
Que morte é a sombra deste retrato, 
onde eu assisto ao dobrar dos dias, 
órfão de ti e de uma aventura suspensa?
Tu não eras só este perfil.
Tu não eras só este sossego aconchegado 
nas mãos como num regaço.
Tu não eras apenas
este horizonte de areia com árvores distantes.
Falta aqui tudo o que amámos juntos, 
o teu sorriso com as ruas dentro, 
o secreto rumor das tuas veias 
abrindo sulcos de palavras fundas 
no rosto da noite inesperada.  
Falta sobretudo à roda dos teus olhos 
a pura ressonância da alegria.
Lembro-me de uma noite em que ficámos nus 
para embalar um beijo ou uma lágrima, 
lutando, de mãos cortadas, até romper o dia, 
largo, intacto,
nas pálpebras molhadas dos lírios.
Tu não eras ainda este perfil 
com uma rosa de cinza na mão direita.  
Eu andava dentro de ti 
como um pequeno rio de sol 
dentro da semente, 
porque nós - é preciso dizê-lo - 
tínhamos nascido um dentro do outro 
naquela noite.
Esse é o teu rosto verdadeiro;
aquele rosto que vou juntando ao teu retrato 
como quando era pequeno: 
recortando aqui,
colando ali,
até que uma fonte rasgue a tua boca 
e a noite fique transbordante de água.
Eugénio de Andrade