Toada de Portalegre

    
  Em Portalegre, cidade
  Do Alto Alentejo, cercada
  De serras, ventos, penhascos, oliveiras  e sobreiros, 
  Morei numa casa velha,
  Velha, grande, tosca e bela,
  À qual quis como se fora
  Feita para eu morar nela...
   
  Cheia dos maus e bons cheiros
  Das casas que têm história,
  Cheia da ténue, mas viva, obsidiante  memória 
  De antigas gentes e traças,
  Cheia de sol nas vidraças 
  E de escuro nos recantos, 
  Cheia de medo e sossego,
  De silêncios e de espantos,
   - Quis-lhe bem, como se fora  
  Tão feita ao gosto de outrora  
  Como ao do meu aconchego.
   
  Em Portalegre, cidade
  Do Alto Alentejo, cercada 
  De montes e de oliveiras, 
  Do vento soão queimada, 
  (Lá vem o vento soão!,
  Que enche o sono de pavores,
  Faz febre, esfarela os ossos,
  Dói nos peitos sufocados,
  E atira aos desesperados
  A corda com que se enforcam 
  Na trave de algum desvão...)  
  Em Portalegre, dizia, 
  Cidade onde então sofria 
  Coisas que terei pudor
  De contar seja a quem for, 
  Na tal casa tosca e bela
  À qual quis como se fora 
  Feita para eu morar nela, 
  Tinha, então,
  Por única diversão,
  Uma pequena varanda 
  Diante duma janela.
   
  Toda aberta ao sol que abrasa,
  Ao frio que tolhe, gela,
  E ao vento que anda, desanda,
  E sarabanda, e ciranda
  De redor da minha casa,
  Em Portalegre, cidade
  Do Alto Alentejo, cercada
  De serras, ventos, penhascos, oliveiras  e sobreiros, 
  Era uma bela varanda,
  Naquela bela janela!
   
  Serras deitadas nas nuvens, 
  Vagas e azuis da distância,
  Azuis, cinzentas, lilazes,
  Já roxas quando mais perto,
  Campos verdes e amarelos,
  Salpicados de oliveiras,
  E que o frio, ao vir, despia,
  Rasava, unia
  Num mesmo ar de deserto
  Ou de longínquas geleiras,
  Céus que lá em cima, estrelados,
  Boiando em lua, ou fechados
  Nos seus turbilhões de trevas,
  Pareciam engolir-me
  Quando, fitando-os suspenso
  De aquele silêncio imenso,
  Eu sentia o chão fugir-me,
  - Se abriam diante dela,
  Daquela
  Bela
  Varanda
  Daquela
  Minha
  Janela,
  Em Portalegre, cidade
  Do Alto Alentejo, cercada
  De serras, ventos, penhascos, oliveiras  e sobreiros, 
  Na casa em que morei, velha,
  Cheia dos maus e bons cheiros
  Das casas que têm história,
  Cheia da ténue, mas viva, obsidiante  memória 
  De antigas gentes e traças,
  Cheia de sol nas vidraças 
  E de escuro nos recantos, 
  Cheia de medo e sossego,
  De silêncios e de espantos,
  À qual quis como se fora 
  Tão feita ao gosto de outrora  
  Como ao do meu aconchego...
   
  Ora agora,
  Que havia o vento soão 
  Que enche o sono de pavores,  
  Faz febre, esfarela os ossos,  
  Dói nos peitos sufocados,
  E atira aos desesperados
  A corda com que se enforcam 
  Na trave de algum desvão, 
  Que havia o vento soão
  De se lembrar de fazer?
  Em Portalegre, dizia, 
  Cidade onde então sofria 
  Coisas que terei pudor
  De contar seja a quem for, 
  Que havia o vento soão
  De fazer,
  Senão trazer
  Àquela
  Minha
  Varanda
  Daquela
  Minha
  Janela
  O testemunho maior
  De que Deus
  é protector
  Dos seus
  Que mais faz sofrer?
   
  Lá num craveiro que eu tinha,  
  Onde uma cepa cansada
  Mal dava cravos sem vida, 
  Poisou qualquer sementinha 
  Que o vento que anda, desanda,  
  E sarabanda, e ciranda, 
  Achara no ar perdida, 
  Errando entre terra e céus...,  
  E, louvado seja Deus!,
  Eis que uma folha miudinha 
  Rompeu, cresceu, recortada, 
  Furando a cepa cansada
  Que dava cravos sem vida 
  Naquela
  Bela
  Varanda
  Daquela
  Minha
  Janela
  Da tal casa tosca e bela
  À qual quis como se fora
  Feita para eu morar nela...
   
  Como é que o vento soão 
  Que enche o sono de pavores,  
  Faz febre, esfarela os ossos,  
  Dói nos peitos sufocados,
  E atira aos desesperados
  A corda com que se enforcam
  Na trave de algum desvão, 
  Me trouxe a mim que, dizia, 
  Em Portalegre sofria
  Coisas que terei pudor
  De contar seja a quem for, 
  Me trouxe a mim essa esmola,  
  Esse pedido de paz
  Dum Deus que fere... e consola  
  Com o próprio mal que faz?
   
  Coisas que terei pudor
  De contar seja a quem for
  Me davam então tal vida
  Em Portalegre, cidade
  Do Alto Alentejo, cercada
  De serras, ventos, penhascos, oliveiras  e sobreiros, 
     Me davam então tal vida
  - Não vivida!, mas morrida
  No tédio e no desespero,
  No espanto e na solidão -
  Que a corda dos derradeiros
  Desejos dos desgraçados
  Por noites do vento soão
  Já várias vezes tentara 
  Meus dedos verdes suados...
   
  Senão quando o amor de Deus 
  Ao vento que anda, desanda, 
  E sarabanda, e ciranda, 
  Confia uma sementinha
  Perdida entre a terra e céus,  
  E o vento a traz à varanda 
  Daquela
  Minha
  Janela
  Da tal casa tosca e bela
  À qual quis como se fora 
  Feita para eu morar nela!
   
  Lá no craveiro que eu tinha,  
  Onde uma cepa cansada
  Mal dava cravos sem vida, 
  Nasceu essa acàciazinha
  Que depois foi transplantada
  E cresceu, dom do meu Deus!,  
  Aos pés lá da estranha casa
  Do largo do cemitério,
  Frente aos ciprestes que em frente 
  Mostram os céus,
  Como dedos apontados
  De gigantes enterrados...
   
  Quem desespera dos homens, 
  Se a alma lhe não secou,
  A tudo transfere a esprança 
  Que a humanidade frustrou: 
  E é capaz de amar as plantas,  
  De esperar nos animais,
  De humanizar coisas brutas,
  E ter criancices tais,
  Tais e tantas!,
  Que será bom ter pudor
  De as contar seja a quem for.
   
  O amor, a amizade, e quantos  
  Sonhos de cristal sonhara, 
  Bens deste mundo, que o mundo  
  Me levara,
  De tal maneira me tinham,
  Ao fugir-me,
  Deixado só, nulo, atónito,
  A mim, que tanto esperara
  Ser fiel,
  E forte,
  E firme,
  Que não era mais que morte
  A vida que então vivia, 
  Auto-cadáver...
   
  E era então que sucedia
  Que em Portalegre, cidade
  Do Alto Alentejo, cercada
  De serras, ventos, penhascos, oliveiras  e sobreiros, 
  Aos pés lá da casa velha
  Cheia dos maus e bons cheiros
  Das casas que têm história,
  Cheia da ténue, mas viva, obsidiante  memória 
  De antigas gentes e traças,
  Cheia de sol nas vidraças 
  E de escuro nos recantos, 
  Cheia de medo e sossego, 
  De silêncios e de espantos,
   
  - A minha acácia crescia.
   
  Vento soão!, obrigado
  Pela doce companhia
  Que em teu hálito empestado,  
  Sem eu sonhar, me chegava! 
  E a cada raminho novo
  Que a tenra acácia deitava, 
  Será loucura!..., mas era 
  Uma alegria
  Na longa e negra apatia 
  Daquela miséria extrema 
  Em que eu vivia,
  E vivera,
  Como se fizera um poema, 
  Ou se um filho me nascera.
José Régio