
 Vou de comboio…
           Vou
           Mecanizado e duro como sou
           Neste dia;
           - E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
           Tu ranges nestes ferros e palpitas
           Dentro de mim, Poesia!
Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas…
           E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
           As tuas formas brancas e aladas?
Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei o quê;
           E eu, movido por ti, por tuas manhas,
           A sonhar um painel que se não vê!
Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
           Porque hei-de eu padecer e ter matinas
           Sem querer acordar?
Porque há-de a tua voz chamar a estrela
           Onde descansa e dorme a minha lira?
           Que razão te dei eu
           Para que a um gesto teu
           A harmonia me fira?
Poeta sou e a ti me escravizei,
           Incapaz de fugir ao meu destino.
           Mas, se todo me dei,
           Porque não há-de haver na tua lei
           O lugar do menino
           Que a fazer versos e a crescer fiquei?
Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse…
Alguém que fosse pelo dia fora
           Neutro como um rapaz
           que come e bebe a cada hora
           Sem saber o que faz…
Alguém que não tivesse sentimentos,
           Pressentimentos,
           e coisas de escrever e de exprimir…
           Alguém que se deitasse
           No banco mais comprido que vagasse,
           E pudesse dormir…
           Mas eu sei que não posso.
           Sei que sou todo vosso,
           Ritmos, imagens, emoções!
           (Sei que serve quem ama)
           Sei que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.
Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão;
           Aqui vou de longada;
           Mas aqui estou, e aqui será louvada,
           Se aqui mesmo me obriga a tua mão!
Miguel Torga