e as desilusões;
deixa que eu deambule;
deixa que eu pise
a calidez do chão desta terra
e o regue até com o meu suor;
deixa que me toste
sob este sol inóspito
que me dardeja o lombo sempre arqueado...
Este penar
é o resgate da esperança
que em ti alço!
Este penar
é a certeza do amanhã que vislumbro
na tua ainda incipiente idade!
Não quero que vejas
nem sintas
o meu tormento
ele é o húmus do Homem Novo.

Juvenal Bucuane
Moçambique

Lua de papel



Se eu cantasse o amor sem resultado ou causa,
seria mais sensata: chegava-me uma lua de papel,
um par de braços lisos, conformados

Se eu cantasse o amor sem causa ou resultado,
tinha muito mais paz: fingida em luas-cheias,
seria mais sensata e decerto poeta bem melhor

Assim o que me resta é lua cheia a trans-
bordar de tridimensional. A paz a falhar toda
e eu resolvida em causa a insistir papel. E amor.


Ana Luisa Amaral

17.2.10

É à tarde



É à tarde,
Quando o sol s’esconde e fina,
Mas fica
- sem luz já,
Com os olhos apalpando o Ténue –
Alguma claridade inda
Que gosto de pensar:
– sob o derramamento lento do espírito –
Súbito em algo se rompe,
Fazendo rebentar – além – o próprio vácuo.
O vácuo só lá longe é real. À nossa ilharga nunca!
É nesta hora que,
Hasteados os ombros sobre os últimos píncaros da sombra,
O sol e a solidão – arrimados aos horizontes – s’encontram.

S’encontram
E me deixam sózinho
– universalmente sózinho –
Entre a luz e as trevas
– como sombra perfeita e inominável do Esquecimento.


Valentinous Velhinho
Cabo Verde

Pas-de-deux



Meus olhos de Lisboa no teu corpo
são bailarinas só, num imprevisto.
- Desprezo o vício de fazer-te os versos.

É sem pensar que resisto!

Um verso que se escreve é para ser visto,
se à força de ser verso for bailado.

Falar por te falar, só incomodo,
não deixo à fantasia ter discurso.

O meu saber de ti é complicado,
teu corpo é mais feliz a bailar todo.

Eis o que digo para dizer ser dito
bailando, meu amor, porque acredito
na forma do teu corpo, que é meu espaço
de bailarinas só, num imprevisto
dos versos sem pensar em que resisto
aos mesmos sempre versos que te faço.

Não há remorsos já para o teu cansaço,
- em cada um de nós há seu percurso.

Falar-te assim de ti, só incomodo,
este louvar-te é arte - em que persisto.

Teu corpo permanece a bailar todo.


Carlos Garcia de Castro

Minha aldeia

Houses at Auvers, c.1890 Art Print

Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence

Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.

Os homens da minha aldeia
Divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente,
cada qual é seu irmão.
Valências de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que imergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia.

António Gedeão

Greve no circo

Le Cirque I Art Print

Uma foca equilibrista
cansada de equilibrar
ficou desequilibrada
e confessou ao artista:
- amigo, estou esfomeada,
se me não dão de jantar
não equilibro mais nada!

Sidónio Muralha

16.2.10

Boa noite

African Voyage II Art Print

A zebra quis
ir passear
mas a infeliz
foi para a cama

- teve de se deitar
porque estava de pijama.

Sidónio Muralha

15.2.10

Sol de Agosto.



Sol de Agosto.
Raios a prumo.
Nem dá gosto
Viver.

Litoral ardente.
Montes nus.
Pó vermelho,
Na valsa doida do vento leste.

Meio-dia.
Nem pinga de água...
O céu plasmando infernos.
A agonia
Da gente pobre

- Pobre de tudo -,
O olhar mudo
Que sufoca gritos
Que não partem.

Mas:

Noite de luar,
Vento amainado.
Depois da ceia,
Brincam crianças
Ao canto da varanda:

Galinha
Branca
Que anda
Por casa
De gente
Catando
Grão
De milho.
E mais:
É mim
É bô
É Carlos
É Valério
É Fêdo.

Somos todos, todos,
Catando
Grão
De milho
Em anos de crise,
E mais...

- Não!...

Canivetinho
Canivetão


França.

Galinha branca
O espectro da morte
A sorte
De todos.

Olha pra mim!
Assim.

Canivetinho
Canivetão


França.
- A única esperança...

França lendária
Terra longínqua
De onde os meninos
Costumam vir em cestos
E para onde
Em anos de crise
Num cesto de pau
(Mácabra nau!)

Canivetinho
Canivetão

Coitadinhos
Vão!...

Pedro Corsino Azevedo
Cabo Verde

Alta tensão


Eu gosto dos venenos mais lentos,
dos cafés mais amargos,
das bebidas mais fortes,
e tenho
apetites vorazes,
uns rapazes,
que vejo passar,
eu sonho,
os delírios mais soltos,
e os gestos mais loucos,
que há
e sinto
uns desejos vulgares,
navegar por uns mares de lá
você pode me empurrar pro precipício,
não me importo com isso,
eu adoro voar."

Clarice Lispector (poetisa brasileira)

14.2.10

Porque me vem este odor forte


Porque me vem este odor forte
Da terra onde há chovido
Em que cada átomo
Tem força poderosa
Nas células que germinam
Crescem e se dividem?
Porque me vem este perfume
De ervas orvalhadas
De múltiplas flores
E múltiplos odores?
Rosas ou crisântemos
Narcisos ou dálias
Tudo o vento traz
Em suas asas leves
Porque vem a mim
E me penetra assim?...
Será o anseio
O gosto de beber
Em sorvos largos
A seiva à minha volta?

Eugénia Neto
Angola

13.2.10

Ofício de Amar



já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras
[galáxias, e
[o remorso

um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade de meu próprio corpo

Al Berto

11.2.10

Canção do Mestiço



Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição

Foi isso que um dia
o branco cheio de raiva
cantou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah! Mas eu me danei…
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!…

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco…
Quando amo a negra
sou negro.

Pois é…

Francisco José Tenreiro
São Tomé e Príncipe

Cantiga de Malazarte



Cantiga de Malazarte
Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo.
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casa penduradas na terra,
tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências.
a rua estala com meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido.
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo.

Murillo Mendes
Brasil

Balada do gelo



há nestas noites perdidas
a dor gelada do teu corpo ausente,
do abraço das tuas pernas fendidas
desabrochando num sorriso quente.

é a saudade dolorida
das tuas mãos cruéis
que me rasgam a pele ferida,
desenhando no meu corpo
o mapa do teu desejo,
a mordedura da tua boca salgada
percorrendo-me insaciada
na tortura de um longo beijo.

sempre nestas noites perdidas,
a dor gelada do teu corpo ausente,
da prisão das tuas pernas rendidas
desabrochando num gemido quente.

e quando o sol começa a despontar
e eu consigo adormecer,
juro-te, minha querida,
que nunca mais quero acordar.


António Maga

Minarete de medos

Aos poetas Celso Manguana e Zezuato

Assomei-me do seu delicado corpo,
como quem de madrugada
abeira-se da casa da vizinha.
-Dá licença! Dá licença!- Sussurei num dos seus ouvidos,
mordiscando a ténue cartilagem.
Ela fez um Minkulungwana e embrenhou-se no meu corpo.
Eu chorava, copiosamente.
Olhou fixamente para mim e perguntou-me:
- Por que chorais, meu Poeta? Quais são os teus medos?
- Zelendisse, os meus medos são os teus medos.
Respondi, pressuroso.
- A geografia dos meus medos é limitada (em toda sua extensão)
pela angústia do meu povo- Acrescentei.
Tenho medo, por exemplo, que amanhã eu desperte
com os dedos das mãos amputados,
sem que antes, escreva-te um último poema.
Tenho medo ainda,
que o cirurgião suture a minha boca
nas vésperas do nosso matrimónio.
Tenho medo que um desses dias,
abra a necrologia do jornal e veja
todos os meus leitores mortos,
ou os meus poetas predilectos amortalhados
numa vala comum abarrotada de incultos.
Que os meus poemas sejam roubados e vendidos
à bagatela na candonga dos dumbas,
também tenho medo.
Tenho medo que de madrugada coloquem joelhos
na minha inexorável consciência
para me arrastarem aos seus pés,
assim como também tenho medo
que coloquem sovacos nos meus neurónios
para os distrairem, em cócegas.
Na excitação das noites tenho medo
de dizer adeus quando vejo-te partir
para o regaço das minhas imponderáveis coxas.
No rumor do escuro tenho medo
que eu descubra, ao despires,
que afinal és um poema por acabar.
Também tenho medo que os nossos filhos
nasçam com rabo de poeta, ou que
um paiol de palavras rebente dentro da minha poesia.
Tenho medo que no próximo censo
registem-me como um refugiado
acampado no arraial da palavra.
Uma bela manhã do primeiro dia do mês de Abril,
tenho medo que me digam, muito sinceramente,
que Malhazine nunca existiu.
À montante do sangue que corre
nas veias do meu povo,
tenho medo que edifiquem uma Mphanda Nkuwa,
ou que floresçam nenúfares
no pântano das minhas lágrimas.
Ou então, que uma nuvem vermelha
vomite perdigotos de sangue
no meu belo rosto.
Tenho medo que hoje, os meus
efémeros adversários na linha de combate,
sejam surdos.
Como também tenho medo,
que na sua prosápia ditatorial,
impeçam-me de ter medo deles.
Também tenho medo que a Kalash a chorar
revele os nomes dos meus assassinos.
Tenho medo que uma bela tarde de domingo,
quem te venha anunciar a minha morte,
seja o meu companheiro de luta
a quem mutilaram as suas cordas vocais.
Tenho medo que de tanto passar o tempo,
a desbravar a terra sedenta do teu corpo,
não me reste um bocadinho de tempo para morrer.
Assim como tenho medo que fogueem
as minhas glândulas lacrimais,
para que não possa chorar
o inventário de angústias do Sangare.
Tenho medo enfim, que antes que me dêem
o definitivo tiro nas têmporas,
me ensurdeçam e em seguida vociferem,
no meu ouvido esquerdo, as últimas palavras:
Mbate, morremos de medo de ti!
Por fim, ela desembrenhou-se e beijou-me
o coração das coxas. Em seguida, despiu-se
e no meu ouvido esquerdo, disse sem voz:
- Não tenhas medo, meu amor!
Os teus medos, são os meu medos.

Mbate Pedro

10.2.10

Olhos Suaves, que em Suaves Dias


Olhos suaves, que em suaves dias
Vi nos meus tantas vezes empregados;
Vista, que sobra esta alma despedias
Deleitosos farpões, no céu forjados:

Santuários de amor, luzes sombrias,
Olhos, olhos da cor de meus cuidados,
Que podeis inflamar as pedras frias,
Animar cadáveres mirrados:

Troquei-vos pelos ventos, pelos mares,
Cuja verde arrogância as nuvens toca,
Cuja hrrísona voz perturba os ares:

Troquei-vos pelo mal, que me sufoca;
Troquei-vos pelos ais, pelos pesares:
Oh câmbio triste! oh deplorável troca!

Bocage

Poema numa esquina de Paris

Paris Poster
Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.


Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:

DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HÉROS DE LA RESISTANCE.
VIVE LA FRANCE.


António Gedeão

9.2.10

Viver na Beira-Mar




Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.

Fiama Hasse Pais Brandão

...o sono é um pretexto para a morte


...o sono é um pretexto para a morte
o campo onde o milagre
continua


Carlos Nogueira Pinto