No fim do jantar,                lendo poesia
           e discutindo literatura (o que se aceita
           depois da
           sobremesa...) começou a chover. Numa
           aldeia, quando chove, o barulho
           da água ocupa o seu lugar próprio:
           o príncipio (e o fim)
           do mundo. Por isso, a chuva
           entrava na conversa, pelos fragmentos
           da frase que lhe deixávamos,
           enquanto as sombras se passeavam
           por entre imagens, evocações
           de gente viva ou morta, e
           até recordações de viagens que,
           naquele canto da umbria, pouco
           mais eram do que pedaços de conversas
           irreais. É que, numa aldeia,
           o mundo é outra coisa: longe
           da vida, como se o único centro fosse
           a casa, e nada houvesse para
           além dela. Pode falar-se de dante,
           imaginar-se o caminho entre o inferno
           e o paraíso, ouvir o trovão
           que dá uma súbita presença ao mistério
           do espaço, e nada pode fazer com que se
           esqueça isto: a mesa na cozinha, massas,
           pão de queijo,
           o vinho caseiro (deu para esvaziar
           duas garrafas, e depois beber
           a aguardente de ervas, com o café),
           a matéria elementar da noite. Porém,
           quando o claudio resolveu tirar
           uma fotografia de grupo, e pôs
           a máquina no automático, o flash
           disparou ao mesmo tempo que o último
           relâmpago do temporal. Assim,
           duas substâncias luminosas se cruzaram,
           a de dentro e a de fora, fixando
           cada um de nós. Quando saímos,
           depois, e olhámos para o céu onde as nuvens
           já desapareciam, perguntei-me
           a quem poderia pedir a fotografia
           que a noite nos tirou?, que mão disparou
           esse relâmpago que me obrigou a olhar
           para o lado contrário à objectiva
           do fotógrafo?, que revelação
           ignoro, que só a treva esconde
           por entre restos de névoas e
           estrelas?
Nuno Júdice
