Nos teus olhos altamente perigosos
           vigora ainda o mais rigoroso amor
           a luz dos ombros pura e a sombra
           duma angústia já purificada            
Não tu não podias ficar presa comigo
           à roda em que apodreço
           apodrecemos
           a esta pata ensanguentada que vacila
           quase medita
           e avança mugindo pelo túnel
           de uma velha dor            
Não podias ficar nesta cadeira
           onde passo o dia burocrático
           o dia-a-dia da miséria
           que sobe aos olhos vem às mãos
           aos sorrisos
           ao amor mal soletrado
           à estupidez ao desespero sem boca
           ao medo perfilado
           à alegria sonâmbula à vírgula maníaca            
           do modo funcionário de viver            
Não podias ficar nesta casa comigo
           em trânsito mortal até ao dia sórdido
           canino
           policial
           até ao dia que não vem da promessa
           puríssima da madrugada
           mas da miséria de uma noite gerada
           por um dia igual            
Não podias ficar presa comigo
           à pequena dor que cada um de nós
           traz docemente pela mão
           a esta pequena dor à portuguesa
           tão mansa quase vegetal            
Mas tu não mereces esta cidade não mereces            
           esta roda de náusea em que giramos
           até à idiotia
           esta pequena morte
           e o seu minucioso e porco ritual
           esta nossa razão absurda de ser            
Não tu és da cidade aventureira
           da cidade onde o amor encontra as suas ruas
           e o cemitério ardente
           da sua morte
           tu és da cidade onde vives por um fio
           de puro acaso
           onde morres ou vives não de asfixia
           mas às mãos de uma aventura de um comércio puro            
           sem a moeda falsa do bem e do mal            
Nesta curva tão terna e lancinante
           que vai ser que já é o teu desaparecimento
           digo-te adeus
           e como um adolescente
           tropeço de ternura
           por ti
Alexandre O'Neill
